CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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domingo

O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO DO VOVÔ - Herman Haijermans

Pobres como todos da família eram, nenhum deles fora capaz de elevar-se sequer a uma moderada condição de prosperidade. Era regra invariável para eles estar constantemente alerta, à espera de alguma miraculosa reviravolta da fortuna, em virtude da qual os cofres cronicamente vazios pudessem repentinamente abarrotar-se.
Jet, a filha mais velha, havia por algum tempo tido muito êxito, até o momento em que o marido fora internado no hospital. Era seu plano oferecer ao avô uma nova Bíblia com um fecho de ouro folheado, enquanto que cada um dos netos o presentearia com uma ninharia sem importância. Esse plano não exigia despesa excessiva, que pudesse ser mais tarde lamentada.
Dirk tinha seis anos menos que a irmã. Três outros irmãos e irmãs haviam falecido ainda ao tempo em que a mãe deles era viva. Dirk pouco ligou à proposta da irmã; era de opinião que se o avô ia possuir uma Bíblia com um fecho de ouro, não deixaria absolutamente de usar a velha Bíblia, que havia sempre lido em companhia da mulher. Além de tudo, Dirk possuía planos próprios, e cada um tinha direito às suas convicções. Ele não entrava numa igreja havia anos, e certamente votaria contra a idéia da Bíblia. Se eles todos deviam cotizar-se para dar um presente, era preciso ter-se o assentimento de todos. Ora, Dirk havia visto uma esplêndida poltrona na vitrina de uma loja de móveis onde todos os preços haviam sofrido uma redução de vinte por cento. Oferecendo-a ao velho, algumas palavras bem escolhidas poderiam ser-lhe endereçadas com o peculiar sentido de augurar-lhe descanso nos últimos anos de sua vida. Além disso, a poltrona em que ele lia o seu jornal junto à janela era uma ruína; suas molas já cutucavam o assento.
Marie era a segunda filha. Havia sido separada do marido a expensas do Estado, e agora esperava o quarto filho, antes de ser dada a sentença final. Só mesmo Dirk poderia propor uma coisa daquelas! Ninguém forçava o avô a sentar-se sobre as molas da velha poltrona; além do mais, não fora vovô quem arruinara o assento por muito usá-lo? Vovô dissera isso mil vezes. Se a família toda ia dar-lhe um presente, devia ser uma coisa útil, e não algo estúpido. Agora, um sobretudo, um gorro quentinho, um par de luvas ou uns chinelos bons e fortes, isso, sim, seria prático e quase nada dispendioso.
Piet e Frans, nenhum deles havia contribuído com alguma coisa para a caixa familiar durante o ano anterior. Haviam visitado várias vezes a casa de penhores e tiveram que ser auxiliados pelo avô. Fizeram mais barulho que todos os outros e manifestaram-se irrevogavelmente contra a Bíblia, a poltrona e o sobretudo. Tinham idéias grandiosas, porém sem o cum quibus para realizá-las; falaram em decorar a sala de estar com bandeirolas e festões, enquanto vovô estivesse dormindo, e calcularam o custo de um generoso estoque de aguardente, licores e gim.
Henk era o mais novo. Havia recentemente se engajado para o serviço nas Índias Orientais. Apesar de haver já há muito gasto o último vintém do prêmio do alistamento, achava que o problema da decisão acerca do presente (restavam poucos dias para a data do aniversário) deveria ser resolvido com oferecer-se ao velho uma fotografia da família inteira, filhos e netos, todos juntos num grupo. Seria uma bela coisa para todos, especialmente para o próprio Henk, quando estivesse longe, nas Índias.
