CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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quinta-feira

A LEGENDA DE INGELHEIM - Alexandre Dumas

Carlos Magno, tendo notado a excelente disposição do terreno de Ingelheim, fez transplantar para ali as cepas do melhor vinho de Orléans. A vinha ganhou o cêntuplo com o transplante. Foi uma grande alegria para o Imperador, tê-lo tão bem conseguido, tanto que, depois de Aix-la-Chapelle, sua residência preferida era Ingelheim, ou Casa do Anjo. É muito curiosa a origem do nome poético e celeste com que foi batizado o castelo.
Pelo ano de 768, Carlos Magno decidiu construir um palácio que dominasse o Reno, e em 774 ele já estava edificado. Era um prédio magnífico, metade fortaleza, metade palácio, sustentado por cinqüenta colunas de mármore e cinqüenta de granito. As de mármore foram-lhe enviadas de Roma e de Ravena pelo Papa Estêvão III, e as de granito foram extraídas do Adenwald. Assim, vendo sua nova morada imperial tão felizmente concluída, determinou ali reunir uma dieta. Em conseqüência, os príncipes e senhores dos arredores foram convocados para aquela grande solenidade.
Quando o Imperador acabara de adormecer, na noite que precedeu o dia em que a dieta devia se realizar, um anjo lhe apareceu e disse: “Carlos, levanta-te e rouba”. Carlos Magno logo acordou, e sentiu um celeste perfume no seu quarto. Mas, como as palavras que o anjo lhe dissera não pareciam concordar com os Mandamentos de Deus e da Igreja, pensou ter tido um sonho, e tornou a dormir.
Mal havia fechado os olhos, a mesma visão apareceu-lhe de novo. Com semblante severo como o de um mensageiro que tem o direito de se surpreender de não ser obedecido, o anjo repetiu com voz severa as palavras que já tinha dito, e que o Imperador julgara ter ouvido mal. Ele abriu em seguida os olhos e viu o aposento cheio de uma luz celestial, que foi se extinguindo pouco a pouco, e finalmente desapareceu por completo.
Entretanto, a ordem era tão estranha que Carlos Magno hesitou ainda em obedecer. Repousando a cabeça sobre o travesseiro, tornou a adormecer uma terceira vez. Ainda desta vez o mesmo anjo lhe apareceu, mas com fisionomia tão ameaçadora, e reiterou a mesma ordem com voz tão imperiosa, que o Imperador — que entretanto não era nada fácil de atemorizar — estremeceu de medo e acordou sobressaltado. Desta vez, não somente o mesmo aroma celeste estava difundido e a mesma luz refulgente brilhava, mas ainda o anjo estava de pé junto ao seu leito. Somente quando teve certeza de que o Imperador não poderia mais duvidar da realidade da sua presença, estendeu suas asas de ouro e desapareceu. Então Carlos Magno não teve mais dúvida de que a ordem vinha do Céu, pois o mensageiro era demasiadamente belo para ser um enviado do inferno.
Carlos Magno não hesitou mais. Imediatamente levantou-se e vestiu-se às apalpadelas, deplorando um mandamento do Céu que lhe ordenava começar tão tarde uma ação tão infame. Mas o Imperador estava, como Abraão, decidido a tudo sacrificar por Deus, inclusive sua honra. Vestiu sua couraça, cingiu a espada e tomou seu elmo à mão, como se fosse comandar uma daquelas expedições guerreiras, pelas quais tinha tanta simpatia quanto por esta tinha repugnância. Enfim saiu de seu quarto, e detendo-se numa galeria da qual podia-se divisar toda a região, fez uma pausa para decidir por que lado iria cometer esse roubo tão embaraçante de executar.
A noite era sombria, como convinha a semelhante expedição. Mas, por sugestiva que fosse a escuridão, o Imperador era completamente alheio à nova arte que deveria exercer. Se bem que andasse de um lado a outro por cerca de uma hora, não lhe havia ocorrido a menor idéia. De repente percebeu que lhe tinham roubado o elmo, que deixara sobre a balaustrada da galeria. O Imperador procurou por todos os lados, olhou dentro e fora, mas toda a busca foi inútil: o elmo tinha desaparecido.
