CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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sábado

A MOSCA VERDE E O ESQUILO AMARELO - Kálmán Mitszáth

João Gál, velho camponês, o nababo da aldeia, estava doente. Deus acabava de pronunciar a sua sentença, como quem quisesse dar uma lição aos outros mortais:
“Que sois, afinal, ó homens! Não sois nada. Olhai o compadre João Gál, a quem o próprio chefe do distrito aperta a mão e as condessinhas da aldeia chamam de João, porque é rico, o maioral de todos vós. Para mim, tanto faz. Prostro‑o quando bem entender. E prostro‑o mansamente, com um gestinho da mão que apenas faria cair os grãos de uma espiga. Não me é preciso mandar um lobo faminto devorá‑lo, nem derrubo um poderoso carvalho para o esmagar. Uma pequena mosca fará o serviço. Vai, mosquinha, pica‑o!”
Pois foi justamente o que se passou: uma mosca picou a mão de compadre João, e esta começou a inchar. Depois tornou‑se vermelha, e enfim preta, numa extensão cada vez maior.
A condessa e o cura induziram‑no a chamar imediatamente um médico.
— Vá lá — concedeu afinal o nababo ‑, mandem o carro para trazer o “surgião” de Léta.
A condessa, porém, queria a todo o transe que se telegrafasse à capital mandando chamar o Dr. Birli, professor da faculdade. Co­brava trezentos florins por consulta, mas pelo menos entendia do riscado.
— Uma loucura! — resmungou o rei camponês. — Um mosquitinho desses não me pode ter feito uma doença de trezentos florins!
Entretanto a condessa, benfeitora da aldeia, continuava a insistir, e até se prontificou a desembolsar os trezentos florins da visita. Aí compadre João não agüentou mais:
— Era só o que me faltava! Prefiro pagar mais cinqüenta florins.
O telegrama partiu, e o trem da tarde deixou na aldeia o Dr. José Birli, cuja fama corria mundo. Era um moço magricela, bastante novo, de óculos e cartola: um homenzinho que mal valia cinco tostões. Pagar trezentos florins a um moleirão daqueles!
Na estação o esperava o carro de Seu Gál, e no limiar da porta a própria Senhora Gál.
— Então é o doutor de Budapeste? Bons olhos o vejam! Vá entrando, e já, alma minha1; este meu homem está desgraçando a casa toda, como se tivesse sido mordido por um cachorro doido e não por um mosquitinho à‑toa.
Não era bem assim. João Gál não desgraçava ninguém. Enquanto não o interrogavam, calava‑se, a ainda quando interrogado respondia apenas por monossílabos. Indiferente, estava deitado num banco, servindo‑lhe de travesseiro a sua peliça enrolada, enquanto o cachimbo, que apertava entre os dentes, lançava no ar uma fumaça alegre.
— Vamos, meu velho, que é que sente? — perguntou o doutorzinho, que falava com desembaraço extraordinário. — Consta‑me que foi picado por uma mosca.
— Fui mesmo — respondeu o camponês, meio indolente.
— Que espécie de mosca?
— Uma mosca verde — disse o outro, lacônico.
— Pergunte sem medo, Seu Doutor — acudiu a Sra. Gál. — Uma vez que está aqui, aproveite. Eu tenho que deixá‑los, estou com nove pães no forno.
— Vá descansada, titia — respondeu, distraído, o facultativo.
A palavra titia fez a mulher voltar‑se. Com os dois dedos de sua mão ágil puxou para cima, sobre a fronte, o lenço pontilhado que lhe cobria parte do rosto.
— Ora essa! — exclamou, meio irritada, meio galhofeira. — Talvez nem seja mais velha do que o senhor. Parece que não vê bem por essas duas janelas que traz no nariz.
Deu meia‑volta sobre os calcanhares, com a presteza de um fuso. Vestia uma porção de saias engomadas, uma por cima da outra, as quais ao menor movimento produziam um rumor provocante, um fru-fru de sedução.
