Um dia, não há ainda muitos anos, enquanto o gélido vento do norte arremetia contra as janelas do mais fechado palácio da Cidade Proibida, assobiando por entre as decorações de lacre e as pilastras de mármore, e fazendo tinir as sinetas de porcelana do telhado, toda a corte se reuniu no salão das audiências imperiais.
O vento que soprava de fora não podia penetrar no interior da “Grande Corte de Esplendor”, porque havia, estendidos por todos os cantos, pesados cortinados escarlates e dourados; a fumaça dos trípodes de bronze subia quase que verticalmente, misturando-se no alto com a fumaça dos cinqüenta braseiros de porcelana.
A sala estava repleta de dignitários: mandchus de rosto ufano e forte, chins de rabicho comprido, e, aos lados de um cortinado amarelo, os guerreiros mandchus da primeira das oito Bandeiras, com suas armaduras lavradas.
De improviso o Filho do Céu apareceu, e todos caíram de joelhos, batendo a fronte no chão, enquanto pela sala se ouvia murmurar: “Celestial Presença”, “Augusta Sublimidade”, “Eterna Serenidade”.
O Imperador sentou-se no trono, e assim falou:
— A nossos ouvidos chegou a voz de que as grandes cidades habitadas pelos bárbaros de pele branca, quando a noite desenrola das alturas do céu os véus da sombra, são iluminadas por milhares de luzes em cada rua e em cada praça.
Em seguida chamou:
— Ta-Ti-Po!
O Camareiro-mor, ouvindo seu nome, apressadamente se ajoelhou no primeiro degrau do trono, fitando a sua plaquinha de jade, porque era pecado olhar no rosto do Filho do Céu.
— Ta-Ti-Po, tomai do nosso Tesouro um milhão de taels, e que as ruas de Pequim sejam iluminadas como pela luz do sol.
— A Cidade será iluminada — respondeu o Camareiro-mor.
Executado o “kotow”, Ta-Ti-Po abandonou a audiência imperial. Na antecâmara vestiu o traje de arminho e seda e, quase não fazendo caso das reverências com que o obsequiavam, dirigiu-se ao escritório. Ali o esperava o seu ajudante.
— Chame o Grande Eunuco — ordenou.
Tomando o cachimbo de água, pôs-se a fumar. À segunda tragada, uma montanha de carne assomou na sala: era o Grande Chefe dos Eunucos.
— Saiba, Grande Chefe dos Eunucos, que o Filho do Céu (que reine por mil anos), pela alta bondade de sua alma, me entregou quinhentos mil taels a fim de que as ruas de Pequim resplandeçam à noite como de dia. Que as ruas da Cidade sejam portanto imediatamente iluminadas.
— Ouvir é obedecer! — respondeu o outro, inclinando-se e cumprimentando, conforme o ritual.
O Grande Eunuco atravessou a Cidade Proibida, voltando a seu pavilhão, e ordenou ao secretário que chamasse o Governador Militar. Esperou longamente. Tao-Tai, o Governador Militar, morava na Cidade Externa, e era preciso percorrer várias ruas e fazer abrir várias portas, antes que o valente e poderoso mandchu pudesse chegar à sua presença.
— O Augusto Imperador — disse o Grande Eunuco — em sua magnanimidade, estabeleceu duzentos e cinqüenta mil taels para que as ruas de Pequim sejam iluminadas à noite. Providencie!
— O Filho do Céu só concebe o que é justo. Nossa Cidade será a maior do mundo. Apresso-me a executar a vontade do Filho do Céu — respondeu o Governador Militar, que voltou imediatamente a seu yamen e mandou chamar o Chefe dos Magistrados.
Quando este, ainda ofegante pela longa corrida, foi admitido à sua presença, disse-lhe:
— Tenho o prazer e a honra de informar Vossa Excelência que a Sublime Serenidade, o Filho do Céu, resolveu gastar cem mil taels para que Pequim seja iluminada à noite. Vossa Excelência providencie.
— Obedeço incontinenti — foi a resposta.
E subindo no palanquim, o Chefe dos Magistrados fez-se levar ao escritório dos Vigilantes da Cidade. Entrou. Sem responder sequer às saudações dos inferiores, disse ao Chefe dos Vigilantes:
— O Filho do Céu deu-me cinqüenta mil taels para que Pequim seja iluminada à noite. Providencie até amanhã ou receie o seu rigor!
Grande foi a surpresa da população de Pequim quando deparou, na manhã seguinte, com este manifesto, afixado por todos os cantos da cidade:
“A Serena Sublimidade, o Filho do Céu, o Augusto Imperador, Soberano do Império do Meio, Senhor dos Países Bárbaros, Vassalos e Tributários, decretou que todas as ruas e praças de Pequim sejam e permaneçam iluminadas desde a primeira hora da noite até o romper da aurora.
“Portanto todo chefe de família, todo artesão, todo mercador providenciará para que seja aceso um lampião fora da porta externa de sua casa, de sua oficina, de sua loja.
“Perderá a vida quem transgredir a ordem, que será cumprida com o máximo rigor”.