O roubo era tanto mais ousado quanto o ladrão era hábil. E se o ladrão era hábil, em tais circunstâncias poderia dar um bom conselho ao Imperador. Assim, pareceu-lhe que esse era um novo favor do Céu, que, vendo seu embaraço, tinha tido pena dele. Em conseqüência, elevando a voz, exclamou:
— Aquele que roubou meu elmo apresente-se diante de mim, e por minha palavra real, em vez de ser punido, receberá uma recompensa de cem ducados.
Ato contínuo uma risada aguda reboou na galeria, e debaixo da tapeçaria que cobria uma mesa Carlos Magno viu sair o seu anão, que se aproximou dele e estendeu-lhe o elmo para que nele jogasse a soma prometida.
— Ah! És tu o infame ladrão — disse Carlos Magno. — Deveria ter suspeitado que só tu serias capaz de aplicar um tal golpe, e deveria ordenar que te dessem cem varadas, em vez de prometer cem ducados tão imprudentemente como o fiz.
— Sim, meu Senhor — disse o anão. — Teria sido mais econômico, é verdade, mas um nobre tem apenas uma palavra. Eis vosso elmo. Onde estão os cem ducados?
— Tu os terás em seguida, depois de me teres dado um bom conselho.
— Os cem ducados foram prometidos pelo elmo, e não pelo conselho. Dai-me os cem ducados pelo elmo, e tereis o conselho grátis.
Carlos Magno estendeu a mão, para agarrar o patife que lhe falava com tanta impertinência, mas o anão viu o movimento e saltou rápido sobre a balaustrada, pôs-se a galgar uma das colunas e só parou quando estava sobre uma das folhas do capitel. Pôs-se a cantar uma canção, da qual compunha ao mesmo tempo a música e as palavras:
— Tenho já um elmo, um belo elmo, um elmo encimado por uma coroa real, um elmo que me custa cem ducados. E tratarei de ter pelo mesmo preço uma couraça e uma espada, e então me farei armar cavaleiro por algum imperador que não tenha jamais faltado à sua palavra. Depois, quando for armado cavaleiro, quando eu tiver uma grande espada e uma boa lâmina, irei por vales e montes, fazendo justiça, porque nos feudos da Germânia e da França muita justiça precisa ser feita. Mas — ai de mim! — onde encontrarei, para me armar cavaleiro, um rei que jamais tenha faltado à sua palavra?
O barulho de uma bolsa que caía nas lajes interrompeu a improvisação do cantor. O anão compreendeu que sua canção havia produzido efeito, desceu da cornija e foi apanhar a bolsa, com um olho sobre ela e outro sobre o Imperador.
— Vamos, vem cá, patife, e não temas nada — disse Carlos Magno. — Tenho necessidade de ti.
— Oh! Então, se tendes necessidade de mim, é outra coisa, e não tenho mais medo.
— Eu estou precisando de roubar.
— Péssima profissão, sobretudo porque se trata de pessoas que prometem e não mantêm a palavra. Assim — podeis crer-me, — uma vez que tendes a desventura de ter nascido honesto, é melhor permanecer honesto.
— Eu te digo que quero roubar — disse Carlos Magno num tom que indicava estar começando a cansar-se das reflexões filosóficas de seu interlocutor.
— Bem, se é uma vocação decidida, então não há mais nada a acrescentar. Que quereis roubar?
— Eis o que eu não sei. Mas quero roubar alguém, e logo, nesta noite.
— Raios! Está bem, roubemos.
— Mas a quem vamos roubar?
— Vejamos... Estais vendo aquela pobre cabana?
— Sim.
