CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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terça-feira

O XEQUE BOU-AKAS - Alexandre Dumas

No Ferdj-Ouah existe um xeque chamado Bou-Akas-Ben-Acour. Trata-se de um dos nomes mais antigos do país, que aparece na história das dinastias bérberes e árabes de Ibn Khaldoun.
Bou-Akas (o homem de maça), também conhecido como Bou-d’Jenoui (o homem do punhal), é um tipo admirável de beduíno do Leste. Seus ancestrais conquistaram Ferdj-Ouah, e Bou-Akas, após ter consolidado a conquista, reina agora sobre o “belo país”.
O xeque El-Islam-Mohamed-Ben-Fagoune, que fora guindado ao poder pelo marechal Valée, convenceu Bou-Akas a reconhecer o poderio francês. Em sinal de vassalagem, enviou este um cavalo de Gada ao governador, mas recusou-se a ir pessoalmente. Temia ser feito prisioneiro dos franceses.
O xeque tem quarenta e nove anos de idade e veste-se à maneira cabila: um manto de lã com cinturão de couro e um capuz debruado de corda fina. Traz à bandoleira um par de pistolas e um “flissa” cabila ao lado esquerdo; do pescoço pende-lhe um pequeno punhal negro. À sua frente caminha um negro, levando-lhe o fuzil, e ao seu lado cabriola um grande galgo.
Quando alguma tribo vizinha às doze tribos por ele comandadas lhe causa qualquer dano, Bou-Akas desdenha de marchar contra os ofensores e contenta-se com enviar seu negro à vila. Este exibe ali o fuzil do xeque, e o dano fica reparado.
Bou-Akas tem a seu serviço duzentos ou trezentos Tolbas, que lêem o Corão ao povo. Todo peregrino que, em viagem a Meca, atravesse o país, recebe subsídios de três francos e permissão para demorar-se no Ferdj-Ouah, como hóspede do xeque, pelo tempo que deseje. Todavia, quando chega ao conhecimento de Bou-Akas qualquer denúncia de ser o peregrino algum impostor, ele envia seus guardas à procura do culpado. Uma vez localizado este, os guardas o deitam de bruços e aplicam-lhe cinqüenta bastonadas à planta dos pés.
Há ocasiões em que o xeque tem trezentos convidados ao jantar. Ao invés de compartilhar das iguarias, fica a caminhar em meio aos convidados, apoiado a um bordão, supervisando o serviço dos criados. Mais tarde, caso tenha sobrado alguma coisa, come também, mas sempre por último.
Seu domínio se estende de Mali a Raboue, da ponta sul da Babour até duas milhas aquém de Gigelli. Quando o governador de Constantinopla — o único homem de quem reconhece o poder — encaminha-lhe algum viajante, sendo este pessoa de prol ou portador de boas recomendações, Bou-Akas entrega-lhe seu fuzil, seu cão ou seu punhal. Se recebe o fuzil, o viajante o pendura a tiracolo; se recebe o cão, prende-o por uma correia; se recebe o punhal, ata-o ao pescoço. De posse de qualquer desses talismãs, todos investidos de determinado grau de honra, pode atravessar incólume as doze tribos. Onde quer que se encontre, recebe hospedagem, já que é um protegido de Bou-Akas.
Ao deixar o Ferdj-Ouah, pode o viajante entregar o punhal, o fuzil ou o cão a qualquer árabe que encontre. Este, se estiver caçando, abandonará a caça; se estiver lavrando, largará a charrua; se estiver entre seus familiares, deixá-los-á, para ir entregar ao xeque seus pertences.
O pequeno punhal de cabo negro é tão conhecido, que emprestou seu nome a Bou-Akas, também conhecido por Bou-d’Jenoui, o homem do punhal. Com ele Bou-Akas apressa o curso da justiça, quando degola algum culpado.
Ao assumir o governo, Bou-Akas encontrou o país infestado de ladrões, mas logo descobriu um meio de liquidá-los. Vestiu-se de mercador e deixou cair uma moeda de ouro na rua, tendo o cuidado de não perdê-la de vista. Uma moeda de ouro não permanece muito tempo assim abandonada. Quando alguém a apanhava e a colocava no bolso, Bou-Akas fazia um sinal ao seu “chaousse”, também disfarçado de mercador, e este, sabedor das intenções do amo, encarregava-se de agarrar o culpado e de decapitá-lo na mesma hora.
Hoje os beduínos costumam dizer que uma criança de doze anos pode atravessar o Ferdj-Ouah com uma coroa de ouro à cabeça, sem que ninguém estenda a mão para roubá-la.
