CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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segunda-feira

A DEMONSTRAÇÃO DO PROF. ROUSS - Josef e Karel Capek

Entre os presentes sobressaíam: o Ministro do Interior e o da Justiça, o chefe da Polícia, vários deputados, altos funcionários, juristas preeminentes, cientistas de renome e, naturalmente, representantes da imprensa, pois estes metem o nariz em tudo.
— Meus senhores — começou o Sr. C.G. Rouss, professor da Universidade de Harvard, nosso famoso patrício, hoje cidadão americano —, a experiência que eu vai demonstrar estar baseada em trabalhos já antigos de um grupo de eruditos cientistas, colegas e colaboradores meus. Indeed o assunto, de modo geral, não é novidade, e... realmente... é coisa até... batida — continuou, contente por lhe haver ocorrido a palavra exata. — Só the method, e, hum... a aplicação prática de some experiences teoréticas foram object do meu trabalho. Then, peço, principalmente aos senhores criminalistas, julgarem a coisa na base de sua própria prática. Well! Vejamos! É o seguinte: Eu direi uma palavra, e os senhores deverão responder-me com outra palavra que just in the moment lhes ocorra, ainda que seja um nonsense... ou... uma bobagem, quer dizer, um disparate. E no fim da experiência eu ir dizer, conforme as palavras respondidas pelos senhores, o que há nas suas cabeças, o que estão pensando e o que estão escondendo. Compreendem, gentlemen? Eu não vai esclarecer teoreticamente: trata-se de associações, idéias reprimidas, um pouco de sugestão e something else. Eu vai ser muito breve: o que se precisa, é... well... é eliminar a vontade e a reflexão; assim se revelam as connections subconscientes e eu vai reconhecendo, por aí, o que... o que... — o famoso ilustre professor procurava a expressão — well, what’s on the bottom of your mind.
— O que está no âmago de sua alma — soprou alguém no auditório.
— Perfeitamente — concordou C.G. Rouss, satisfeito. — Os gentlemen vão apenas dizer, automaticamente, o que lhes vier à cabeça no momento, sem nenhum control of reserve. Meu business será, então, to analyse tais idéias. That’s all. Quero demonstrá-lo primeiro num caso, hum... criminal, depois em alguém do auditório que se prontifique a isso. Well, o Sr. Chefe da Polícia irá dizer-nos what is the matter about o caso desse homem. Faça o favor.
O chefe da Polícia levantou-se e esclareceu:
— Meus senhores, o homem que mandarei introduzir neste recinto é Tcheniek Sukanek, serralheiro e lavrador em Zabiehlice. Está preso há uma semana, por suspeita de ser o assassino do chofer de táxi José Tchepelka, desaparecido há quinze dias. Os motivos de tal suspeita são os seguintes: o carro de Tchepelka foi encontrado no palheiro do preso; no volante e debaixo do banco do chofer notaram-se manchas de sangue humano. O indiciado naturalmente nega tudo, afirmando haver comprado o carro de Tchepelka por seis mil coroas, pois tem a intenção, ele mesmo, de começar a trabalhar como chofer de praça. Apuramos que o desaparecido vinha efetivamente falando em abandonar o negócio, vender o carro e empregar-se como chofer. Aí, porém, terminam os vestígios. À falta de outros indícios, o preso deverá ser entregue amanhã à Casa de Detenção de Pankrats. Pedi a autorização a fim de que o Prof. Rouss, nosso ilustre compatriota, o submeta à sua experiência. Quando quiser, professor...
— Well — disse o professor, que atentamente ia tomando algumas notas. — Mande-o entrar, please.
A um sinal do chefe da Polícia, um guarda introduziu Tcheniek Sukanek, rapaz de cara fechada, com uma expressão que denunciava o mais profundo desprezo, parecendo dizer que estava resolvido a não se entregar.
— Venha cá — disse o professor em tom severo. — Não lhe vou fazer perguntas; apenas direi umas palavras, e você terá de retrucar imediatamente com a primeira palavra que lhe vier à cabeça. Está compreendendo? Pois preste atenção: copo!
— M...a! — respondeu o Sr. Sukanek, teimoso.
— Escute, Sukanek — interveio veemente o Chefe da Polícia —, se você não quiser responder direito, eu o mando a novo interrogatório, compreendeu? E isso, você sabe, durará a noite toda. Tome cuidado! Recomecemos!