— Há ali um bom golpe a dar. Por mais pobre que pareça, o dono dela hoje tem cem florins. Há cerca de dez anos aquele camponês trabalha todos os dias, de cinco horas da madrugada até às oito horas da noite, e conseguiu guardar todo esse dinheiro. A porta fecha mal e o bom homem tem o sono pesado, por isso é fácil roubá-lo.
— Miserável! Queres que eu vá pegar de um infeliz o fruto de dez anos de trabalho, um dinheiro ganho com o suor de seu rosto!
— Eu não quero nada. Vós é que me pedistes um conselho, e eu o dou. É só isso.
— Vamos a outra coisa, então.
— Vedes aquela casa de campo?
— Sim, vejo.
— Pertence a um rico comerciante. Nela não achareis florins, mas ducados; e não às centenas, mas aos milhares.
— Sem dúvida foi com pesos adulterados e com usura que ele adquiriu tal fortuna.
— Não. Pelo contrário, foi fazendo cálculos de tal maneira exatos, para si como para os outros, que sua probidade tornou-se proverbial. A probidade trouxe a ele o que a velhacaria traz a outros.
— E queres então que eu arruíne um homem que possui fortuna tão honrada?
— Eu não quero nada. Sois vós, ao contrário, que desejais roubar. Digo-vos somente quem são os que têm dinheiro.
— Sim, sem dúvida quero roubar, mas não ao pobre lavrador, não ao comerciante esforçado e honesto. Quereria roubar a algum desses maus cavaleiros, que vivem de pilhagem e rapinas, que traem aqueles que deveriam servir, e que oprimem aqueles que deveriam defender.
— Ah! Então é outra coisa! Por que não vos explicastes logo? Tenho então a solução. Aquele castelo pertence ao senhor Harderic, o maior bandido que a Terra tenha produzido depois do falso profeta Maomé.
— Tanto melhor!
— Mas não será coisa fácil. Ele tem o sono leve e a mão pesada. Haverá golpes a dar.
— Tanto melhor! Tanto melhor!
— Então ide colocar outra couraça, escura como a noite na qual é preciso que nos esgueiremos. Pegai um punhal curto, em lugar dessa longa espada. A espada é uma arma diurna, para ferir de longe. À noite só se golpeia o que se toca. Tem-se os olhos nas mãos, e é preciso que os olhos não estejam demasiado longe da lâmina. Ide e voltai, eu vos espero aqui, contando os ducados.
O Imperador não precisou ouvir duas vezes. Foi e voltou coberto de uma cota de malhas de aço opaco, que lhe cobria o corpo como um gibão e envolvia a cabeça como um capuz. Levava na cintura um punhal largo, curto e cortante como o gládio romano. O anão examinou-o dos pés à cabeça, fez um sinal de aprovação e os dois saíram do palácio. Pelo caminho mais direto, ou seja, através do campo, avançaram rumo ao castelo de Harderic.
Chegados à porta do castelo, o anão fez um sinal a Carlos Magno para ficar o mais perto possível da porta. Lançando-se sobre uma figueira que crescia no fosso, e da figueira agarrando-se à muralha, galgou-a, enfiando sucessivamente as mãos e os pés nos interstícios das pedras, até chegar às ameias, e desapareceu. Um instante depois Carlos Magno ouviu ranger a chave na fechadura. A porta mexeu-se pesadamente, mas sem fazer ruído, depois entreabriu-se o necessário para deixar passar um homem. Carlos Magno passou, o anão empurrou a porta com as mesmas precauções que tomara para abri-la, e assim encontraram-se no pátio do castelo.
— Eis o vosso caminho — disse o anão, mostrando a escada que conduzia aos apartamentos do castelo; e mostrando a cavalariça, acrescentou: — e aqui está o meu.
— Por que não vens comigo?
— Porque tenho também um golpe a dar.