O pequeno punhal do xeque goza de muita reputação entre os pastores das montanhas cabilas. Estes, ao se queixarem de alguma cabra muito vadia, costumam gritar-lhe:
— La guela ou Djinoni Bou-Akasli oulli fi gabta — que quer dizer: Que a morte te leve, e que seja a navalha de Bou-Akas aquela a ser embainhada.
Bou-Akas tem grande respeito pelas mulheres. Assim, estabeleceu no Ferdj-Ouah um costume: quando as mulheres estão enchendo na fonte os seus cantis de pele de bode, os homens devem desviar-se, para não encontrá-las.
Certo dia Bou-Akas — que depois do que relatamos poderia bem ser chamado “o pai da justiça” — ouviu falar de um cádi de uma de suas doze tribos que pronunciava sentenças dignas do rei Salomão. Como um novo Harum-al-Raschid, quis ajuizar pessoalmente da verdade do que lhe contavam. Trajou-se, pois, como simples cavaleiro, sem levar nenhum dos atributos ou armas que o distinguiam, e sem qualquer comitiva pôs-se a caminho, montando um cavalo de raça que, não obstante, nada trazia que pudesse denunciá-lo como o de tão grande chefe.
Aconteceu que no dia em que chegou à povoação onde o cádi fazia justiça era dia de feira, e em conseqüência dia de julgamento. Aconteceu ainda (em tudo protege Maomé seu servo!) que, à entrada da cidade, encontrou Bou-Akas um aleijado, e este, agarrando-se ao seu albornoz como o pedinte ao manto de São Martinho, rogou-lhe uma esmola.
Bom muçulmano que era, Bou-Akas deu-lha, mas o aleijado continuou agarrado ao seu manto.
— Que queres mais? — perguntou o xeque. — Já te dei a esmola que pediste.
— Sim — retrucou o aleijado — mas a lei não diz apenas “darás esmola a teu irmão”. Diz também: “Farás por ele tudo quanto lhe pedir”.
— Pois bem. Que mais posso fazer por ti?
— Poderás evitar que eu, pobre réptil, seja pisoteado pelos homens e pelos animais, coisa que não deixará de acontecer se eu for rastejando até a vila.
— E como poderei impedir isso?
— Levando-me à garupa de teu cavalo até a praça do mercado, onde tenho meu ponto.
— Pois seja — concordou Bou-Akas. E erguendo o aleijado, ajudou-o a montar.
Apesar de algumas dificuldades, a operação foi coroada de êxito. Os dois cavaleiros atravessaram a povoação, não sem excitar a curiosidade geral, e chegaram finalmente à praça.
— É aqui que querias vir? — perguntou Bou-Akas ao mendigo.
— Sim.
— Então desce.
— Desce tu.
— Se é para te ajudar a desmontar, descerei.
— Não, é para deixar-me o cavalo.
— Como, deixar-te meu cavalo?
— Porque o cavalo me pertence.
— Pois sim! É o que veremos.
— Escuta e reflete — disse o aleijado.
— Escutarei e refletirei depois.
— Estamos na povoação do cádi justiceiro.
— Eu sei.
— Vais apresentar queixa contra mim ao cádi?
— É possível que o faça.
— Acreditas então que ele, ao ver-nos — tu com as pernas sãs que Deus te deu, eu com estas pobres pernas aleijadas — não decidirá que o cavalo pertence àquele que mais necessita dele?
— Se proferir tal sentença, não poderá ser chamado de justiceiro, pois ter-se-á enganado no seu julgamento.
— Chamam-no de cádi justiceiro, mas não o chamam de cádi infalível.
— Por minha fé — disse o xeque consigo mesmo. — Eis uma excelente oportunidade de pôr o juiz à prova. Vamos à presença do cádi.
E Bou-Akas, levando o cavalo pela brida, a cuja garupa estava agarrado o mendigo como um macaco, abriu caminho por entre a turba até onde o cádi, à moda do Oriente, fazia justiça publicamente.
Duas causas estavam em litígio, e iriam ser julgadas antes. Bou-Akas tomou lugar entre a assistência. A primeira das causas era entre um “taleb” e um camponês — entre um sábio e um trabalhador. Tratava-se da mulher do sábio, que o camponês roubara e jurava ser sua. A mulher, por sua vez, não reconhecia nem a um nem a outro como seu marido, ou melhor, reconhecia ambos, o que tornava a situação extremamente embaraçosa.
O juiz ouviu as duas partes, refletiu por um instante e disse:
— Deixai-me a mulher e voltai amanhã.
Após saudarem o juiz, ambos os litigantes se retiraram.