O sábio professor fitava‑a com pasmo. Era bonita, diabolicamente bonita, encantadora mesmo, e de fato muito mais moça do que ele, sem falar do marido, um velho de cabelos arruçados. Ia balbuciar uma desculpa, quando a moça lhe deu com a porta na cara. Que grandes tolos esses grandes sábios!
— Mostre‑me essa mão.
João Gál, taciturno, estendeu sem pressa o membro doente.
— Dói?
— Bastante — replicou o camponês, soltando baforadas cujo itinerário acompanhava, com o olhar divertido, até à viga mestra.
O médico examinou o braço túmido e exclamou com espanto:
— Mas que desgraça! Deve ter sido uma mosca de cadáver.
— É bem capaz de ser — disse com fleuma João Gál, unicamente para dizer alguma coisa. — Logo vi que não era dessas daqui.
— Não me entendeu bem, meu velho. Queria dizer que essa mosca, antes de o pungir, tinha pastado em um cadáver.
— T’esconjuro, bicho sacrílego! — exclamou João Gál, sem o menor sinal de irritação ou de espanto, antes por polidez, como quem ouvisse palavra ímpia ou indecente.
— Ainda bem que não cheguei tarde! Agora ainda se pode fazer alguma coisa, mas amanhã já seria impossível. Se não fosse eu, você amanheceria morto.
— O quê! — disse o velho, limpando com muita calma o cachimbo.
— Uma septicemia anda depressa. É preciso agirmos com urgência. Não há outro jeito, meu amigo; seja forte: tenho que lhe cortar a mão.
— Esta mão aqui? — perguntou o doente com surpresa, en­quanto lhe aflorava aos lábios um leve sorriso de ironia, mistura admirável de piedade, desdém a fatalismo.
— Essa, sim: a sua mão. Deve ser cortada.
João Gál não disse palavra; apenas sacudiu a cabeça, fumando tranqüilamente.
— Olhe, meu amigo — recomeçou o doutor num tom persuasivo ‑, não há de sentir dor alguma; adormecê‑lo‑ei, e, quando despertar, o mal estará vencido e o senhor salvo. Agora, se o deixar assim, amanhã à mesma hora estará morto, pois a septicemia se terá generalizado. Então nem Deus poderá salvá‑lo mais.
— Deixe‑me em paz — estourou João Gál, como se estivesse com vergonha de ter gasto em vão tantas palavras.
Deitado até então sobre as costas, voltou‑se de encontro à pa­rede e fechou os olhos.
Tamanha teimosia assombrou o médico. Saiu do quarto e foi ter com a mulher. Encontrou‑a em grande azáfama perto do for­no, no fundo do qual se viam a corar uns pães enormes, ao passo que pela porta de baixo se enxergava um montão de brasas muito vivas, que aos poucos se ia acinzentando.
— Que é que o velho tem? — perguntou a moça num tom quase indiferente, abaixando, pudica, as saias arregaçadas na par­te dianteira.
Nem todo olho de homem merecia ver as belas pernas brancas, descobertas bem acima dos tornozelos.
— Na verdade, o estado dele é bastante sério; vim justamente pedir‑lhe que o induza...
— A quê?
— A deixar cortar a mão.
— Santo Deus! A mão!
A mulher ficou branca feito a parede, e foi com um bater de dentes que balbuciou outra pergunta:
— Mas tem mesmo de ser?
— Sem dúvida, aconteça o que acontecer. Cada minuto perdido constitui um perigo. O paciente está acometido de septicemia caracterizada, e sem imediata intervenção cirúrgica torna‑se impossível impedir a paralisação total das funções biológicas.
(Todos estes termos, atentai bem, são do médico e não meus.)
— O senhor quer dizer que meu marido vai morrer?
— Isto mesmo. Se não houver possibilidade de qualquer outra medicação, o óbito verificar‑se‑á dentro de vinte e quatro horas.
O rosto da moça ruborizou‑se como malva‑rosa, e em seus olhos houve um brilho cintilante como a brasa do forno.
— Venha, então, falar‑lhe — repisou o professor. — Convença‑o. Talvez dê atenção à senhora.
