CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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terça-feira

KRAMBAMBULI - Marie von Ebner-Eschenbach

O homem pode sentir atração por toda sorte de coisas, mas amor verdadeiro e duradouro, quando vem, é uma vez só. Esta era, pelo menos, a opinião de Hopp, o guarda florestal. Ele tinha tido muitos cães e gostara de todos, mas Krambambuli era o único que lhe inspirara amor, e do qual não podia se esquecer. Ele o comprara de um lenhador vagabundo no “Leão de Wischau” — ou melhor, adquirira-o numa barganha. Desde que viu o cão, deixou-se tomar de grande afeição por ele, a qual permaneceu inalterável até à sua morte.
O dono do cão estava sentado diante de uma mesa, com um copo vazio. Reclamava com o estalajadeiro, que se negava a fornecer-lhe mais bebida sem prévio pagamento. Era um sujeitinho com ar de velhaco. Embora jovem, era magro como um galho seco, tinha pela amarelada, cabelos loiros e barba rala. Usava roupas que remontavam aos dias de abundância do seu último emprego, com as marcas de uma noite passada numa espelunca.
Embora não gostasse desse tipo de companhia, Hopp sentou-se ao lado do homem e puxou conversa. Logo ficou sabendo que o desgraçado já empenhara sua arma e munição em troca de bebida, e agora queria empenhar também o cachorro. Mas o estalajadeiro não se interessava por um tipo de pagamento que exigia alimentação diária.
Hopp não deixou transparecer que gostara do cachorro, pediu uma garrafa de cherry brandy e encheu o copo do vizinho. Adiantamos, para encurtar caminho, que dentro de uma hora estava tudo acertado: por doze garrafas daquele brandy, o vagabundo entregou o cão — muito a contragosto, diga-se em sua honra. As mãos lhe tremiam tanto, enquanto tentava atar a coleira no pescoço do cão, que pareceu não iria conseguir.
Hopp esperou pacientemente, admirando o animal em silêncio, pois de fato era um excelente animal, apesar do péssimo estado em que se encontrava. Parecia ter no máximo dois anos, e a sua cor lembrava a do miserável que o amarrava, embora um pouco mais escura. Tinha uma mancha branca na testa, que se ramificava de um lado e outro em duas finas agulhas. Grandes olhos pretos, orelhas longas e bem colocadas. Tudo nele era perfeito, desde as patas até as ventas sensíveis e o corpo ágil. As pernas eram fora de qualquer comparação, como quatro colunas vivas que poderiam sustentar o corpo de um veado, porém não mais grossas que as de uma lebre. Se avaliado pelo Clube dos Caçadores, certamente teria um pedigree tão antigo e imaculado como o de um cavaleiro teutônico.
O guarda florestal se rejubilou com a pechincha. Levantou-se e tomou a correia que o vagabundo afinal conseguira amarrar.
— Qual o nome dele?
— O daquilo que você deu por ele: Krambambuli. [Krambambuli é nome popular afetivo para aguardente. Algo como “cachacinha”].
— Certo! Venha, Krambambuli!
Não adiantava chamar, assoviar nem puxar. O cachorro não obedecia, e virava a cabeça para o homem que ele ainda julgava seu dono, rosnando quando o mandavam seguir o novo. Mesmo quando recebia em troca um chute, lutava por livrar-se, e Hopp precisou de todas as forças para domá-lo. Afinal teve de colocá-lo num saco e carregá-lo até sua cabana, a algumas horas dali.
Dois meses se passaram antes de Krambambuli, exausto e preso a uma coleira farpada a cada nova tentativa de fuga, afinal entender a quem ele agora pertencia. Mas, agora que a submissão era completa: Que cachorro! Impossível descrever em palavras os limites que ele atingia, não apenas no exercício da sua profissão, mas ainda como servo zeloso, bom amigo e protetor.
Fala-se muito que cães inteligentes conseguem fazer tudo, exceto falar. Em Krambambuli nem isso faltava. Seu dono, pelo menos, conversava longamente com ele. A ponto de a mulher ficar com ciúmes e começar a censurá-lo por isso. Ela passava o dia inteiro atarefada na cozinha ou na limpeza. À noite, quando tricotava em silêncio, fazia-lhe falta alguém com quem conversar.
— Você tem tanta coisa para dizer ao Buli — assim ela o chamava depreciativamente — e nada para conversar comigo. Você conversa tanto com animais, que parece ter esquecido como se conversa com pessoas.