Depois de alguma discussão, essa proposta foi aceita. E no dia seguinte lá se dirigiram eles ao estabelecimento fotográfico e posaram. Membro algum da família faltou, e mesmo Toon, o marido de Jet, que havia saído do hospital na noite anterior, com a barba muito crescida, conseguiu estar presente. As mulheres — Marie, Truns e Jet — sentaram-se em cadeiras, no centro do grupo. Os homens — Dirk, Piet, Frans, Henk e Toon — puseram-se atrás, de pé, Piet na extremidade esquerda, com seu filho de um ano e meio, e Henk, no seu uniforme novo, na extremidade direita, com Santje, a mais nova das choramingas crianças de Jet. Os outros cinco netos ajoelharam-se no assoalho, apoiados aos joelhos das mães.
Eram quatorze ao todo, um número a mais que o aziago. Disse o fotógrafo que raramente tivera o prazer de ver um grupo mais distinto no seu estúdio. Entretanto, não foi fácil para o artista executar o seu trabalho. Willy de Piet sustentou um berreiro contínuo, pois o amedrontava o barbudo sujeito que metia a cabeça sob o pano negro; e quando o fotógrafo sacudiu uma boneca sobre a câmera, a fim de atrair a atenção dos outros pequenos, Willy deu tal grito que Truns teve de levantar-se para acalmá-lo. Isso continuou por um inteiro quarto de hora, e quando finalmente conseguiram desembaraçar-se, estavam em tal tensão que se punham a rir quando alguém suspirava ou falava. As primeiras duas tentativas de pose não tiveram êxito. Na primeira, Santje espirrou — de propósito, pareceu — e justamente quando o fotógrafo acabou de contar até três, Henk berrou. Na segunda vez, Kareltje de Marie pôs-se de pé muito cedo, porque pensou que a coisa terminara, e queria acertar as contas com Jan de Jet que o havia beliscado. Cada uma das crianças recebeu o seu puxão de orelha. Depois que amainou a choradeira, e que cada um se manteve quieto, na sua melhor posição domingueira, tudo foi bem na terceira tentativa.
Ninguém esperava que o fotógrafo fosse pedir um pagamento imediato; mas, conhecendo ele Dirk, que trabalhava na mercearia em frente, insistiu no recebimento. O rapaz deu-lhe por conta dois florins, e o profissional prometeu que o retrato estaria pronto na Quarta-feira de manhã, às dez horas.
— Mas — perguntou prudentemente Dirk, — e se a coisa não sair bem?
— Nesse caso — replicou o fotógrafo, — vocês não precisam pagar.
— Muito bem, então — disse Dirk, com evidente alívio.
Naturalmente tudo foi conservado em segredo para o avô. Quer dizer: sobre o caso ele foi informado, até à noitinha, por não mais que quatro membros da família. Jan de Jet havia aparecido à tarde, com sua irmã, para pedir balas e dois centavos.
— Vovô — disse ele —, eu sei o que o senhor vai ganhar no seu aniversário; o senhor nem pode imaginar o que é.
O velho riu, e tirando o cachimbo de entre as desdentadas gengivas, perguntou:
— É uma coisa muito bonita, hein, Jan?
— Nós não devemos dizer, vovô.
— É coisa boa de se comer?
— Não. Estragaria o seu estômago — disse ele, rindo.
— É coisa para ler, heim?
— O senhor pode ler.
— Coisa para a gente sentar-se?
— O senhor pode sentar-se nela, ah, ah!
— Para vestir?
— Não. O senhor não pode vesti-la.
— Bem, eu acho que não posso adivinhar o que é — disse ele sorrindo alegremente.
Na esperança de que os dois centavos que invariavelmente recebia do avô todos os domingos pudessem ser aumentados para três, o pequeno deixou escapar um indício.
— Todos nós — papai, mamãe, Marie, tia Truns, tio Dirk, tio Piet, tio Henk bem vestido com seu uniforme e os garotos — tivemos que ficar bem quietinhos por mais de meia hora, para conseguir a coisa.
— Ah, sim? — e o velho meneou a cabeça. — E isso será posto numa moldura?
— Não tenho licença para dizer.
Uma hora mais tarde Henk entrou para tomar um gole de qualquer coisa.
