CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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quinta-feira

QUAL DOS NOVE? - Maurício Jokai

Havia nesta cidade de Budapest um pobre sapateiro, que nunca conseguiu enriquecer com o trabalho de suas mãos. Não se pense que todo mundo havia decidido deixar de usar botas, nem que os governantes da cidade o tivessem obrigado a vender os calçados pela metade do preço. O honrado sapateiro trabalhava tão bem, que seus clientes se queixavam de quase nunca conseguir gastar as botas que ele fazia. Choviam as encomendas, todos lhe pagavam pontualmente, e nunca ninguém pensou sequer em desaparecer sem pagar a conta.
Apesar disso o sapateiro João jamais conseguia levantar a cabeça. Ao contrário, esteve tentado muitas vezes a jogar-se ao rio para morrer afogado. Claro que isso era apenas uma forma de desabafo, porque João era bom cristão, e um cristão não se suicida, por mais que o destino o maltrate.
João não conseguia nunca viver com folga, porque Deus o havia abençoado de outro modo na família, e com grande abundância: todos os anos, com exata regularidade, sua mulher lhe dava ora um filho, ora uma filha, sempre pletóricos de força e saúde.
— Deus meu! — suspirava João toda vez que chegava um novo filho.
Suspirou com o sexto, com o sétimo e com o oitavo. Será que nunca chegaria ao ponto final?
Veio ao mundo o nono, morreu a mulher, e o ponto final chegou.
João se encontrou sozinho neste vasto mundo com seus nove filhos, o que já é bastante. Dois ou três iam à escola, outros aprendiam pouco a pouco a andar, mas ainda havia os menores, que ele tinha de carregar nos braços, dar de comer, preparar o mingau... Além de alimentar, vestir e lavar, tinha de os entreter. Reconheçamos que a carga era pesada, mas com um pouco de prática acaba tornando-se suportável.
Tudo tinha de ser multiplicado por nove. Nove pares de calçados, nove pedaços de pão, nove roupas; nove camas, a casa toda cheia delas; todas com cabeças humanas pequenas e grandes, ruivas ou morenas.
— Deus meu! Deus meu! — suspirava com freqüência o honrado artesão, às vezes depois da meia-noite, enquanto manejava infatigavelmente a sovela para alimentar os corpos de tantas almas, ou tratava de acalmar um ou outro de seus filhos que não queria dormir tranqüilo.
Eram nove, nem mais nem menos, mas não tinha do que queixar-se. Os nove se desenvolviam maravilhosamente: todos bonitos, decididos, educados, com as mãos e pernas bem formadas e estômago de ferro. Ele preferia os nove pedaços de pão a um frasco de remédios, nove camas encostadas umas às outras a um ataúde entre elas. Que Deus mantenha o ataúde longe de pais e mães sensíveis, mesmo que ao perder um filho fiquem ainda com oito. Também é verdade que os filhos do sapateiro João não tinham nenhuma intenção de morrer, e estavam predestinados a caminhar pela vida. Resistiam a tudo: chuva, neve, pão seco...
Um dia, véspera de Natal, João voltou para casa muito tarde, depois de intermináveis voltas pela cidade. Fora entregar encomendas em domicílio de clientes, recebendo por elas o suficiente para pagar as compras de matéria-prima e atender aos gastos caseiros. Quando se dirigia apressadamente para casa, viu que em todas as esquinas se haviam instalado quiosques cheios de artigos para presente, que os pais iam comprando para os filhos. Deteve-se em algum desses quiosques, pensando: “Devo comprar algum desses presentes?” Mas ao lembrar-se de que tinha nove filhos, duvidou. Comprar para todos, era acima das suas possibilidades. Comprar um só, suscitaria invejas e disputas. E resolveu fazer outra coisa. Decidiu fazer-lhes outro presente de Natal, algo bonito e magnífico, que não se quebrasse nem se gastasse, e que os alegraria a todos, sem que houvesse possibilidade de nenhum ficar privado do presente.
Quando se encontrou no meio daquelas nove cabeças, disse:
— Meus filhos... um, dois, três, quatro... vejo que estão todos aqui. Vocês sabem que hoje é véspera de Natal. É uma grande festa, uma festa magnífica! Hoje não vamos trabalhar mais, vamos festejar esta noite.
Os meninos ficaram tão contentes com a proposta, que parecia que a casa vinha a baixo.
— Esperem, fiquem quietos. Vou ensinar a vocês uma linda canção de Natal. Sei uma que é preciosa, e guardei-a para esta noite. É um presente que eu lhes dou.
O grupo de pequenos abraçou as pernas e o pescoço do pai, quase derrubando-o, por causa da canção de Natal.
— Prestem atenção! Todos alinhados! Assim: os maiores atrás e os menores na frente.
Alinharam-se como os tubos de um órgão, e os dois menores se sentaram, um no joelho e o outro no braço do pai.
— Agora, silêncio. Primeiro eu vou cantar sozinho, e depois vocês todos cantam comigo.
Com ar grave e recolhido, depois de tirar seu gorro verde, João se pôs a cantar a belíssima canção que começa assim:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Os meninos e meninas maiores aprenderam logo a melodia, mas os menores estropiavam a letra e o ritmo. Por fim todos acabaram aprendendo. E foi uma grande alegria quando os nove começaram a cantar, com suas frescas vozes, essa bela canção que um dia os próprios anjos cantaram, e que talvez cantem ainda hoje, depois que as vozes alegres e harmoniosas de nove almas inocentes pediu um eco celestial.