O guarda florestal admitia algo de verdade nesse comentário da mulher, mas o que é que ele podia fazer? Conversar sobre quê? Nunca tiveram filhos, não estavam autorizados a possuir gado, e galinhas não tinham nenhum interesse para um guarda florestal, a não ser quando assadas... Hopp acabou arranjando um modo de contornar o problema: em vez de conversar com Krambambuli, passou a conversar sobre Krambambuli: a inveja que ele provocava, as quantias fantásticas que lhe ofereciam por ele, e que ele desdenhosamente recusava.
Havia dois anos que Hopp assumira aquele emprego, quando recebeu certa manhã a visita da condessa, esposa do seu patrão.
— Bom dia, Hopp.
— Bom dia, senhora.
— Hoje é o aniversário do Conde...
Hopp percebeu logo a intenção da patroa, e concluiu a frase:
— ...e a senhora gostaria de dar ao Sr. Conde um presente, e não conhece nada que o pudesse agradar mais do que Krambambuli.
— Exatamente, Hopp — e a Condessa, satisfeita com o seu modo amistoso de encarar a sugestão, agradeceu e pediu que ele estipulasse o preço que gostaria de receber pelo cão.
— Senhora, se Krambambuli permanecer no castelo sem morder ninguém, sem arrebentar as correias que o prendem, ou ao menos sem se arrebentar ao tentá-lo, a senhora pode ficar com ele de graça, pois nesse caso ele não me serve.
Fizeram a experiência, mas não foi necessário arrebentar nada, pois bem antes disso o Conde perdeu todo o interesse no obstinado animal. De início tentaram conquistá-lo suavemente, depois com tratamento rude. Ele atacava qualquer um que se aproximasse, recusava-se a comer, e logo começou a emagrecer. Pouco depois, Hopp foi avisado de que podia buscar o animal. Ele não perdeu tempo, e quando o foi buscar, houve uma cena do mais selvagem deleite. Krambambuli ladrava com frenética alegria, saltava sobre o seu dono, e com as patas no seu peito, lambia as lágrimas que lhe rolavam da face.
À tarde desse dia feliz, foram os dois para a taberna. Enquanto Hopp jogava taroc com dois parceiros, Krambambuli ficou sentado atrás da cadeira do dono. Embora parecesse cochilar, quando o dono girava os olhos em torno, como que procurando por ele, o cão batia a cauda no chão, respondendo: “Aqui estou!” E quando Hopp distraidamente começava a cantarolar sua cançãozinha triunfal “Como está o meu Krambambuli?”, o cão se levantava com respeitosa dignidade, e os seus olhos brilhantes respondiam: “Tudo bem comigo!”
Por esse tempo havia um bando de caçadores ilegais atuando não só na floresta que Hopp vigiava, mas em toda a redondeza. Era um bando atrevido, e seu chefe era um péssimo sujeito. Algumas vezes os outros guardas o tinham visto bebendo em casas suspeitas, e o chamavam de “Amarelo”. Cruzavam com ele, mas perdiam-lhe a pista e não conseguiam prendê-lo em flagrante. Era o mais descarado adversário para os guardas florestais, e devia ter sido antes um deles, pois sabia como ninguém onde se achava a caça, e também evitar todas as armadilhas que punham para pegá-lo.
Nunca houvera tantos crimes antes, e os guardas estavam furiosos, querendo coibi-los. Por isso, pequenas infrações eram punidas com inaudito rigor, o que gerava muitas reclamações. O chefe dos guardas florestais havia recebido ameaças, e corria o zum-zum de que o bando de malfeitores jurara vingança. Sem se amedrontar, ele anunciou publicamente que seus comandados deveriam punir severamente os transgressores, e chamava a si a responsabilidade. Várias vezes advertiu Hopp para manter os olhos bem abertos, e o acusava de ser muito moroso. Nem Hopp nem Krambambuli levaram a mal a advertência do chefe. Afinal fora o pai dele que ensinara a Hopp a arte da caça, e o próprio Hopp retribuíra ensinando-lhe os rudimentos do ofício, quando criança. Hopp tinha orgulho do ex-discípulo, apesar do tratamento rude que este dava a todos os subordinados.