— Pois é, papai, o senhor terá uma surpresa na Quarta-feira. Vai haver alguma coisa que o senhor nunca viu igual antes. Jet queria lhe dar uma Bíblia nova. Dirk preferia uma poltrona, e Marie um sobretudo. Mas eu bati o pé; sei que o senhor não ligaria a coisas como essas. Assim, eu disse... Bem, o senhor vai ver. Não tem graça se souber antes.
— Aposto que eu posso adivinhar o que é. Posso sentir o cheiro no ar.
— Pois eu aposto com o senhor. Mesmo se o senhor ficar imaginando o dia inteiro e a noite inteira...
Por um momento o velho permaneceu silencioso, a pensar, por detrás de uma nuvem azulada de fumo; e de repente disse:
— É uma coisa quadrada. Tem vinte e oito olhos, vinte e oito mãos, vinte e oito orelhas e quatorze bocas. Não estou longe, estou?
— Puxa vida! — exclamou Henk. — Será que já deram com a língua nos dentes? Bem, e o senhor está contente?
— Eu estava mesmo para lhe dizer — continuou o avô — que você precisava tirar uma fotografia antes de partir para as Índias. Nós não nos veremos de novo tão cedo.
Mais tarde, no mesmo dia, Dirk e tia Jet forneceram maiores indícios da grande surpresa, e ficaram desapontados quando verificaram que outros haviam revelado o segredo. Agora que aquilo não era mais um segredo, todos concordaram em que a fotografia era, afinal de contas, o melhor presente, bem superior ao que teria sido a Bíblia, a poltrona ou o sobretudo. Uma fotografia da família era, bem pesadas as coisas, um presente para todos e para todo o tempo. Vovô receberia uma cópia grande, numa moldura, enquanto os outros teriam cópias comuns, sem moldura. Cada um deles, tanto os pequenos quanto os adultos, encheram-se da mais aguda curiosidade, à espera de poder ver a fotografia.
Terça-feira à noite, após vovô ter-se recolhido (um velho senhor de 70 anos não pode ficar acordado até tarde), Dirk, Piet e Henk enfeitaram a sala de estar em grande estilo. Bandeirolas e festões decoraram o alto das paredes e fizeram com que o aposento parecesse o local de um casamento. Acima do espelho dependuraram uma folha de cartolina, na qual letras prateadas, recortadas por Truns, diziam o seguinte: Que Deus Lhe Dê Muitos Anos Mais Para Viver Entre Seus Filhos e Netos. Ao redor dos braços e no encosto da poltrona em que morrera a Vovó, fora entretecida uma grinalda de rosas de papel.
Para que o velho não suspeitasse o que eles faziam, moveram-se calçados apenas em meias. E para não acordá-lo, prenderam as decorações com grampos de cabelo, em vez de usarem martelo e pregos. Jet e Marie tiveram que voltar para casa com os cabelos soltos, pois usaram todos os seus grampos.
Na manhã da grande festividade, o sol refulgiu brilhantemente nos cortinados de tule, e de tal maneira dourou as flores nas janelas, que tornou impossível a não integração num clima de dia festivo. Nessa amável manhã a sala inteira, alegrada com os festões e as bandeirolas, apresentava-se de fato extraordinariamente grandiosa. Às nove horas ofereceram ao vovô uma grande chávena de chá, acompanhada de duas fatias de pão com manteiga. Era preciso mantê-lo lá em cima até que a fotografia chegasse, às dez. O fotógrafo prometera entregá-la a Dirk, a essa hora, e naturalmente cumpriria a sua palavra.
Todos se haviam vestido da melhor maneira. Jan de Jet ensaiava o poema que iria recitar para o avô quando este chegasse. Os passos dele eram agora audíveis; ele andava lá em cima de um lado para outro. Já havia chamado duas vezes, perguntando quanto tempo teria que esperar.
À batida das dez, Dirk entrou pelo pequeno jardim, vindo da rua. Mas suas mãos estavam vazias e sua expressão era lastimosa.