É certo que nas alturas houve regozijo com o canto dos meninos. Mas é certo também que no andar de cima o regozijo não era tão grande. Morava ali, sozinho em nove cômodos, um velho solteirão, que comia no primeiro, sentava-se no segundo, fumava no terceiro e dormia no quarto. Só Deus sabe o que poderia fazer nos demais cômodos o ricaço, sem mulher e sem filhos.
Naquela noite esse homem estava sentado no seu oitavo cômodo, e se perguntava por que sua comida não era saborosa, por que os dias e as noites não tinham nada interessante, por que aqueles amplos cômodos não eram suficientemente ventilados, por que não podia conciliar o sono no seu leito macio. Começou então a ouvir as vozes de João e seus filhos, cantando a canção que convidava todos a alegrar-se. A princípio não quis prestar atenção, pensando que acabariam logo. Mas quando começaram a cantá-la pela décima vez, perdeu a paciência. Jogou de lado o cigarro apagado e desceu à casa do sapateiro.
— O senhor é o sapateiro João?
— Às suas ordens, senhor. Está interessado em um par de botas, ou algum outro tipo de calçado?
— Não o procurei por este motivo. Pelo que vejo, não lhe faltam filhos.
— Grandes e pequenos, senhor. E são numerosos quando tenho de lhes dar alimentos.
— E mais numerosos ainda me parecem quando se põem a cantar. Olhe, Sr. João, quero que seja um homem feliz. Dê-me um dos seus filhos. Eu o adotarei, e será como meu filho. Darei a ele uma boa educação, e o levarei para viajar comigo por outros países. Será um homem rico e poderá ajudar os demais.
João arregalou os olhos ao ouvir as palavras do ricaço. Tratava-se de dar uma resposta importante. Que pai não se comove, ante a perspectiva de tornar rico um dos seus filhos?
— Então, Sr. João, concorda? É claro que concorda, pois é uma felicidade para o menino. Escolha-o depressa, que preciso voltar para casa.
João começou a escolher:
— Este aqui é o Alexandre. Não o dou, porque é bom estudante, e com o tempo vai ser um grande sábio. Esta é menina, e certamente o Sr. não quer uma menina. Este aqui já me ajuda no trabalho, e não posso prescindir dele. Zequinha é a cara da mãe, e tem de ficar comigo. Paulo? Não, pois era o preferido da mãe, e ela não descansaria tranqüila se o desse a um estranho. Estes dois são ainda menores, e o Sr. não teria o que fazer com eles.
Ao terminar a conta, ainda não se havia decidido. Voltou a começar pelos menores, e o resultado foi idêntico. Impossível escolher, impossível dar um deles, pois gostava muito de todos.
— Vamos, meninos, vocês mesmos têm que escolher. Quem quer sair desta casa para tornar-se pessoa importante? Quem quer ir-se agora?
Enquanto assim falava, o pobre sapateiro estava a ponto de desfazer-se em lágrimas. Mas os meninos, enquanto ele os incentivava, foram todos esconder-se atrás do pai. Um se agarrava na mão, outro nos joelhos, outro no avental de couro, para que o ricaço não os visse.
Por fim João não conseguiu dominar-se mais, inclinou-se para eles e os abraçou, chorando, e os meninos não demoraram a imitar o exemplo do pai.
— Impossível, senhor! Não posso. Sinto, mas não posso dar os meus filhos a ninguém, já que Deus os deu a mim.
O homem rico respondeu que não tinha intenção de impor sua vontade, e pediu a João que lhe fizesse ao menos um serviço insignificante: que não continuasse cantando com seus filhos, e em troca disso lhe deu uma nota de cem libras. João, que nunca tivera em mãos uma nota desse valor, estava maravilhado.
O vizinho voltou para sua casa, enquanto João, depois de muito admirar a nota, guardou-a timidamente na gaveta e se calou. A meninada se calou também, pois estava proibido cantar. Os maiores se sentaram nas cadeiras e tratavam, embora sem convicção, de tranqüilizar os menores: não se pode cantar, porque o homem rico do andar de cima nos ouviria.
O próprio sapateiro, silencioso, batia com o pé no chão. Acabou afastando bruscamente o mais novo, o preferido da sua mulher, que insistia em aprender a bela canção de Natal:
— Está proibido cantar.
Depois sentou-se no seu banco de trabalho e se pôs a cortar e recortar com tanta atenção, que de repente se deu conta de que estava cantando involuntariamente.
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Bateu com a mão na boca, e seu rosto ficou vermelho de cólera. Deu um murro na mesa, abriu a gaveta e retirou a nota. Em seguida correu à casa do vizinho do segundo andar.
— Senhor, que Deus o abençoe! Guarde este dinheiro, se quiser, pois eu não o quero. Prefiro cantar quando tiver vontade. Isso vale para mim muito mais do que cem libras.
Deixou a nota sobre a mesa e voltou correndo para junto dos filhos. Beijou-os um por um, recolocou-os na formação dos tubos de órgão, sentou-se no seu banco de sapateiro, e todos começaram a cantar:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Estavam todos contentes, tão contentes que se poderia dizer que a casa era deles.


(Maurício Jokai, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)

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