Chegou a vez da segunda causa. Esta envolvia um açougueiro e um vendedor de azeite. O primeiro tinha as vestes todas manchadas de sangue, e o segundo tinha-as enodoadas de óleo. Declarou o açougueiro:
— Fui comprar uma jarra de azeite a este homem. Para pagá-lo, tirei da bolsa um punhado de moedas. As moedas o tentaram, e ele agarrou-me o pulso. Chamei-o de ladrão, mas ele não quis soltar-me. Viemos juntos ao tribunal, eu com as moedas fechadas na mão, ele agarrado ao meu pulso. Juro por Maomé que este homem mente quando diz que o dinheiro lhe pertence: estas moedas são minhas, muito minhas.
Disse o mercador de azeite:
— Este homem veio comprar azeite na minha loja. Depois de encher a jarra, perguntou-me: “Tens troco para uma peça de ouro”? Enfiei a mão no bolso e tirei-a cheia de moedas, que coloquei sobre a soleira da porta. Ele então se apoderou do dinheiro e já ia fugir, quando comecei a gritar “pega ladrão!” e agarrei-o pelo pulso. Apesar dos meus gritos, não quis devolver-me o dinheiro. Por isso trouxe-o até aqui, para que o julgues. Juro por Maomé que este homem mente quando me acusa de roubo: estas moedas são minhas, muito minhas.
O juiz meditou por uns instantes.
— Deixai o dinheiro — disse o juiz — e voltai amanhã.
O açougueiro depositou as moedas numa dobra do manto do cádi. Feito isto, ambos os queixosos, depois de terem saudado o juiz, se retiraram.
Chegou a vez de Bou-Akas e o aleijado.
— Senhor cádi — declarou o xeque — vim de uma vila distante, com o propósito de comprar mercadorias neste mercado. À porta da povoação, encontrei este aleijado que me pediu esmola e rogou-me em seguida que o levasse à garupa do meu cavalo até o mercado. Alegou que, se se arriscasse às ruas, pobre réptil que é, corria o risco de ser pisoteado por passantes ou animais. Dei-lhe a esmola que pedira e ajudei-o a montar. Quando chegamos à praça, recusou-se a descer, mentindo que o cavalo lhe pertencia. Ameacei-o com a justiça, mas ele respondeu-me: “Bah! O cádi é homem sensato demais para não compreender que o cavalo pertence àquele que não pode andar a pé”. Eis o caso em toda a sua verdade, senhor juiz. Juro por Maomé!
Depois disso, o mendigo declarou:
— Senhor cádi, eu vinha ao mercado desta cidade para tratar de negócios, montado em meu cavalo, quando vi este homem sentado à beira da estrada. Parecia semi-agonizante. Aproximei-me dele e perguntei-lhe se lhe ocorrera algum acidente. “Nada me aconteceu — respondeu. — Estou apenas exausto, e se o senhor é caritativo, poderia bem levar-me até a vila, onde tenho negócios a tratar. Quando chegarmos à praça do mercado, desmontarei e rogarei a Maomé que dê, a quem me prestou socorro, tudo quanto possa desejar”. Assenti ao seu pedido, e grande foi o meu espanto quando, chegados à praça, ele ordenou-me que desmontasse, dizendo que o cavalo lhe pertencia. Diante disso, resolvi trazê-lo ao tribunal, para que julgues o caso. Eis toda a verdade. Juro por Maomé!
O cádi fez ambos repetirem seus depoimentos. Depois de refletir por alguns instantes, ordenou:
— Deixem-me o cavalo e voltem amanhã.
O cavalo foi entregue ao cádi, e ambos os litigantes, após terem reverenciado o juiz, se retiraram.
Na manhã seguinte, não apenas os interessados, como grande número de curiosos, compareceram ao tribunal. A importância e a dificuldade das causas em litígio explicam tamanha afluência de espectadores. O cádi, seguindo a mesma ordem da véspera, chamou em primeiro lugar o “taleb” e o camponês, e disse ao “taleb”:
— Eis tua mulher. Podes levá-la, ela te pertence.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Aplicai cinqüenta bastonadas à planta dos pés desse homem — acrescentou, indicando o camponês.
O “taleb” levou consigo a mulher, enquanto os guardas cumpriam as ordens do cádi.
Logo em seguida foi julgada a segunda causa. O mercador do azeite e o açougueiro aproximaram-se, e o cádi disse ao açougueiro:
— Eis teu dinheiro. Tu o tiraste realmente da tua bolsa; jamais pertenceu a esse homem — finalizou, apontando para o mercador de azeite.
O açougueiro levou suas moedas, e os guardas aplicaram cinqüenta bastonadas à planta dos pés do mercador.
