CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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terça-feira

ENENO IUDÉIA - Malba Tahan

Era em Ioldivka, pequena aldeia da Ucrânia, quando o país eslavo ainda se achava sob o domínio do Czar.
Naquela noite, o velho e sombrio palácio do puritz enchera-se de alegres convidados. Sua Alteza, o príncipe Aleixo Buroff, governador de Ioldivka, oferecia aos fidalgos e burgueses mais ricos da aldeia o grande banquete com que anualmente festejava o aniversário de seu poderoso amigo e protetor, o Czar de todas as Rússias.
A vodka corria em abundância. Os orgulhosos senhores, exaltados pelas contínuas libações alcoólicas, cantavam, com voz rouca, as velhas melodias dos camponeses russos, enquanto as moças e servos dançavam a kamareinskaia e o kazatchok ao som das balalaikas, vibradas pelas mãos ágeis de artistas exímios.
Em dado momento, quando a suntuosa festa parecia atingir o auge do entusiasmo, o pope Ladislau aproximou-se do príncipe Aleixo, e disse-lhe com afetada negligência:
— Poderia Vossa Alteza conceder-me agora a permissão, já por mim solicitada várias vezes, para expulsar os judeus de nossa aldeia? Os israelitas, a meu ver, constituem uma população que, se não é prejudicial, é, pelo menos, completamente inútil.
O puritz, com o espírito perturbado pelos efeitos das bebidas, não hesitou em atender ao criminoso desejo do pope, e no mesmo instante autorizou-o a expulsar os israelitas de Ioldivka. Era necessário um pretexto. Ao pope caberia a fácil tarefa de justificar a torpe medida de perseguição aos hebreus.
No dia seguinte, a população israelita de Ioldivka foi surpreendida pelo seguinte aviso, mandado afixar na praça pública:

JUDEUS DE IOLDIVKA

Várias e graves denúncias contra os judeus chegaram ultimamente aos ouvidos de Sua Alteza, o príncipe Aleixo Buroff. Encarregou-me Sua Alteza da ingrata tarefa de apurar o que há de verdade acerca de tais denúncias.
Segundo se afirma — e tenho disso provas bem seguras — os filhos de Israel, que aqui habitam, não só descuram o cultivo das terras, entregando-se exclusivamente a misteres de que auferem de todo o mundo lucros exorbitantes, como também lançam ao abandono os estudos e prática da nobre religião mosaica, afundando no ateísmo e alardeando heresias.
Sabe Deus que eu me sinto animado do mais puro afeto pelos meus irmãos em Israel, mas se esses fatos forem confirmados, ver-me-ei forçado, com grande mágoa, a expulsá-los de Ioldivka.
Para elucidar a questão, exijo que escolhais dentre vós, ó judeus, o mais hábil e instruído, para ser por mim publicamente interrogado sobre o Talmude. Se ele responder satisfatoriamente a todas as perguntas que eu lhe fizer, ficarei em paz. Se, porém, o vosso emissário demonstrar ignorância em assuntos talmúdicos, sereis fulminados pelo desprezo de todos os homens de bem, pois um povo que nem ao menos conheça a lei fundamental não tem o direito de viver entre gente honesta e trabalhadora.

Pope Ladislau.