Hopp teve uma pista do malfeitor após um crime que este cometeu por vingança, num bosque de tílias próximo à floresta do conde. O chefe dos guardas encontrara ali um grupo de crianças trepadas como esquilos nas tílias, quebrando os ramos floridos e atirando-os para baixo, onde eram apanhados por duas mulheres que os recolhiam em cestos. Furioso, o chefe gritou para os meninos descerem e ordenou aos seus homens que agitassem as tílias, enquanto ele discutia com as duas mulheres, acabando por esbofeteá-las. Hopp não se sentiu tranqüilo ao reconhecer uma delas como a que todos diziam ser amante do “Amarelo”.
Foi a última vez que Hopp viu o chefe com vida. Uma semana depois ele o encontrou morto naquele mesmo local. A posição do corpo indicava que o crime fora cometido em outro lugar, e o corpo fora arrastado e colocado ali sobre um monte de ramos de tílias. Havia ramos de tílias em torno da cabeça e sobre o corpo, e a sacola e o chapéu estavam cheios deles. A carabina havia sido trocada por um velho bacamarte, deixado zombeteiramente sobre o seu ombro. A bala que o matara, encontrada depois na autópsia, fora disparada por esse bacamarte.
Quando encontrou o cadáver, Hopp ficou paralisado de horror. Só depois de alguns instantes recuperou-se do choque, e logo notou o comportamento estranho do seu cachorro. Krambambuli aproximava o focinho da arma, depois cheirava as roupas, girava em torno do corpo, cheirava outra vez, afastava-se um pouco, sempre com o focinho a farejar. Uma vez ele deu um salto e latiu alegremente, avançou alguns passos, latiu de novo e parou, com a cabeça imobilizada para o ar, exatamente como se o tomasse a lembrança de algo há muito tempo esquecido.
— Venha cá, Krambambuli!
O cão obedeceu, mas olhava indagativamente para o dono, excitado, como a perguntar: “Não está vendo nada?! Não sente esse cheiro?!” Depois de encostar o focinho no joelho do dono, voltou ao cadáver, mordeu o cabo da arma e começou a puxá-la, com a evidente intenção de levá-la até o dono e perguntar: “Está vendo? Entendeu agora?”
Um calafrio percorreu a espinha do guarda florestal, enquanto uma firme conjectura se formava em sua mente. Mas levantar hipóteses não fazia parte das suas funções, nem muito menos ensinar às autoridades as delas. Deixou o corpo onde estava e foi direto à polícia.
Depois de preencher ao longo de quase todo o dia as formalidades de praxe, Hopp foi para casa descansar. Pôs Krambambuli entre os joelhos, como costumava fazer, e ponderou com ele:
— Krambambuli, a polícia está no encalço dele agora, e haverá muito vai-e-vem... Vamos deixar para outros a punição daquele bandido que matou nosso guarda-chefe?... Você conhece bem o assassino, mas ninguém precisa saber disso... Eu nunca contei a ninguém... Que tal você me ajudar? Acho uma boa idéia o meu cachorro participar disso.
Curvou-se sobre o cão e acariciou-lhe a cabeça, enquanto murmurava a cançãozinha: “Como está o meu Krambambuli?”
Os psicólogos têm discutido muito, para descobrir que estranho impulso faz um criminoso voltar ao local do crime. Hopp não sabia nada dessas discussões, não obstante procurou manter-se sempre por ali. No décimo dia, já estava começando a conseguir pensar em algo que não fosse a sua vingança, e ocupava-se em marcar as próximas árvores a serem abatidas. Terminada a tarefa, colocou a carabina no ombro e desceu em direção à trilha por onde viera. Pareceu-lhe ouvir um ruído entre as árvores e parou, atento, porém não ouviu mais nada. Estava para continuar a caminhada quando percebeu o estado de extrema atenção do cachorro: pêlos eriçados, cabeça ereta, olhar fixo num ponto além da cerca. “Então, heim! — pensou Hopp. — Se é você, meu caro, espere um pouquinho só”.
Encostou-se atrás de uma árvore, tirou a carabina do ombro e armou-a, procurando não fazer nenhum ruído. De repente o “Amarelo” saltou a cerca e apareceu na trilha. Hopp observou que ele tinha consigo dois coelhos que caçara, e no ombro a arma do chefe dos guardas, que ele conhecia tão bem. Poderia ter atirado sem risco, daquela posição protegida, mas não era homem de atirar num desprevenido. Saiu de trás da árvore e gritou:
— Mãos ao alto, miserável!