Com gesto desdenhoso e afetado, ela pôs uma das mãos no quadril, e com o polegar da outra deu um estalo nos dentes (o que, entre os camponeses húngaros, equivale a um esconjuro cortês):
— Essa é boa! Então o senhor acha que eu sou lá mulher que se contente com um aleijado? Meus olhos se queimariam de vergonha! Era só o que me faltava!
Entrou em turbilhão no quarto, gritando, muito excitada:
— Não te deixes cortar, João; não escutes o doutor, João!
O doente olhou a megera com simpatia e tranqüilizou‑a no tom de quem falasse a uma criança:
— Ora, Kriska! Deixa estar, que tudo isso não passa de conversa. Sou bastante esperto para não morrer aos pedaços.
O professor Birli começou a desanimar; no entanto, quis experimentar outras armas da persuasão:
— Escute, minha boa senhora, não seja cruel. Dou‑lhe minha palavra de honra que em vinte a quatro horas o seu rico marido morrerá aos seus olhos, se eu não lhe cortar a mão agora mesmo. Mas o que me admira sobretudo é a sua teimosia, Sr. João. O senhor é tido por homem fino, parece que foi até prefeito, e agora não quer compreender as conseqüências funestas da sua teimosia. Veja lá o que representa uma mão. Quantas vezes não terá visto soldados manetas alegres a gozando a vida? É ou não é?
— É — admitiu o nababo.
— Por outra parte (Birli alegrou‑se de ter achado um novo argumento, que parecia inventado para um camponês), o senhor há de pagar‑me trezentos florins, quer lhe corte a mão, quer não corte. Falando sério: essa sua resistência não é razoável. Trata‑se de uma ninharia, e de uma ninharia que se deve pagar de qual­quer maneira. Falta apenas o seu consentimento. Quanto a mim, veja que alívio o ter salvo um homem de bem, em vez de roubar­-lhe trezentos florins por nada!
João Gál parecia refletir. Na verdade, procurava apenas uma frase para cortar o fio daquela interminável conversa.
— Se o senhor quiser — disse por fim ‑, me dá uma pomada por esse dinheiro.
Admirável, realmente, o indiferentismo fatalista do camponês húngaro, que morre sem relutância nem amargura. Ao declarar “cumpriu‑se o meu destino”, inclina docilmente a cabeça e começa a ditar ao senhor notário suas disposições de última vontade. Ou pergunta: “Que tenho mais que fazer aqui?”. As­sim agiu Martinho Csépi, o velho guarda‑noturno, quando per­deu o seu modesto emprego. “Que é que temos?” — perguntou à mulher. Tinham ainda um pão e um pouco de repolho cru no fundo do barril. Foi o bastante para nutrir Martinho durante dois dias; e quando, à noitinha do segundo dia, acabou de engolir o último pedacinho de pão, deitou‑se no banco do forno, colocou as botas debaixo da cabeça, fechou os olhos e morreu, certo de que não tinha mais nada que fazer neste mundo de misérias.
Aos olhos do camponês húngaro, o homem da foice2 não é nenhum espectro, mas um camarada jovial que, por assim dizer, faz parte da família, de certa maneira. Foi ele quem fez vovó e vovô irem vender tábuas em Földvár3; ele ainda quem tirou a colher da mão da sogra para sempre. Não é injusto, pois faz a sua visitinha a todos; não é um inimigo, pois àqueles a quem derruba, livra‑os de todos os cuidados. Por isso lhe chamam Compadre Morte, e é, com efeito, um bom compadre, e não um poderoso. Apenas cumpre ordens superiores, em suas visitas inesperadas. Não é muito esperto, coitadinho; mas pelos meios a seu alcance, até avisa as almas piedosas, ao passar pela região delas com intenções especiais.