Essa inesperada intimação do pope causou verdadeiro pânico entre os judeus de Ioldivka. Era voz corrente, e por todos reconhecida, que o pope possuía invejável cultura filosófica, tinha profundos conhecimentos teológicos e se notabilizara, além disso, pelos grandes estudos que fizera sobre o Talmude.
O rabino Uziel, homem inteligente e culto, que pontificava no bet-adnessed de Ioldivka, não se sentia com coragem para discutir com o pope, sabendo que uma resposta em falso acarretaria a expulsão inexorável de todos os seus irmãos. E se o rabi não se apresentava, quem teria coragem de enfrentar o sábio ortodoxo?
Os israelitas, em face de tal calamidade, em sinal de desesperação, fizeram o kria: cobriram a cabeça de cinza, ao passo que o rabino decretava o tnuness e convocava o schoikht, o milômed, o hazan, o bakoira e todos os vultos de mais prestígio da comunidade israelita, para discutirem e resolverem a situação.
Como não houvesse quem se julgasse capaz de assumir a grave responsabilidade de discutir com o pope, dirigiram-se todos ao bet-adnessed, acenderam as velas e, abrindo o aronkodsh, começaram a rezar, implorando o auxílio divino, e lamentando-se diante da Torá.
Quando já pouco faltava para expirar o prazo, subiu o rabi para o bellemen e falou aos infelizes judeus:
— Ainda não terminaram, ó filhos de Israel, os nossos sofrimentos! O Santo quer experimentar mais uma vez a nossa resignação, e fez cair sobre nós mais essa prova: ide para as vossas casas e preparai-vos para o novo exílio, pois nossa situação é insustentável. Sinto-me perturbado e incapaz de discutir o Talmude com o pope Ladislau. E dentre vós, quem teria coragem para enfrentar o sábio e rancoroso inimigo?
No grande silêncio, que só era interrompido pelos débeis soluços das mulheres, fez-se ouvir uma voz enrouquecida e cava:
— Eu irei!
Houve na sinagoga um grande e incontido movimento de agitação e surpresa, de esperança e indignação. Quem se oferecera para discutir com o pope, em nome dos judeus, era Elik, o homem que andava desde manhã até à noite a carregar água do rio para as casas. Elik não passava de um tipo grosseiro, pouco inteligente, ignorante e quase analfabeto.
Os que se achavam perto do aguadeiro julgaram, a princípio, que se tratava menos de mistificação do que de uma pilhéria, e tiveram ímpetos de pô-lo no mesmo instante fora do recinto sagrado. O rabino, batendo com energia na mesa do bellemen, fez serenar o tumulto e interpelou Elik:
— Sabes bem o que estás dizendo, ó aguadeiro?
— Sei, sim. Irei lá e hei de confundir o pope!
— Mas que sabes do Talmude?
— Deixa-me em paz! Sei cá alguma coisa que o pope não poderá responder!
Achou o rabi que seria prudente não pedir sobre o caso maiores esclarecimentos ao aguadeiro, e crendo que o pobre Elik era um enviado divino para salvação dos judeus de Ioldivka, assim falou:
— Ó meus irmãos de Israel! Já vejo no Oriente luzir a esperança da salvação! Tenhamos fé, que o Santo não nos desamparará!
Chamando o milômed, murmurou sombriamente:
— Vai anunciar ao pope que já escolhemos o nosso representante, e que ele pode preparar-se para receber-nos.
Na praça principal da aldeia, sobre um grande estrado erguido especialmente para o original prélio, o pope, acompanhado do puritz e das mais altas autoridades de Ioldivka, aguardava com a maior solenidade a chegada dos israelitas.
Estes não se fizeram esperar. À hora marcada aproximaram-se da praça coalhada de curiosos. À frente marchavam o rabino e o aguadeiro.
— Eis aqui o nosso ilustre correligionário, que veio discutir com Vossa Eminência — anunciou o rabino, apresentando Elik ao pope.
Tomado de viva indignação, o pope Ladislau não se conteve e gritou, colérico:
— Cães miseráveis! Só por esse insulto com que pretendeis enlamear o meu nome e o meu prestígio mereceis imediata expulsão da aldeia! Como ousais trazer, para discutir comigo, um homem que é ao mesmo tempo idiota, estúpido e ignorante?
E logo, atabalhoadamente, voltando-se para o príncipe Aleixo, os olhos a coriscar de cólera:
— Veja Vossa Alteza a que ponto chegam a audácia e o atrevimento incrível desses aventureiros! Querem que eu desça da minha posição, para discutir o Talmude com um homem que mal sabe ler.
O príncipe mexeu-se, impaciente:
— Não poderás, meu amigo, recusar o representante judeu por tratar-se de um homem rude e inculto. Mais fácil será a tua tarefa. Esmaga esse ignorante e eu decretarei, a seguir, a expulsão de todos os judeus!
— Que assim seja — tornou o pope. — Uma vez que me obrigam a discutir com esse imbecil, exijo uma condição: aquele que deixar de responder uma pergunta será degolado imediatamente!
O puritz, fitando o rabino Uziel, perguntou-lhe:
— Aceitas a condição?
Elik, sem hesitar, com inalterado semblante, decidiu pelo rabi:
— Aceitamos, ó príncipe!
Ordenou o puritz que um gordovai, verdadeiro carrasco russo, se postasse, de espada desembainhada, por trás do aguadeiro.
— Peço a Vossa Alteza que mande colocar outro guarda na mesma atitude, de espada em punho, junto ao pope Ladislau — pediu o aguadeiro.
— Cão atrevido! — protestou enfurecido o pope. — Julgas, então, que eu vou deixar sem resposta alguma das tuas perguntas? Não passas de um pobre imbecil! E para provar que eu nada receio de ti, cedo-te o direito de fazer a primeira pergunta.
Fez-se um grande silêncio. Os judeus acompanharam com indescritível ansiedade todas as peripécias daquele desigual certame de que dependia a sorte de todos.
Elik, o aguadeiro, perguntou altivamente ao pope:
— Tu que afirmas saber tudo, conhecer tudo e responder tudo, dize-me: Que quer dizer eneno iudéia?
Essa pergunta foi seguida de uma estrepitosa gargalhada do pope:
— Envergonha-te, histrião ignóbil! Isso não é pergunta que se faça, ó cretino! Não sei!
Se uma chuva de ouro caísse no meio da multidão (sem embaraço de serem todos judeus), não teria causado maior tumulto. Os israelitas exultavam de júbilo. O príncipe Aleixo interpelou o pope com severidade:
— Com que então, ó pope! Não sabes responder a pergunta de um simples aguadeiro judeu? E não te envergonhas de confessar, em público, a tua ignorância?
O pope, lívido, trêmulo, procurava defender-se naquela situação de vexame e deslustre:
— Mas... não... Alteza. A pergunta feita pelo aguadeiro é tola. Repito: Não sei!
Cortando o silêncio que se alargava, o puritz gritou para o gordovai, apontando para o pope com um dedo alongado e lívido:
— Não se humilha impunemente um príncipe russo! Esse pope é um impostor, é um cretino! Degola-o!
Não foi necessário repetir a ordem. Com um golpe certeiro, o gigantesco gordovai fez a cabeça do pope rolar pelo estrado e cair na areia da praça. O corpo do infeliz baqueou, em seguida, para tombar surdamente, espanando sangue por todos os lados.
Os judeus ficaram estarrecidos diante daquela cena brutal e inesperada. E o príncipe Aleixo, dirigindo-se aos israelitas, disse-lhes:
— Declaro, sob minha palavra de nobre, que de hoje em diante, enquanto Deus me der alento e força, os judeus poderão viver tranqüilamente nesta aldeia!
Havia, porém, uma circunstância que só os judeus conheciam, e que, portanto, o puritz e os gohim ignoravam: eneno iudéia é uma expressão hebraica, e significa “não sei”.
O desfecho do caso, com a morte do pope e a sentença do puritz, trouxe grande alegria aos israelitas, que se dirigiram logo ao bet-adnessed a fim de render graças ao Criador.
Em certo momento, não podendo sofrear a curiosidade que o abrasava, o rabi dirigiu-se ao aguadeiro e perguntou-lhe com voz velada, cingindo-o num efusivo abraço:
— Dize-me, meu filho, como te veio à lembrança fazer ao pope aquela luminosa pergunta.
Com a maior naturalidade, na sua rudeza de iletrado, respondeu o aguadeiro:
— Tive há tempos, nestas mãos, um exemplar do Talmude, traduzido por um sábio rabi. Para todas as palavras, dava o sábio uma significação. Notei que apenas para eneno iudéia ele declarava com a maior franqueza “não sei”. Ora, se um grande rabino não sabia o que quer dizer eneno iudéia, era certo que o pope também não saberia!
Só então os judeus cultos compreenderam que a absoluta ignorância de Elik lhes garantira os bens e a tranqüilidade, pois nem ele próprio — que formulara a pergunta — sabia que eneno iudéia significa “não sei”.

Um sábio orgulhoso, quando transviado do caminho do bem, pode ser vencido pelo mais rude ignorante.


(Malba Tahan, Lendas do Povo de Deus – Conquista, Rio, 1964)

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