Em vez de obedecer, o ladrão tirou a arma do ombro a fim de apontá-la, e nesse momento Hopp disparou. Belo tiro, mas o ruído foi apenas o “click” da arma sobre a bala que falhou. “Bom momento para morrer” — pensou. E logo o seu chapéu voou longe, perfurado por uma bala. A sorte do outro também não estava favorável. Só tinha uma bala na arma, e levaria algum tempo para colocar outra.
— Pegue-o! — gritou Hopp para o cachorro. — Pegue-o!
— Venha cá, Krambambuli! — disse o “Amarelo” com a voz suave que o cão tão bem conhecia.
Krambambuli reconheceu a voz do antigo dono e caminhou para ele. Então Hopp assoviou, e o cão se virou para ele. O “Amarelo” assoviou em seguida, e o cão girou de novo. Indeciso, ele se voltou ainda para um e para outro, no meio do caminho. Afinal retomou decididamente a marcha rumo ao antigo dono, ganindo e rastejando.
Os poucos segundos dessa indecisão agoniada do cão bastaram para ambos municiarem suas armas, e ambos fizeram pontaria. Duas balas foram disparadas simultaneamente. Mas no momento mesmo em que o bandido puxou o gatilho, o cão saltara sobre o braço dele, contorcendo-se de alegria, e com isso desviou a bala. Logo depois o “Amarelo” caiu ao chão, morto.
Hopp caminhou lentamente para o cadáver, enquanto recarregava sua arma. O cão estava sentado ao lado dele, com a língua de fora, respirando intermitentemente e olhando para Hopp.
— Você sabe para quem é este próximo tiro? — perguntou, dirigindo-se ao cachorro.
— “Não tenho a menor idéia”.
— Desertor! Traidor!...
— “Sim, senhor. Eu sei disso”.
— Você era a minha alegria. Agora acabou. Você nunca mais me dará prazer.
— “Eu o compreendo, meu senhor!” — e Krambambuli apoiava a cabeça sobre as patas, olhando com olhar súplice e angustiado para o guarda.
Antes o pobre animal não tivesse olhado daquele jeito! Teria poupado muito sofrimento a ambos. Mas ninguém consegue matar friamente um animal que olha daquele jeito! Hopp lançou algumas maldições e blasfêmias, recolocou a arma no ombro, pegou os dois coelhos e afastou-se.
O cão seguiu-o com o olhar, até perdê-lo de vista. Quando voltou com a polícia, para remover o cadáver, ele ainda estava lá, sentado ao lado do corpo, e afastou-se um pouco quando o removiam.
— Este é o seu cachorro, não é?
— Deixei-o aqui, tomando conta.
Hopp tinha vergonha de contar toda a verdade. Mas pouco adiantou, pois tudo ficou evidente quando o corpo era conduzido na carreta e o cão a seguiu, de cabeça baixa e o rabo entre as pernas. No dia seguinte ele permanecia ao lado do caixão. O oficial de justiça deu-lhe um ponta-pé, gritou, e o cão acabou saindo. E foi em direção à cabana de Hopp — disseram. Mas nunca chegou lá. Passou a vaguear miseravelmente pelos subúrbios, num estado semi-selvagem, e em pouco tempo estava reduzido a pele-e-osso. Fora visto avançar para uma criança e tomar-lhe o pão das mãos.
Naquela noite Hopp estava de pé diante da janela, olhando para as sombras das árvores que o luar projetava, quando pareceu perceber o vulto de Krambambuli sentado ao longe, como a contemplar o cenário da sua antiga felicidade. Fechou a janela e deitou-se. Logo depois voltou à janela, abriu-a, mas o cão já não estava lá. Tentou dormir de novo, mas não conseguiu.
Hopp não agüentava mais. “Passado é passado — pensou. — Vou trazê-lo de volta para casa”. De manhãzinha ele se preparou para sair, avisou à mulher que não o esperasse para o almoço e saiu. Mas a sua busca terminou na varanda da casa. Quando abriu a porta para sair, tropeçou num corpo deitado na escada. Krambambuli jazia ali, morto, diante da casa onde não pudera entrar.
O guarda florestal nunca conseguiu superar aquela mágoa. Às vezes tinha alguns momentos de felicidade, ao lembrar-se do cão, e então era visto cantarolando o seu “Como está o meu Krambambuli?”.


(Marie von Ebner-Eschenbach, in Braun-Safarjian, Stories of many nations – C.C. Heath & Company, Boston, 1942)

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