CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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sexta-feira

O NATAL DO OFICIAL DE JUSTIÇA - Dimitr Ivanov

— Chegaremos em tempo, meu senhor. Não se preocupe, que chegaremos ainda com a luz do dia. Veja... lá está a aldeia, ao pé da colina. Não é longe. Assim que galgarmos aquela encosta, poderemos nos considerar lá.
E o jovem cocheiro, fazendo estalar o chicote por cima das costas dos magros cavalos, gritou vigorosamente para os animar:
— Eia! Eia, meus patrões!
As quatro rodas do coche leve chapinhavam pior que nunca, na lama pastosa da estrada campestre. O velho esqueleto desconjuntado da viatura gemia lastimosamente, através da enervante monotonia da planície encharcada pelas últimas chuvas de dezembro.
O moço camponês gritou mais uma vez para os cavalos, instalou-se menos confortavelmente na boléia, bateu o boné molhado na capa espessa que o envolvia, e com a mais perfeita despreocupação pôs-se a cantar uma toada alegre.
— Como é o seu nome, rapaz? — perguntou o homem gordo, abafado num capotão de pele de lobo, que ia dentro do coche. O rapaz continuou a cantar.
— Oh, rapaz! — gritou o homem com voz áspera.
— Que é?
— Seu nome! Como se chama?
— Ondra.
— Ah, Ah, Ondra! É um rapaz muito esperto, sem dúvida! Todos aqui ficaram espertos. Uns grandes velhacos, esses camponeses. Só sabem mentir e enganar. Mas mentem e enganam muitíssimo bem. Pude observá-los no tribunal. Tão inocentes como cordeirinhos... mas na verdade uns lobos. Eles zombam dos juízes.
— Somos uma gente simples, meu senhor. E também uma gente caluniada. O senhor pode pensar o contrário, mas de fato não somos ruins. Nós, os camponeses, só enganamos por ignorância. Ignorância e miséria.
— Ah~! Então é isso! Por causa da miséria! Que finórios! Queixam-se de miséria, mas bebem como peixes!
— Pensa então que sofremos de prosperidade, senhor? Não! Não é prosperidade. Que os camponeses bebem? Sim, eles todos bebem. Para sentir-se um pouco mais felizes, não porque estejam bem de vida. Isto é uma verdade que um homem como o senhor devia escrever no seu caderno de notas.
— Ah! Está me parecendo que também você costuma virar o seu copo, amigo. Pois ainda é moço demais para isto. Ainda não tem nem um fio de barba na cara. Os camponeses são todos uns perdidos. Anote o que eu estou dizendo: uns perdidos, eis aí!
— Anote o senhor mesmo. Nós não sabemos escrever — disse o rapaz; e dirigindo-se aos seus esquálidos cavalos, gritou: — Eia! Eia, meus patrões!
Depois, pareceu mergulhar em profundos pensamentos. Os cavalos hesitaram um momento, como se também eles estivessem pensando. O homem levantou a vasta gola do seu capote de pele de lobo, desapareceu dentro dela, e por sua vez entregou-se à meditação.
Um corvo de asas arrepiadas pousou numa árvore solitária junto da estrada, e balançando-se num galho seco, grasnou lastimosamente, também ele ruminando alguma idéia. Até a melancólica atmosfera invernal parecia num estado de humor cinzento e reflexivo. Nuvens errantes de tempestade revoluteavam e fendiam-se dramaticamente sob o frio céu azul. A terra estava submersa em lama e umidade. O aspecto das aldeias, arroios, florestas e montanhas distantes obscurecia-se, deformado e sem vida, diante deles. Na planura, aqui e ali, brilhavam grandes poças de água, turvas, frias e vítreas como olhos de cadáveres.
O pequeno coche avançava lentamente através da lama compacta, escorregando, oscilando, sacolejando. Uma tábua solta, a um lado, batia constante, seca e indiferentemente, martirizando sem piedade os nervos do corpulento cavalheiro envolto em sua peliça. Afinal, perdendo a paciência, ele reabriu a gola, crispou a cara balofa e reclamou:
— Que barulho irritante é este? Diabo de coisa!