Sem dúvida, o seu sistema de sinais é um pouco defeituoso; mas a gente faz o que pode, não é? Assim, por exemplo, o cuco é um de seus mensageiros: interrogado, diz à gente o número de anos que ainda tem para viver. Este, porém, só fala interrogado. É necessário muito mais cuidado com os outros sinais que se manifestam sem a gente pedir. Um copo, de repente, racha em cima da mesa: quer dizer que Compadre Morte está prevenindo, é preciso preparar‑se. Outra vez, é uma coruja que aparece à janela, para dizer que o bom compadre já está com um pé dentro da casa: é tempo de chamar o cura.
Numa palavra, a morte é muito menos terrível na roça do que na cidade, onde a gente precisa de um espelho até para se pentear. Na cidade, raras vezes é bem recebida; salvo, num ou noutro caso, por aqueles a quem mata um parente rico. Na roça, é bem‑vinda, e até cumprimentada pela pessoa a quem veio buscar: mas, ainda quando não a cumprimentam, pelo menos a acolhem com indiferença.
Assim, o médico tentava carregar água num cesto: não conseguiu aterrorizar João Gál, que pôs fim a toda e qualquer discussão com esta réplica inapelável:
— Deixe estar, Seu Doutor. O que for soará.
Entretanto haviam chegado as personalidades da aldeia: o reverendo, o notário e a senhora condessa, os quais, cada um por sua parte, procuraram convencer o paciente. O reverendo tratou de lembrar‑lhe os encantos da existência:
— A vida é tão bonita! Que sorte a gente ver a luz de Deus levantar‑se pela manhã e deitar‑se à noite; respirar o perfume das árvores e das flores; sentir‑se uma parcela de toda esta sublime efervescência universal regida pela mão de Deus! Cada dia é um novo dom do Senhor; não nos é permitido jogar fora nenhuma destas dádivas preciosas. Deus abençoou o compadre com abundância; basta, aliás, uma só mão para fazer o bem.
A condessa lembrou a João Gál os filhos menores dele (tinha três também da primeira mulher; Kriska era a segunda), que ele tinha o dever cristão de educar: era um crime furtar‑se a tal dever por teimosia covarde.
— Perfeitamente — acudiu o notário ‑; tanto mais quanto você arranjou para eles uma discreta fortunazinha. Ora, de que serve ela, se você morrer? O dinheiro todo vai parar na vara de órfãos: o condado4 há de tirar de seus filhos tudo o que têm.
Um gesto de compadre João Gál deu a impressão de que o desmoronamento de sua enorme fortuna o inquietaria até certo ponto; mas concluiu com unção:
— Quanto aos meninos, Deus cuidará deles. Deus é mais poderoso que o condado.
— Não é esta a minha experiência — deixou escapar o notário, ímpio conhecido.
(O servidor de Deus baixou os olhos, mas não encontrou argumentos para tomar a defesa de seu amo contra o condado.)
Parecia impossível reduzir aquela obstinação insensata, tirar o doente de sua indiferença desumana. O médico lançava olhares furiosos à mulher do paciente, a qual de vez em quando deixava os seus pães para dar um palpite.
— A minha resolução está tomada — dizia sem cessar. — Não permito que se corte o meu maridinho.
— Cale a boca — gritou por fim o doutor, com profunda indignação. — A senhora está cometendo um crime.
Dos olhos de D. Kriska saltavam faíscas verdes.
— Eu calar‑me! — exclamou em tom zombeteiro, balanceando o belo corpo com afetados meneios de quadris. — É só isso que o senhor quer? Pois saiba, seu doutor, que no monturo do galo a galinha também tem seus direitos.
João Gál apressou‑se a pôr termo, com plácida sabedoria, à briga que se preparava:
— Ora, Kriska, não te zangues, sê razoável! Desce à adega e traze uma garrafa de vinho para os nossos hóspedes. O senhor doutor deve estar com sede; foi grande falta não lhe oferecer bebi­da. Não lhe queiras mal, Kriska; afinal de contas, ele também deseja o meu bem, mas lá à maneira dele.