E foi assim que o Imperador, na noite seguinte, olhando pelas janelas do sétimo andar do pagode de porcelana construído sobre a colina artificial do jardim imperial, pôde ver a cidade iluminada, como por milhões e milhões de vagalumes diminutos a devorar a vasta escuridão, mas não soube jamais de que forma tinha sido gasto o milhão de taels que orçara para aquele fim.
(Ka-Lao-Yeh, in Maravilhas do conto humorístico – Cultrix, SP, 1961)
***
Visite agora os meus sites:
http://www.fatoshistoricos.com.br/
http://www.mundodanobreza.com.br/
CONTOS BEM CONTADOS
Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.
Leon Beaugeste
Leon Beaugeste
Arquivo do blog
-
▼
08
(74)
-
▼
06
(66)
- A DAMA OU O TIGRE - Frank R. Stockton
- A DEMONSTRAÇÃO DO PROF. ROUSS - Josef e Karel Capek
- A FLAUTA DO MONGE INOCENTE - Jean de Quercy
- A IMPERATRIZ DE SPINETTA - Paul Heyse
- A LEGENDA DE INGELHEIM - Alexandre Dumas
- A LUTA COM O MONSTRO - Victor Hugo
- A MOSCA VERDE E O ESQUILO AMARELO - Kálmán Mitszáth
- A MULA DO PAPA - Alphonse Daudet
- A SERPENTE DE OURO - Petrus Alphonsi
- A ÚLTIMA AULA - Alphonse Daudet
- ÚLTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA - Rebelo da...
- A VINGANÇA DO PRESTIDIGITADOR - Stephen Leacock
- AS FADAS DA FRANÇA - Alphonse Daudet
- AS MULAS DE SUA EXCELÊNCIA - Vicente Riva Palacio
- BAM-BAM - Jules Claretie
- BEAUDOIN À LA HACHE - Alexandre Dumas
- BROOKSMITH - Henry James
- CAÇADA RUSSA - Alexandre Dumas
- CAÍDO DO CÉU - G. Lenôtre
- CRONOLOGIA VIVA - Anton Tchekov
- DE CIMA PARA BAIXO - Artur Azevedo
- DEZ ANOS DE KEST - Malba Tahan
- DIVERTIMENTO FORÇADO - Mór Jókai
- ENENO IUDÉIA - Malba Tahan
- ILUMINEMOS PEQUIM! - Ka-Lao-Yeh
- KRAMBAMBULI - Marie von Ebner-Eschenbach
- MADEMOISELLE FIFI - Guy de Maupassant
- MATHIOTE - G. Lenôtre
- NICOLAUZINHO MENTIRA - Ion Alexandru Bratescu-Voin...
- NOTÍCIAS DO FUTURO - Holloway Horn
- O ALFINETE - Ventura García Calderón
- O ANGELUS NOS MARES DA SICÍLIA - Alexandre Dumas
- O COLOCADOR DE PRONOMES - Monteiro Lobato
- O COMPRADOR DE FAZENDAS - Monteiro Lobato
- O CONTO DO PREBOSTE - A. J. Cronin
- O COZINHEIRO DO ARCEBISPO - Juan Valera
- O DENTE QUEBRADO - Pedro Emílio Coll
- O ENFORCADO DE LA PIROCHE - Alexandre Dumas Filho
- O ENIGMA DO FERREIRO E O ROSTO DO REI - Novellino
- O FIM DE ARSÈNE GODARD - João do Rio
- O HOMEM DISTRAÍDO - Jerome K. Jerome
- O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - Lima Barreto
- O LEPROSO DA CIDADE DE AOSTA - Xavier de Maistre
- O MAU ZUAVO - Alphonse Daudet
- O MEDO - Guy de Maupassant
- O NATAL DO OFICIAL DE JUSTIÇA - Dimitr Ivanov
- O OVO EMPRESTADO - Conto tradicional hebreu
- O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO DO VOVÔ - Herman Haijermans
- O PRIMEIRO IMPULSO - Autor persa anônimo
- O PROBLEMA DAS OITO CAIXAS - Malba Tahan
- O REALEJO - Boleslaw Prus
- O SÁBIO DA EFELOGIA - Malba Tahan
- O SACRISTÃO - Somerset Maugham
- O SEGREDO DE MESTRE CORNILLE - Alphonse Daudet
- O TIRO - Alexandre Puchkin
- O VAPOR DAS PANELAS E O TINIR DAS MOEDAS - Novellino
- O VILÃO QUE CONQUISTOU O PARAÍSO - Jakes de Basin
- O VINHO DERRAMADO - Jakes de Basin
- O XEQUE BOU-AKAS - Alexandre Dumas
- OS TRINTA E CINCO CAMELOS - Malba Tahan
- PLEBISCITO - Artur Azevedo
- POR UMA DÚZIA DE OVOS COZIDOS - Ernesto Montenegro
- QUAL DOS NOVE? - Maurício Jokai
- QUEM CONTA UM CONTO... - Machado de Assis
- SÓ QUANDO ESTIVEREM JUNTOS - Anônimo
- UM INGRATO - Artur Azevedo
-
▼
06
(66)