— É apenas uma tábua que soltou. Fica aí matraqueando como um sujeito instruído: só palavrório e mais nada...
— Você é mesmo esperto, Ondra, muitíssimo esperto! Sabe até enganar as mocinhas, aposto. Mas é dos que casam cedo e têm mulher bonita...
O cavalheiro baixou a gola do imenso capote, disposto a prosseguir em sua tentativa de jocosidade. O jovem retrucou:
— O senhor, pelo que posso concluir, veio fazer uma diligência na nossa aldeia.
— Sou oficial de justiça.
— E está a serviço?
— Sim, a serviço, naturalmente. Um dos seus excelentes amigos pregou-me uma peça, mas desta vez está bem arranjado. Tenho um papelzinho aqui no bolso, que facilita extraordinariamente as coisas. Fui informado de que o tal está nos empulhando. Vou investigá-lo esta noite. Pode você ficar certo de que ele terá boas razões para lembrar-se de mim e deste Natal. Vou confiscar-lhe toda a cevada... até o último grão! Não só para ele aprender a andar direito, mas também como advertência ao resto da canalha, que assim não tentará mais enganar as autoridades. Vocês trapaceiam com os mercadores, lesam os habitantes das cidades, vendem-lhes ovos podres e manteiga rançosa. Mas não perderão por esperar, pois iludir a justiça é mais difícil. Nós sabemos como aplicar o castigo. Vocês precisam é de chicote, de um knut russo bem comprido, que é o único modo de ensinar-lhes alguma coisa. Todos vocês se tornaram beberrões, sem-vergonhas, uma verdadeira escória humana. Negam-se a pagar os seus impostos, são ladrões do fisco. Os interesses do Estado sofrem por causa de vocês. Ah, eu gostaria de ser o Czar, ao menos por dois dias, para corrigir vocês à minha moda! Tornaria vocês todos uns perfeitos anjinhos. Sim, senhor, uns anjinhos! Pena que eu não seja o Czar!
O oficial de justiça desabotoou o capote dentro do qual se agitava, como um pinto querendo sair da casca. Ondra respondeu, com fingida simplicidade:
— Oh! Mas senhor Oficial, o Bom Deus criou o mundo e previu que as mulheres não iam precisar de barba; assim, não lhes deu barba. Calculou que os burros iam precisar de orelhas grandes; assim, deu a cada um deles um bonito par de orelhas.
— Pare de dizer bobagens e trate de tocar para frente. Está começando a escurecer, e eu tenho que voltar, para passar o Natal com a minha família. Você está cobrando um preço exorbitante, para andar só vinte quilômetros. Sabe como esfolar um incauto passageiro. Mais depressa, que senão esses matungos pegam no sono!
— Eia! Eia, meus patrões!
— Patrões, heim! Por que não os chama de irmãos? — perguntou, sarcástico, o oficial de justiça.
— Eles não gostariam disso, senhor Oficial. Eu os insultaria se os chamasse de irmãos. Pois não são mesmo uns perfeitos cavalheiros? E o serviço deles é oficial, correm sempre dentro da tabela. De manhã, levantam-se. Numa hora determinada, comem e bebem. São depois atrelados e vão, pode-se dizer, para os escritórios deles, e puxam até o anoitecer. Comem sua ceia na hora certa, bebem água, “lêem os jornais”, por assim dizer, e vão dormir. O tipo da vida oficial!
— Onde você arranja a sua cachaça, rapaz? Deixe de baboseiras e vamos tocando. Não quero chegar tarde. Você tem cara de maroto, rapaz, de refinado maroto, é o que lhe digo.
— Não há lobos nas redondezas, senhor Oficial, se é por isso que está com receio — esclareceu o jovem cocheiro, num tom que fez o digno representante da justiça lançar ao redor de si olhares apreensivos.
— Não tenho medo de lobos, amigo, mas do frio. Não disponho de tempo para curar um resfriado.
Permaneceram em silêncio por um momento.
— Então o senhor vem em missão oficial? Quem vai ser a vítima desta vez? — indagou Ondra, olhando seriamente o rosto do passageiro.
