CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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quarta-feira

O ALFINETE - Ventura García Calderón

O animal caiu de bruços, agonizante, vertendo suor e sangue, enquanto o cavaleiro, num relâmpago, saltava ao pé da escada monumental da fazenda de Ticabamba. Pela bojuda varanda de cedro assomou a cabeça fosca do fazendeiro, D. Timóteo Mondaraz, interpelando o recém-chegado, que tremia.
Era zombeteira a voz de sochantre do venerando velho:
— Que é que tens, Borradinho? Estás com os joelhos batendo tanto... Aqui não há nenhum papão. Desembucha, homem...
O Borradinho, assim chamado no vale por causa do seu rosto picado de varíolas, segurou com angustiada mão o chapéu de palha e tentou explicar tantas coisas ao mesmo tempo — a súbita desgraça, o seu galope noturno de vinte léguas, a ordem de chegar dentro de poucas horas, ainda que rebentasse o animal no caminho — que por um minuto emudeceu. De repente, sem respirar, soltou a sua ingênua enfiada:
— Bem, devo dizer ao meu patrãozinho que seu Conrado me disse que eu lhe dissesse que esta noite mesmo D. Grimanesa caiu doente e morreu.
Se D. Timóteo não puxou o revólver, como fazia sempre que estava alterado, foi, decerto, por especial desígnio da Providência; mas apertou o braço do criado, querendo arrancar-lhe mil pormenores:
— Esta noite?... Morreu?... Grimanesa?...
Algo de estranho observou, talvez, nas embrulhadas explicações do Borradinho; pois, sem dizer palavra, limitando-se a pedir que não despertassem sua filha, “a pequena Ana Maria”, desceu, em pessoa, a encilhar o seu melhor “cavalo de passo”. Momentos depois, galopava para a fazenda do genro, Conrado Basadre, que no ano anterior desposara Grimanesa, a linda e pálida amazona, o melhor partido de todo o vale. Tinha sido aquele casamento uma festa sem igual, com seus fogos-de-bengala, suas índias dançarinas de camisão roxo-escuro, índias que ainda choram a morte dos incas, ocorrida em séculos remotos, mas revivescente na endecha da raça humilhada, como os cantos de Sião na sublime insistência da Bíblia. Depois, ao longo dos melhores caminhos de sementeiras, divagara a procissão de santos antiqüíssimos, que ostentavam, na orla das vestes de veludo carmesim, cabeças dessecadas de selvagens.
E assim terminava o matrimônio tão feliz de uma linda moça com o simpático e arrogante Conrado Basadre... Diabo!... Cravando as esporas, D. Timóteo pensava, aterrado, naquele festejo trágico. Queria chegar em quatro horas a Sincavilca, o antigo feudo dos Basadres.
Na tarde já avançada se ouviu outro galope ressoante e apertado sobre os seixos rolados da montanha. Por precaução, o velho disparou para o ar, gritando:
— Quem vem lá?
Susteve a marcha o outro cavaleiro; e com uma voz que não lhe dissimulava a ansiedade, gritou, por sua vez:
— Sou eu, amigo! Não me conhece? O administrador de Sincavilca. Vou buscar o cura para o enterro.
Tão perturbado se via o fazendeiro, que não perguntou para que tanta pressa em chamar o cura, se Grimanesa estava morta, e por que motivo não se achava na fazenda o capelão. Acenou um adeus e incitou o cavalo, que rompeu a galopar com a ilharga banhada em sangue.
A partir do imenso portão que fechava o pátio da fazenda, o silêncio oprimia. Até os cães, emudecidos, farejavam a morte. Na casa colonial, as grandes portas cravejadas de prata já ostentavam crepes em forma de cruz. Sem tirar as esporas, D. Timóteo atravessou os amplos salões desertos até chegar ao quarto da morta, onde soluçava Conrado Basadre. Sufocada a voz do pranto, o velho rogou ao genro que o deixasse sozinho um momento. Com as próprias mãos, fechou a porta e rugiu horas a fio a sua dor, insultando os santos, repetindo o nome de Grimanesa e beijando-lhe a mão sem vida, que voltava a cair sobre os lençóis entre goivos e jasmins-do-cabo. Séria e carrancuda pela primeira vez, repousava Grimanesa feita uma santa, com as tranças ocultas no capuz das carmelitas e o lindo talhe prisioneiro do hábito, segundo o costume religioso do vale, para santificar as lindas mortas. Haviam-lhe colocado sobre o peito um bárbaro crucifixo de prata, que servira a um seu avô para trucidar rebeldes em antiga insurreição de índios.
Ao beijar D. Timóteo a piedosa imagem, ficou entreaberto o hábito da morta, e alguma coisa ele notou, aterrorizado, pois de repente se lhe secaram as lágrimas e ele afastou-se do cadáver, como enlouquecido, com estranha repulsa. Olhou então para todos os lados e escondeu um objeto no poncho; e sem despedir-se de ninguém, montou de novo a cavalo, retornando a Ticabamba na escuridão da noite.