Os hóspedes consentiram com prazer em que a mulher fosse buscar o vinho. Pelo menos durante a sua ausência podia‑se tentar um último assalto. Falaram alto e depressa, a torto e a direito, os três de uma vez. O doutor acumulava argumentos os mais sedutores (a operação não doía mais do que uma ferroada de abe­lha) e os mais terrificantes (devia ser um horror estar metido debaixo da terra úmida), mas o doente escutava‑o sem abrir a boca, e continuava a fumar. Seus olhos azuis, mansos, percorriam com pachorra, no quarto, os objetos conhecidos, os utensílios colocados na viga mestra, o aparador a os retratos do Rei Francisco José e do velho Kossuth5 (dois antagonistas ferozes na história, mas cujas imagens convizinham na casa do camponês húngaro), com um galho bento de buxo posto sobre as molduras.
A moça voltou bem depressa com o vinho, de forma que o doente não pôde responder. Aliás, não queria fazê‑lo, tanto que se limitou a perguntar à mulher:
— De qual dos tonéis tiraste o vinho?
— Do de dois moios.
— Desta vez não faz mal, mas para o velório terás de abrir o outro tonel. Vi outro dia que o vinho dele começa a estragar‑se. Portanto, é desse que darás aos que vierem velar.
Esta frase, cheia de resignação simples, não só revelava a prudente solicitude do camponês húngaro, que se estende até além da morte, mas também continha implicitamente uma resposta negativa às tentativas de persuasão.
O Dr. Birli compreendeu e começou a enfiar as luvas.
— Estamos perdendo o tempo — disse.
— Tenho ainda uma idéia — segredou‑lhe a condessa. — Espere um momentinho.
Foi ao quintal e reuniu os filhos de João Gál. Poucos minutos depois os garotos irromperam no quarto, cada um com uma moeda de prata na mão, soltando gritos e soluços, como lhes fora ensinado:
— Não morra, papaizinho, não morra!
A pequena Boriska, uma lourinha bonita, juntou as mãozinhas como para rezar:
— Deixe cortar a mão, papai!
— Deixe, papai, deixe! — berraram os meninos, com o rosto lambuzado.
(O chamado da condessa os encontrara nos galhos de uma amoreira.)
O velho teve um sorriso, e, espremida com força, caiu uma gota de seu bom humor:
— Vocês gostariam, seus malandros, porque pensam que eu não lhes poderia dar uma boa surra com a mão esquerda. Mas estão enganados. Portanto, não ganhariam nada com o negócio — acrescentou com leve melancolia.
As últimas destas palavras, aliás, não foram ouvidas pela gurizada, que deitou a correr, pois a dona da casa acabava de encontrar, a um canto, a sua vassoura.
O novo insucesso desanimou a condessa também. Já não acre­ditava na possibilidade da operação:
— Tem razão, Birli. Estamos perdendo o nosso tempo. Vamos.
— Quem tem uma idéia agora sou eu — disse‑lhe baixinho o facultativo.
E, saindo ao quintal, chamou o notário à parte:
— Será que na aldeia há alguma velha mexeriqueira?
— Ora se há! Até demais.
— Pois qual é a mais bisbilhoteira de todas?
— Para dizer a verdade, há várias perfeitas no seu gênero. Mas a melhor de todas talvez seja a mulher de Lázaro Matias, “o esquilo amarelo”.
— Por que tal apelido?
— Porque tem a cara amarela como pé de pato e parecida com a cara do esquilo, e a alma ainda mais amarela de inveja.
— Mora longe daqui? Enquanto se atrelam os cavalos, não me poderia conduzir à casa dela?
— Como não! Com muito gosto — disse o notário, rindo. — Mora na terceira casa. Será que o professor quer casar? Pois saiba que o “esquilo amarelo” é uma famosa casamenteira. Vive disso.
— Tanto melhor: é do que eu precisava. Mas antes vou pedir a D. Kriska que mande atrelar os cavalos.
— É um serviço que ela lhe prestará com prazer.
— Também acho.
Um rapagão brioso, com uma pena de avestruz no chapéu, dava de beber aos cavalos no bebedouro. O médico reconheceu‑o: era o cocheiro que fora esperá‑lo na estação. A pena de avestruz, aliás, bastava para identificá‑lo, pois só os cocheiros a usam; o pegureiro põe no chapéu um ramo de panasco, o criado uma rosa, o guarda­ rural uma pena de grou.