— Ora, por que não dizer a você? — disse o oficial de justiça, depois de pensar alguns instantes. — É um tal de Stanoycho, homenzinho magro de pescoço grosso.
— Eu o conheço. Então o senhor vai confiscar a cevada dele? Mas é um homem pobre, senhor Oficial. Perdoe-o por esta vez. Estamos no Natal, como sabe, e tudo o mais.
— Pobre, talvez, mas canalha, com certeza!
O agente da justiça caiu em silêncio. Anoitecia. Os cavalos pareciam mal poder arrastar-se até o topo da colina, depois da qual ficava a aldeia. Ondra não mais os animava com a voz, nem sacudia o seu longo chicote sobre eles. Parou de falar, esqueceu-se de cantar e perdeu-se em meditação.
Quando atingiram o alto da colina e começaram a descer pelo outro lado, a noite caíra, mas ainda não havia sinal da aldeia. Um vento frio e penetrante soprava sobre a terra encharcada. Nuvens dispersas fugiam para as montanhas. A abóbada azul do céu gelado clareou, ampliou-se e elevou-se a maiores alturas. Logo apareceram, frias e cintilantes, as primeiras estrelas. O ar estava perceptivelmente mais frígido. Os cavalos, já agora em terreno plano, marchavam lenta, preguiçosamente.
— Toque esses bichos! Meta o chicote neles! Grande palerma! Acabamos é morrendo de frio — vociferou o furioso passageiro.
Ondra gritou com indiferença para os cavalos, e molemente agitou o chicote sobre suas cabeças, mas as pobres bestas extenuadas, quase inertes, continuaram a puxar o coche como se nada tivessem ouvido.
Ondra estava pensando no mísero Stanoycho, cuja cevada o oficial de justiça ia confiscar na manhã seguinte. “Foi você quem me trouxe esta desgraça, Ondra!” — diria Stanoycho, e quando terminasse de lançar a culpa sobre ele, convidaria Ondra para comer à sua mesa, junto com toda a família, e então choraria. Sim, ele certamente choraria. O coração de Stanoycho era mole. Ondra sabia disto. Ele precisava ajudar o pobre homem, arranjar meio de dizer-lhe para esconder a sua cevada durante a noite e deixar o paiol vazio, que do contrário ele e sua família curtiriam um ano de fome. Sim, ele precisava fazer alguma coisa.
Lama por toda parte. Lama grossa, profunda, e nada mais que lama. A própria estrada afundara na lama e não levava já a parte alguma, senão a mais lama. Ondra puxou as rédeas e deteve os cavalos.
— Estamos em perigo de nos perder, senhor Oficial.
E os olhos de Ondra perscrutavam a escuridão. O oficial olhou muito sério para o rosto do cocheiro, no qual não era visível qualquer traço de mistificação.
— Abra esses olhos, rapaz, senão terá que ajustar contas comigo. Fique sabendo que eu tenho a mão pesada.
Ondra sacudiu as rédeas, estalou o chicote e gritou:
— Segure-se bem, senhor Oficial!
Muito ao longe, diante deles, as luzes da aldeia brilhavam fracamente. O eco distante do latir de cães. Alguns pés à direita, luzia a superfície perlácea de uma grande poça de água imóvel. O coche virou naquela direção.
— Que é isto? — perguntou o passageiro.
— Um charco, meu senhor. A estrada passa através dele. Não é profundo, esteja tranqüilo. Apenas alguns buracos aqui e ali. Eu geralmente evito cair neles, a pé ou de carro. Eia, meus patrões! Segure firme, senhor Oficial.
Os cavalos chapinharam na água glacial, que refletia o céu estrelado. Prosseguiram com progressiva cautela, mas sempre aos solavancos, à proporção que afundavam cada vez mais no charco. A superfície morta da água esverdeada parecia adquirir vida.
— Pare, seu estúpido! — berrou o oficial de justiça, aterrorizado, ajustando bem o capote em torno do corpo. — Você acabará me afogando, bandido! Não vê que o carro está se enchendo de água? Pare! Pare!