Durante sete meses ninguém foi de uma fazenda a outra, nem conseguiu explicar esse silêncio. Nem ao menos haviam assistido ao enterro! D. Timóteo vivia enclausurado em seu quarto, que cheirava a benjoim, dias inteiros sem falar, surdo às súplicas de Ana Maria, tão formosa quanto a irmã Grimanesa, e que adorava e temia o obstinado pai. Nunca pôde saber a causa do misterioso afastamento, nem por que razão Conrado Basadre não aparecia.
Ora, num claro domingo de junho D. Timóteo levantou-se de bom humor e propôs a Ana Maria irem juntos a Sincavilca, depois da missa. Tão imprevista era a resolução, que a pequena andou pela casa a manhã inteira como desorientada. Experimentou ao espelho as longas saias de amazona e o chapéu de palha, que teve de prender nos espessos bandós com um grande alfinete de ouro. Vendo-a assim, o pai, conturbado, disse, olhando o alfinete:
— Vai já tirar esse requifife!
Ana Maria obedeceu suspirando, disposta, como sempre, a não adivinhar o mistério daquele pai violento.
Quando chegaram a Sincavilca, Conrado estava domando um poldro novo, cabeça descoberta ao sol, formoso e arrogante na sela preta com cravos e remates de prata. Apeou-se de um salto; e ao ver Ana Maria, tão parecida com a irmã essa graça lisonjeira, ficou mirando-a, durante um espichado momento, embevecido.
Não houve uma palavra sobre a desgraça ocorrida, nem se pronunciou o nome de Grimanesa; mas Conrado cortou seus esplêndidos e carnais jasmins-do-cabo para presentear Ana Maria. Não foram sequer visitar a sepultura da morta, e fez-se incômodo silêncio quando a velha ama-de-leite veio abraçar “a menina”, chorando:
— Jesus, Maria, José! Linda que nem a minha patroazinha! Uma cereja!
Desde então, repetia-se cada domingo a visita a Sincavilca. Conrado e Ana Maria passavam o dia olhando-se nos olhos e apertando-se docemente as mãos, quando o velho dava as costas para contemplar um novo corte de cana madura. E num feriado, na segunda-feira imediata ao ardente domingo em que se beijaram pela primeira vez, chegou Conrado a Ticabamba estadeando a vistosa elegância dos dias festivos, atravessando o poncho violáceo sobre o pelego, bem penteadas e reluzentes as crinas de seu cavalo, que braceava com elegância e encostava no peito o beiço espumante, como os palafréns dos libertadores.
Com a solenidade das grandes horas, perguntou pelo fazendeiro, e não o tratou, com o respeito de sempre, por D. Timóteo; murmurou, como no tempo antigo, quando era noivo de Grimanesa:
— Desejo de falar-lhe, meu pai.
Fecharam-se no salão colonial, onde ainda se via o retrato da filha morta. O velho, silencioso, esperava que Conrado, perturbadíssimo, lhe declarasse, com indecisa e envergonhada voz, o seu desejo de casar com Ana Maria. Fez-se uma pausa tão longa, que D. Timóteo, com os olhos cerrados, parecia dormir. Súbito, agilmente, como se os anos não pesassem naquela férrea constituição de fazendeiro peruano, foi abrir um cofre de ferro de antigo estilo e complicada chavaria, que era preciso requestar com mil artimanhas e um santo-e-senha escrito num cadeado. Então, sempre em silêncio, tomou de um alfinete de ouro. Era um desses topos que fecham o manto das índias e terminava em folha de coca; porém maior, agudíssimo e manchado de sangue negro.
Ao vê-lo, Conrado caiu de joelhos, lamuriando, como um réu confesso:
— Grimanesa, minha pobre Grimanesa!
O velho, porém, fez-lhe ver, com um gesto imperioso, que o momento não era de choro. Dissimulando, com sobre-humano esforço, a sua inquietação crescente, murmurou, em voz tão surda que mal se fazia entender:
— Sim, eu o tirei do peito dela quando estava morta... Tu lhe havias cravado este alfinete no coração... Não é verdade? Ela te foi infiel, talvez...
— Foi, meu pai.
— Arrependeu-se, ao morrer?
— Arrependeu-se, meu pai.
— Ninguém o sabe?
— Ninguém, meu pai.
— Foi com o administrador?
— Foi, meu pai.
— Por que não o mataste também?
— Fugiu como um covarde.
— Juras matá-lo, se ele voltar?
— Juro, meu pai.
O velho pigarreou forte, apertou a mão de Conrado, e disse, já sem alento:
— Se a outra também te enganar, faze o mesmo... Toma!
Entregou o alfinete de ouro, solenemente, como os avós outorgavam a espada ao novo cavaleiro; e, tomado de violento mal-estar, apertando o coração desfalecente, acenou ao genro que se afastasse logo, pois não convinha que ninguém visse soluçar o venerável e justiceiro D. Timóteo Mondaraz.


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 10, p. 155)

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