— Qual é a graça do senhor? — indagou o professor polida­mente.
O cocheiro fitou‑o sem compreender, e depois procurou com os olhos em redor de si o “senhor” a quem se falava com tanta cerimônia.
— Como se chama, meu amigo? — repetiu o médico.
— Eu? Paulo Nagy.
— É você o cocheiro?
— Quem haveria de ser?
— Então peço‑lhe o favor de dizer à senhora que mande atrelar os cavalos, pois tenho de ir‑me embora. E agora, senhor notário, se quiser, leve‑me à casa do tal “esquilo amarelo”.
A velha morava na terceira casa. O notário puxou o cordão em forma de rabo de porquinho dependurado na porta, e logo se acharam em frente do “esquilo amarelo”, que pilava cânhamo no quintal.
— Tia Rebeca, este senhor veio de Budapeste e deseja falar‑lhe.
A casamenteira, uma velha seca e alta, cujo rosto se parecia realmente com o focinho de um esquilo, lambeu os dedos e cuidou de alisar sobre as frontes os cabelos desgrenhados. Queria aformosear‑se. Era mulher.
— Pois fale.
— Só entre quatro olhos6.
— Então não venha acompanhado, pois eu também tenho dois olhos.
— Ora! — retrucou o notário antes de retirar‑se. — Tia Rebeca talvez tenha mais de cem.
Tal cumprimento pareceu agradar à velha, cujo rosto enge­lhado e giboso se desenroscava numa espécie de sorriso.
— Sem dúvida, a gente vê certas coisas — respondeu com visível satisfação ‑, embora muitas outras a Rainha Molena7 esconda sob o seu avental. Deus escondeu os seus segredos nas ervas, nas árvores e nos corações; eu os faço vir à tona e os ponho juntos, eis toda a minha sabedoria.
— É justamente um desses segredos que eu gostaria de saber — disse o médico.
— Então me acompanhe.
A feiticeira introduziu‑o numa casa que consistia em um simples quarto. Ao longo das paredes, galinhas chocas e gansos chocavam ovos em cestas e acolhiam a visita cacarejando e arensando num alvoroço formidável. No fogão, líquidos de cheiro esquisito ferviam em diversas panelas. O nariz fino do especialista logo distinguiu os perfumes da salva e da espigélia. Pendurados na viga mestra viam‑se feixes maciços de ervas e plantas secas, que deviam ser­vir para o preparo de elixires e filtros, ao passo que da parede amolgada pendiam, par cima do baú ornado de tulipas, como fieiras de pimentões, enfiadas de lagartixas secas e de esqueletos de rãs.
Tia Rebeca limpou uma cadeira com o avental e convidou o médico a sentar‑se.
— De que é que o senhor precisa? — perguntou.
O visitante sacou do bolso dois florins de prata e entregou‑os à nigromante:
— Vim buscar umas palavras verídicas.
— Vejam só! — disse a mulher, a um tempo zombeteira a surpreendida. — Então o senhor não veio comprar folhas de espigélia, nem pó de lagartixa para colocá‑lo no cordão da camisa, mas sim palavras verídicas! Até paga para ter um bocado de verdade. Pois será servido.
Riu com uma careta hedionda e fez tilintar na mão as duas moedas.
— Hum! — murmurou sarcástica — até agora esta mercadoria tem encontrado poucos compradores. Até hoje eu vendia apenas coisas de amor. Mas, se for preciso, nem a verdade falta; é só dizer quanto quer.
— Apaixonei‑me par uma moça de cá, e gostaria que ela se apaixonasse também par mim.
A bruxa levantou as mãos para o céu:
— Ó gente! Isto é ruim! Apaixonar‑se pelo senhor! Pois você, minha pombinha, não vê que é direitinho um espantalho? Que­ria a verdade: está servido, agora.