Ondra puxou as rédeas. O coche afundou mais na água, parando no meio do charco, cujas margens se perdiam na escuridão impenetrável.
— Eia! Toca pra frente! — gritou Ondra aos seus cavalos.
Sua voz jovem e poderosa ecoou através da noite. Perto, alguns patos selvagens sacudiram excitadamente as asas e perderam-se na sombra.
— Acho que também nós teremos que virar patos para sair daqui — disse Ondra, pensativamente — do contrário...
— Animal! Espere até que eu me veja livre disto! Quebrarei todos os ossos do seu esqueleto! Vamos nos afogar aqui como ratos! Miserável! Cretino!
— Não, não morreremos afogados, meu senhor, esteja tranqüilo. No escuro, qualquer um pode perder o caminho. Sossegue — disse calmamente Ondra, e começou a examinar os arreios. Pôs-se a afivelar e desafivelar várias correias, praguejando alto, atando, desatando, reclamando sempre. Finalmente endireitou-se no seu lugar sobre a boléia, estalou o chicote e bradou:
— Eia! Eia, meus patrões!
Os cavalos puxaram, o coche deslocou-se um pouco. Subitamente um dos animais desprendeu-se do varal e avançou pelo charco, livre das correias. O outro cavalo continuou preso ao coche.
— Energúmeno! Como foi isto? — berrou o passageiro.
— Pára, Dorcha! Dorcha! — gritou Ondra. E continuou a chamar o animal solto, para que retornasse ao coche.
Mas o cavalo, amedrontado pela água, logo afastou-se em direção à margem do charco, onde pouco a pouco foi desaparecendo, indiferente aos apelos do seu dono. O oficial de justiça levantou-se, no auge da excitação, o terror estampado em cada um dos seus traços. No mesmo instante Ondra pulou sobre o outro cavalo, e lá se foi atrás de Dorcha, continuando a chamar insistentemente:
— Dorcha! Dorcha, espera! Volta... Dorcha, Dorcha!
— Aonde vai você? Pare aí! Que pretende fazer, bandido? Miserável! Você não sairá vivo das minhas mãos.
Na escuridão, uma gargalhada alegre soou, como única resposta.
— Ah! Quer me deixar aqui, não é? Para morrer! Para que os lobos me devorem!... Ondra, não faça isto, eu lhe peço! — implorou o coitado com voz trêmula.
— Não tenha medo, meu senhor. Não existem lobos no pantanal. Só precisa é de se agasalhar, para não sentir muito frio. Amanhã de manhã... bem cedinho... virei buscar o senhor. Há cevada no coche. Pode fazer com ela uma cama, e eu não lhe cobrarei a dormida.
— Ondra, deixe de brincadeiras! Não me abandone! Volte! Leve-me embora daqui!
— Está muito escuro, meu senhor. Não estou enxergando nem a ponta do meu nariz. E o outro cavalo fugiu. Nada posso fazer pelo senhor. Sinto muito, acredite...
O oficial de justiça ouviu a voz zombeteira que se afastava na escuridão. Apavorado ante a iminência de ficar sozinho no meio do charco sinistro, rompeu em lacrimosos clamores:
— Ondra, volte! Por favor... por favor! Eu pago o que você quiser... pago qualquer preço! Ajude-me a sair deste maldito pântano! Não me abandone! Eu tenho filhos! Eles estão me esperando... Estamos no Natal! Você não tem coração?...
A voz do passageiro partiu-se num soluço de desespero. Prestou atenção. Nenhum som. Então, como se abandonado também pelo próprio entendimento, invectivou a escuridão muda:
— Hei, amigo! Animal! Estúpido! Volte! Bandido! Tire-me daqui! Tenha pena de mim! Meus filhos! O Natal! Cocheiro do inferno! Cão imundo!...
E tornando a cair sobre o assento do coche, como que mergulhou dentro da gola do capote e pôs-se a chorar como uma criança.
Mas a noite negra não lhe deu resposta.


(Dimitr Ivanov, in Maravilhas do conto universal – Cultrix, SP, 1958)

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