Foi convocada a terceira causa. Bou-Akas e o aleijado se aproximaram.
— Ah! sois vós — disse o cádi.
— Sim, senhor juiz — responderam ambos, a uma só voz.
— Reconhecerias teu cavalo em meio a vinte outros? — perguntou o cádi a Bou-Akas.
— Certamente — respondeu este.
— E tu?
— Sem dúvida alguma — retorquiu o aleijado.
— Vem então comigo — ordenou o cádi, dirigindo-se ao xeque.
Saíram juntos em direção à cavalariça. Bou-Akas reconheceu seu cavalo entre vinte outros.
— Muito bem — disse o cádi. — Vai esperar-me no tribunal e manda-me teu adversário.
Bou-Akas voltou ao tribunal, e tendo cumprido o mandado do juiz, sentou-se à espera.
O mendigo chegou à cavalariça tão depressa quanto lhe permitiam as pernas aleijadas. Mas seus olhos eram sãos, e ele apontou sem hesitação para o cavalo certo.
— Muito bem — disse o cádi, mais uma vez. — Vem encontrar-me no tribunal.
O cádi tomou lugar à esteira, e todos, impacientes, ficaram à espera do aleijado. Este chegou, ofegante, ao cabo de cinco minutos.
— O cavalo é teu — disse o juiz, dirigindo-se a Bou-Akas. — Podes ir buscá-lo na cavalariça.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Apliquem cinqüenta bastonadas no traseiro desse homem — ordenou, indicando o aleijado.
Homem justo que era, levara em consideração as condições físicas do réu e mudara o local de aplicação do castigo.
Bou-Akas foi buscar seu cavalo, enquanto os guardas aplicavam as cinqüenta bastonadas no aleijado. Depois voltou à presença do cádi.
— Não estás satisfeito? — perguntou-lhe este.
— Pelo contrário — replicou o xeque. — Mas queria ver-te para saber por que inspiração divina praticas justiça. Pois não duvido que os dois outros julgamentos tenham sido tão justos quanto o meu. Não sou nenhum mercador, sou Bou-Akas, xeque do Ferdj-Ouah. Ouvi falar de ti e quis conhecer-te pessoalmente.
O cádi inclinou-se para beijar a mão de Bou-Akas, mas este o deteve.
— Vamos, estou impaciente por saber como descobriste que a mulher era do sábio, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.
— Foi muito simples, senhor — replicou o cádi. — Viste que retive comigo, durante uma noite, a mulher, o dinheiro e o cavalo. À meia-noite, ordenei que a mulher fosse despertada e trazida à minha presença. Mandei-a então limpar o meu tinteiro. Dando provas de que estava habituada a fazer tal serviço, ela o apanhou, tirou-lhe o algodão, lavou-o corretamente, colocou-o de novo no estojo e encheu-o de tinta. Disse comigo mesmo: “Se fosse mulher de camponês, não saberia como limpar um tinteiro”.
— Seja — admitiu Bou-Akas. — Isso quanto à mulher. E quanto ao dinheiro?
— Com o dinheiro foi diferente. Notaste como o mercador estava sujo de óleo, e sobretudo como tinha as mãos engorduradas?
— Sim, notei.
— Pois bem. Coloquei o dinheiro numa jarra cheia d’água, e hoje de manhã examinei-a. Nenhuma gota de óleo subira à superfície da água. Convenci-me, pois, de que as moedas pertenciam ao açougueiro. Se fossem do mercador, estariam engorduradas, e nesse caso haveria gota de óleo à superfície.
— Muito bem! — concordou Bou-Akas, inclinando a cabeça. — Isso quanto ao dinheiro. E quanto ao meu cavalo?
— Ah! Foi mais difícil. Até esta manhã estava ainda embaraçado para decidir.
— Quer dizer que o aleijado não reconheceu a montaria?
— Ele a reconheceu, e de modo tão positivo quanto o senhor.
— E então?
— Quando levei cada um de vós à estrebaria, não pretendia saber se reconheceríeis o cavalo, e sim se o cavalo os reconheceria. Quando te aproximaste do cavalo, ele relinchou. Quando foi a vez do aleijado, o cavalo escoiceou. Refleti então: o cavalo pertence àquele que tem boas pernas, e não ao aleijado.
Bou-Akas meditou por longo tempo. Por fim, disse:
— O Senhor está contigo. Deverias ocupar o meu lugar, e eu o teu. Contudo, embora eu esteja certo de que és digno de ser xeque, não estou muito certo de ser eu capaz de desempenhar satisfatoriamente o cargo de cádi.


(Alexandre Dumas, Histórias fabulosas – Cultrix, SP)

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