O professor sorriu:
— Muito bem, D. Rebeca; estou muito contente, pois deve ser mesmo verdade. Mas olhe, eu não vou poupar nem gastos, nem sedas, nem jóias. Dinheiro é que não me falta.
— Bem — disse o “esquilo amarelo” ao cabo de um momento de reflexão ‑, isso é outra coisa. Não há rosa que não se deixe colher. Qual é a moça?
— É a mulher de João Gál.
A bruxa soltou uma gargalhada:
— Então, nada feito. É bonita, é namoradeira, mas... nada feito.
— Não foi a senhora quem disse que todas as rosas se deixam colher?
— Sim... menos aquelas que já murcham no copo de outro.
Era aonde Birli pretendia chegar.
— De quem é o copo? — perguntou com impaciência.
— Do belo cocheiro, o Paulo Nagy.
— Será paixão?
— Por parte dela, pelo menos, pois ela veio à minha loja para eu lhe conseguir o amor do rapaz.
— Que foi que a senhora lhe deu?
— Pó de corre-corre do ano passado para misturar à bebida dele.
— O marido suspeita de alguma coisa?
Tia Rebeca encolheu os ombros. Compadre João era um homem fino, mas a esperteza da mulher metia num chinelo a sabedoria do homem.
Birli acabara de saber o que desejava, e apressou-se em deixar a curandeira. Era tempo: os dois cavalos baios pateavam de impaciência no quintal dos Gál. O carro estava à porta, e Paulo Nagy conversava à vontade com alguém que não se via, ora soltando uns risinhos maliciosos, ora torcendo o bigode, baixando sobre os olhos e empurrando para o topete o chapéu de penas de avestruz.
— Minha bela patroa, não me quer trazer umas bolachinhas?
— Vai, malandro, pede à estalajadeira. Sei muito bem quantas vezes páras diante da estalagem — respondeu uma voz nova, folgazã e sonora, que vinha de dentro.
(A voz de D. Kriska, Deus me seja testemunha.)
— Se paro, é só por causa dos cavalos, que estão com sede — protestou o moço.
— Não será você que está com sede?
— Ora! O vinho dela é ruim como vinagre.
— Mas parece que tem os beijos doces como mel.
— Nunca experimentei.
— Queres ficar corcunda se já experimentaste?
O diálogo teria continuado se o notário e o médico não houvessem entrado na casa, onde a moça estava untando bolachas, perto do fogo, com o rosto em chamas.
Depôs a bandeja envernizada de verde e começou a desacol­chetar o corpete, cujas abas se separavam perigosamente... Um colchete rebentou‑se, caiu no chão. (O cocheiro, que do alto do carro pôde cravar os olhos dentro do decote, fez das mãos viseira, com gesto velhaco, para ver melhor.) O facultativo observou a cena com surpresa, perguntando a si mesmo o que ainda iria testemunhar. Não aconteceu, porém, nada de especial: apenas a moça tirou do corpete três cédulas de cem florins bem dobradinhas:
— Pelo incômodo, Seu Doutor.
— Muito bem — disse este, com fria reserva ‑, mas, se não mereci melhor, foi só por causa da senhora.
— Está certo — replicou a mulher. — Agüento a carga.
— Faça o que entender. Peço‑lhe que mande levar a minha mala ao carro, enquanto me despeço de seu marido.
João Gál continuava deitado onde o deixamos. O cachimbo já não fumegava; o doente estava de olhos fechados, como se quisesse cochilar.
Ao ouvir o ranger do batente, olhou de soslaio para o lado da porta.
— Vim despedir‑me do senhor.
— Então o doutor se vai mesmo? — perguntou João Gál, sem muito interesse.
— Nada mais tenho que fazer aqui.
— A Kriska deu‑lhe o dinheiro?
— Deu, sim. Mas que beleza de mulher!
João Gál reabriu os olhos inteiramente, e, estendendo ao médico a mão sadia, respondeu com uma palavra:
— Acha?
— Que linda boca! — prosseguiu o doutor, entusiasmado. — Parece um morango maduro!