— Copo — repetiu o Prof. Rouss.
— Cerveja — resmungou Sukanek.
— Assim, como você vê — disse o ilustre professor —, vai tudo indo bem.
Sukanek olhava desconfiado. Não haveria nisso algum truque? — pensava.
— Rua — diz o professor.
— Carros — responde Sukanek de má vontade.
— Deve responder mais depressa. Casa! — Campo. — Torno! — Latão.
— Muito bem! — Parecia que Sukanek já não fazia objeções à brincadeira.
— Mãe! — Tia. — Cachorro! — Canil. — Soldado! — Artilheiro.
Assim foi indo, golpe a golpe, cada vez mais depressa; agora Sukanek parecia achar graça; lembrava-se da maneira de trunfar no jogo de cartas. Meu Deus! De quanta coisa ele se lembrava com essa brincadeira!
— Caminho! — Estrada. — Praga! — Beroun. — Esconder! — Enterrar. — Limpar! — Manchas. — Trapo! — Saco. — Enxada! — Quintal. — Buraco! — Cerca. — Cadáver!
Silêncio.
— Cadáver! — insistiu o professor. — Então você o enterrou ao pé da cerca, não?
— Não disse isto! — explodiu o Sr. Sukanek.
— Você enterrou o cadáver ao pé da cerca do seu quintal — repetiu firmemente C.G. Rouss — depois de o ter matado quando ia a caminho de Beroun! Limpou as manchas de sangue do carro com um saco. Que fez desse saco?
— Não é verdade! — gritou Sukanek. — Comprei o carro do Sr. Tchepelka. Ninguém me embrulha assim, não, ouviu?!
— Espere, homem — disse Rouss —, pedirei aos policemen que vão lá verificar. Isto não é mais o meu business. O homem pode sair. Reparem, meus senhores, que gastamos dezessete minutos. Foi muito rápido. É que era um caso muito banal. Quase sempre dura uma hora. Agora eu gostaria de pedir que viesse algum dos senhores, a quem direi também umas palavras. Desta vez vai demorar muito, porque não sei qual é o seu hidden... hidden... como é mesmo que se diz?
— Segredo — ajudou alguém do auditório.
— Isto, segredo — repetiu o nosso grande patrício, todo radiante. — Conheço muito a ópera de Smetana que tem esse nome. A experiência vai nos custar muito tempo, até que o paciente nos revele o seu caráter, o seu passado e as suas mais recônditas idéias.
— Pensamentos — explicou a voz do auditório.
— Well. Pergunto, senhores: quem quer submeter-se à análise?
A pergunta não teve resposta. Um dos presentes deu uma risada, mas ninguém se mexeu.
— Por favor — insistiu C.G. Rouss —, não vai doer.
— Vá o senhor — sussurrou o Ministro do Interior ao da Justiça.
— Você deve ir, como representante do seu partido — insinuou um deputado a outro.
— Sr. Chefe de Departamento, faça o favor de vir — encorajou um alto funcionário a um colega de outro ministério.
A situação começava a tornar-se penosa. Nenhum dos presentes se levantara.
— Façam o favor, senhores — repetiu o cientista americano pela terceira vez. — Será que têm medo de se trair?
A essa altura o ministro do Interior voltou-se para trás e disse entre dentes:
— Então! Alguém que se resolva, meus senhores!
Nas últimas filas do auditório alguém tossiu modestamente e levantou-se. Era um velhinho um tanto ressequido, já bem coçado, e cujo pomo-de-adão tremia.
— Eu... hum — lançou timidamente —, se ninguém... então, com licença, eu...
— Venha cá — interrompeu o americano em tom autoritário. — Sente-se aqui. Tem de dizer a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Não deve pensar, tem de falar mechanically, sem se preocupar com o que irá dizer. Entendeu?
— Pois não! — disse o homem-cobaia, com boa vontade, um pouco intimidado ante auditório tão distinto.
Tossiu de leve e piscou, como um estudante em dia de exame. O cientista disparou a primeira palavra:
— Árvore!
— Gigantesca — sussurrou o velhinho.
— Como, por favor? — perguntou o sábio, como se não houvesse entendido bem.
— Gigante da floresta — esclareceu o homem, tímido.
— Oh, I see. — Rua!
— Rua... ruas de aspecto festivo — replicou o homem.
— Que quer dizer com isso?
— Uma festa, não? Ou um enterro.
— Isso mesmo. O senhor deveria dizer apenas festa. Sempre que possível, só uma palavra.
— Pois não!
— Continuemos. — Comércio!
— Animado. Crises nos negócios. Negociata política.
— Hum... — Canal!
— Que canal, por favor?
— Não importa. Diga uma palavra, depressa.
— Se o senhor pudesse dizer, por exemplo, canais...
— Well, canais.
— Competentes — retrucou satisfeito o homenzinho.