— Onde está a fotografia? — gaguejou Jet, tremendo de excitação. — Ele não a entregou a você?
— Você não a trouxe consigo? — perguntou Marie. — Pelo amor de Deus, diga alguma coisa! Por que está parado desse jeito?
— O velho unha-de-fome! — rosnou Dirk, cerrando os punhos. — Ele a mandou, sem dúvida, mas com a conta a ser paga à vista.
— Sim, e ele que prometeu... Gostaria de rebentar-lhe os dentes! Como se eu não fosse pagá-lo!
— Então, por que você não lhe deu o dinheiro? — perguntou Truns, com perfeita inocência, embora já estivesse determinada a não pagar a sua quota enquanto a fotografia não tivesse sido entregue. — Nós todos estamos prontos a entrar com a nossa parte.
— Que diabo! — assanhou-se Dirk. — Você anda com tanto dinheiro sobrando no bolso? Você esperava que eu pagasse o homem com o dinheiro da caixa da mercearia?
— Calma, calma! — disse Frans, tentando suavizar as coisas. — Ninguém poderia exigir isso de você. Afinal de contas, o fotógrafo não disse a nós todos que não teríamos de pagar nada se a fotografia não saísse boa? Pagamento à vista, que idéia! Não se pode pedir a ninguém que compre nabos em sacos fechados, sem examiná-los antes!
— Bem, será uma surpresa para nós todos — disse Piet, que estava perfeitamente desinteressado acerca da questão do pagamento.
Nesse momento entrou Henk.
— Então, onde está ela? — perguntou, com o ar importante de quem havia cogitado da idéia em primeiro lugar e já pago a sua quota.
— Podemos esperar sentados — respondeu Jet. — Esse sórdido fotógrafo não a entregará sem o pagamento.
— Então?...
— Então coisa nenhuma! — disse asperamente Dirk. — Eu não tinha o que faltava pagar, e o entregador levou a fotografia de volta.
— Bom Deus! — disse Henk. — Eu pensei que você conhecesse o sujeito. Você combinou as coisas.
— Eu posso obrigar o sujeito a entregá-la? — disse Dirk. — Fui procurá-lo, mas ele não estava; não voltará até a tarde. Se você tivesse pago a sua parte, eu não teria ficado com cara de idiota.
— Não me diga que, se tivesse tentado...
— Você é assim tão liberal? — replicou Dirk com calor. — Se em vez disso tivéssemos comprado a poltrona, não teríamos que receber coisa que não tivéssemos visto.
Em meio a essa discussão, a porta rangeu e vovô apareceu. Já havia chamado três ou quatro vezes do topo da escada; queria saber quando poderia descer, e estava curioso por conhecer a razão da contenda.
— Uma vez que parece que vocês me esqueceram — disse ele, radiante, — pensei que seria melhor eu mesmo dar uma olhadela, sim senhores.
Estava cuidadosamente barbeado e usava uma imaculada gravata branca. Fumava o novo cachimbo, dado por Jan como seu primeiro presente, quando lhe levara o chá, lá em cima. Olhava para a decoração com a vista turvada.
— Parabéns, papai! — gritou Jet, beijando as pergamináceas faces do velho. — Muitas outras felizes vezes!
Chegaram-se então os outros, cada um por sua vez, dirigindo-lhe as suas saudações de aniversário, enquanto ele se sentava na poltrona enfeitada e lia a inscrição na cartolina acima do espelho. Agradeceu em voz trêmula as suas atenções, meneando a cabeça. Depois que acabou, lançou o olhar em derredor, expectante, em busca do grande presente. E de seis bocas ouviu simultaneamente a história do trágico acontecimento e da inominável torpeza do fotógrafo.
Mas já antes da noitinha a felicidade estava restaurada: a fim de não desapontar seus numerosos filhos, filhas e netos, e turvar a glória do pretendido presente, o próprio avô completou a importância devida.


(Herman Haijermans, in Maravilhas do conto universal – Cultrix, SP, 1958)

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