— Bonita ela é, não há dúvida — concordou o outro.
E em torno de seu bigode cinzento como que se esboçou um sorrisinho.
— Puxa! Que sorte a desse malandro do Paulo, de petiscar naqueles lábios!
O velho Gál estremeceu:
— Que Paulo? Que é que o senhor quer dizer?
O médico bateu na boca, como arrependido por ter falado demais:
— É bobagem... Aliás, não é da minha conta. Mas que se há de fazer se a gente tem olhos para ver, miolos para compreender! Para dizer a verdade, fiquei logo com a pulga atrás da orelha ao ver sua mulher opor‑se à amputação. O senhor naturalmente nada viu. Mas eu começo a compreender. Digo mais: acabo de compreender.
O doente sacudiu os braços no ar com raiva, esquecido de ter um deles inchado. Mas a dor violenta que o assaltou lembrou‑lhe a situação a fê‑lo soltar um grito:
— Diabo de mão! Cale‑se, doutor, cale‑se!
— Pois não! Já acabei.
Um estertor doloroso subiu do peito do paciente, que com a mão esquerda agarrou o médico:
— Que Paulo? — rosnou com voz surda. — De quem está falando?
— Será possível que o senhor não saiba de nada? É o seu cocheiro, esse latagão bonito.
O rosto do camponês empalideceu, os lábios tremiam, o sangue subia‑lhe ao coração. Já não sentia na mão nenhuma dor. Bateu na testa.
— Tolo que fui!... Devia ter percebido. Mulher danada!...
— Não tem razão — observou o Dr. Birli. — Ela tem sangue nas veias, é só isso. É nova, também... Talvez não tenha acontecido nada até este momento... mas basta que você não exista para que ela venha a casar‑se de novo. Ora, dentro em pouco você não existirá mais.
O nababo estrebuchava no banco, suspirando violentamente.
— Mas diga‑me: no fundo, que lhe importa que ela torne a casar‑se ou não? Absolutamente nada: no seu túmulo, você não saberá mais de coisa nenhuma. Que lhe interessa que ela escolha ou não um rapagão robusto e bonito como o Paulo?
Ouvia‑se apenas o ranger de dentes do velho, como o som de duas limas atritadas uma contra a outra.
— Sr. João, nada de invejas. Um corpo de mulher como aquele, murchar sem que alguém o aproveite! Mas seria um crime! O Paulo não é nenhum tolo: há de morder com prazer a saborosa maçã que o vento aproxima de seus lábios... Também ela não pode ser censurada por querer gozar a vida. Neste negócio todo, quem tem culpa é só você; só há um trouxa, e é você mesmo, Sr. João...
O doente soltou um gemido, a fronte banhada de suor, a alma cheia de uma amargura prestes a transbordar.
— Agora, para mim, Sr. João, acho sempre melhor apertar aquele corpo com uma mão só do que não o apertar de modo nenhum.
Era demais. O nababo saltou em pé, de relance, feito um molosso em fúria, e, estendendo ao cirurgião o braço inchado, bradou com uma voz que tremia de paixão:
— Pois pegue da faca, Seu Doutor!

NOTAS
1 — Alma minha. Esta expressão, de tão largo uso antigo no português, é usada em húngaro, entre os camponeses, com um certo sentido que envolve ternura a desprezo.
2 — O homem da foice. O povo húngaro representa a morte sob os traços de uma personagem masculina.
3 — Ir vender tábuas em Földvár: morrer. Eufemismo popular equivalente ao português ‘ir para a cidade dos pés juntos’. (Földvár = “Castelo‑de‑Terra”.)
4 — Condado: divisão administrativa da Hungria.
5 — Lajos Kossuth foi o chefe da revolução húngara de 1848‑1849, sufocada, com o auxílio da Rússia, por Francisco José, imperador da Áustria a rei da Hungria.
6 — Entre quatro olhos: expressão idiomática húngara, que significa ‘á sós'.
7 — A Rainha Molena deve ser personagem de algum conto popular ou de alguma tradição mágica.

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, Rio)

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