— Torquês!
— Martelo. Martelando as palavras do discurso. Desferiu violentas marteladas.
— Very curious! — murmurou o cientista. — Sangue!
— Sangue subindo às faces. Sangue inocente derramado. História escrita com sangue.
— Fogo!
— A ferro e fogo. Heróicos bombeiros. Discurso flamejante. Mane, tekel.1
— É um esquisito case — disse o professor, perturbado. — Mais uma vez, homem: O senhor deve dizer só a primeira idéia, compreende? Só o que lhe ocorrer automatically, ao ouvir a minha palavra. Prossigamos. Mão!
— Fraterna que ajuda. Segura a bandeira. De punhos cerrados. Mãos sujas. Cascudo.
— Olhos!
— Testemunha ocular. À vista do público. Olhos inocentes de criança. Olhos úmidos de lágrimas...
— Basta, basta! Cerveja!
— Chope duplo. Demônio do álcool.
— Música!
— Música do futuro. Orquestra coroada de êxito. Concerto das grandes potências. Harmonia da paz. Hinos nacionais.
— Frasco!
— Vitríolo. Amor infeliz. Dores terríveis. Faleceu no hospital em meio aos mais atrozes sofrimentos.
— Veneno!
— Veneno e fel. Poços envenenados.
C.G. Rouss coçou a cabeça:
— Never heard that. Outra vez, por favor. Eu queria chamar a atenção dos senhores: começamos sempre por coisas... hum... plain, quer dizer, comuns, simples, para encontrar o principal interest e a profession do paciente.
— Continuemos. Conta!
— Ajustar contas com o inimigo. Isso vai por conta dos nossos adversários. Prestar contas à posteridade...
— Hum... Papel!
— Até o papel enrubesce de vergonha — declarou o homem energicamente. — Papel-moeda. O papel agüenta tudo.
— Bless you!2 — solta o cientista, já meio zangado. — Pedra!
— Apedrejar. Pedra de túmulo. Saudade eterna — respondeu o homem-cobaia, místico.
— Ave, anima pia!3 Carro!
— Carro de triunfo. Rodas do destino. Pronto-socorro. Rico préstito, com carros alegóricos.
— Ah! that’s it!4 — exclamou C.G. Rouss — Horizonte!
— Escuro. Nuvens negras toldam os horizontes políticos. Horizontes estreitos. Abrir novos horizontes.
— Armas!
— Desleais. Armadura completa. Bandeiras desfraldadas. Atacar pelas costas com setas envenenadas — exclamou logo o homem, entusiasmado. — Não recuaremos da luta. Pandemônio do combate. Luta eleitoral.
— Elemento.
— Fúria dos elementos. Forças elementares. Deveres elementares das classes dominantes.
— Basta! O senhor é jornalista, não?
— Sim, senhor — afirmou o homem-cobaia —, e já há trinta anos. Sou o redator Vachatko.
— Thank you — agradeceu secamente nosso famoso patrício. — Finished, gentlemen. Analysing as respostas deste senhor, podemos verificar que é um jornalista. Creio que seria inútil continuar a experiência. Só perderíamos nosso tempo. Excuse me, a experiência falhou. Lamento, gentlemen.
— Vejam só! — exclamou o Sr. Vachatko à noite, na redação, correndo os olhos pelo material de serviço. — Então a polícia informa que encontrou o cadáver do tal José Tchepelka; estava enterrado no quintal do Sukanek, junto da cerca, e debaixo do cadáver encontraram um saco manchado de sangue. Estão vendo? O diabo do Rouss acertou tudo, direitinho. Parece incrível, meus colegas. Eu não disse uma única palavra a respeito de jornais, e ele descobriu, sem mais nem menos, que eu sou jornalista: “Senhores, estão diante de um eminente jornalista, de grande mérito”... Eu mesmo escrevi, aliás, na nota sobre a conferência: “As declarações do nosso famoso patrício foram acolhidas com lisonjeiro apreço pelos nossos círculos profissionais”. Mas esperem, será melhor assim: “As declarações altamente interessantes do nosso patrício foram acolhidas com o merecido apreço, vivo e lisonjeiro, pelos nossos círculos profissionais”. Esta é que é a verdade!


NOTAS:
1 - Mane, tekel, fares — Palavras proféticas de ameaça que, segundo a Bíblia, apareceram escritas em letras de fogo, por mão invisível, nas paredes da sala onde Baltasar, o último rei da Babilônia, se entregava a um festim orgíaco, justamente quando Ciro, rei dos persas, penetrava na cidade. Significam: pesado, contado, dividido.
2 - Bless you! — Valha-me Deus!
3 - Ave, anima pia (latim): Salve, alma piedosa.


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias — Nova Fronteira, vol. 10, p. 396)

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