Pondo-se a correr de quatro, como um cachorro, para não ser reconhecido como criatura humana no caso de ser visto, atravessou o pátio e entrou na cavalariça. Carlos Magno subiu a escada o mais silenciosamente que pôde, e entrou nos apartamentos. Graças a um raio de luar, que apareceu no céu naquele momento, conseguiu chegar ao quarto que precedia aquele onde Harderic e sua esposa dormiam. Aí estendeu a mão, para ver se achava algo para pegar, e tocou num cofre fechado sobre a mesa, que imaginou conter dinheiro ou jóias. Nesse momento o cavalo do castelão relinchou tão fortemente que Carlos Magno estremeceu.
— Heim! — esclamou Harderic, acordando em sobressalto. — Que se passa na minha cavalariça?
— Nada — respondeu a esposa. — É teu cavalo que relincha.
— Meu cavalo não costuma relinchar assim, a não ser quando alguém que ele não conhece tenta desatá-lo.
— E quem pensas que tenta desatar teu cavalo?
— Um ladrão, ora essa!
Harderic desceu do leito e pegou a espada. Carlos Magno então recuou, escondendo-se e mantendo a mão na empunhadura da arma, e viu Harderic passar. Ao cabo de um momento o castelão voltou.
— O que havia na cavalariça? — perguntou-lhe a mulher.
— Nada. Mas há três ou quatro noites não consigo dormir.
— Não consegues dormir porque certamente planejas alguma coisa.
— É verdade.
— E o que planejas?
— Posso te dizer agora, pois o momento de nosso projeto cumprir-se já praticamente chegou. Amanhã, eu e onze outros condes, barões e senhores deveremos matar o Rei Carlos, que nos impede sermos senhores em nossas terras. Estamos fartos disso, e não queremos mais suportá-lo.
— Oh! meu Deus, meu Deus! E se vosso complô fracassar? Estareis todos perdidos.
— Impossível. Estamos ligados entre nós pelos juramentos mais terríveis. Amanhã, convocados para a dieta como todos os outros, entraremos no palácio sem despertar nenhuma suspeita. Estaremos bem armados, mas ele não estará. Cercaremos seu trono e o mataremos.
— E quem são os conjurados?
— Isso é o que não posso dizer nem a ti. Mas o engajamento deles já está assinado com sangue, e fechado no cofre que está aí ao lado.
— Deus queira que tudo isso termine bem.
O castelão voltou a dormir. Durante algum tempo ainda se ouviram os suspiros da castelã, mas logo depois sua respiração suave confundiu-se com os roncos do seu marido. Então Carlos Magno tomou o cofre, colocou-o debaixo do braço, atravessou os apartamentos, desceu a escada e chegou ao pátio. Lá viu o anão, que se debatia sobre o cavalo de guerra do castelão. O Imperador saltou sobre o cavalo, que logo compreendeu tratar-se de cavaleiro experiente, e tornou-se dócil como um cordeiro. Carlos colocou o anão na garupa e partiu a galope.
Chegando ao castelo, Carlos Magno abriu o cofre que tinha roubado, e nele achou os compromissos dos doze conjurados, assinados com sangue. Fez acordar sua gente, e mandou que levantassem, num dos pátios do palácio, onze forcas de tamanho comum e uma mais alta que as outras. Em cima de cada uma das doze forcas, fez pregar um rótulo com o nome de cada conjurado, e sobre a forca mais alta o nome do chefe deles, Harderic.
Depois, como havia duas entradas no palácio, ordenou receberem todos os outros barões convocados por uma outra porta e em outro pátio, e receberem os conjurados pela porta e no pátio das forcas.
As instruções foram rigorosamente seguidas. Quando viu todos os barões reunidos, Carlos Magno narrou-lhes o complô tramado contra ele, mostrou-lhes o compromisso assinado com sangue dos doze conjurados, e perguntou-lhes que pena mereciam. Todos, a uma voz, disseram que mereciam a morte. Então Carlos Magno fez abrir as janelas que davam para o segundo pátio, e os barões viram os doze conjurados suspensos nos doze postes.
Em memória da aparição celeste à qual devia a vida, Carlos Magno chamou o palácio de Ingelheim, ou Casa do Anjo.


(Alexandre Dumas, Excursions sur les bords du Rhin – Impressions de voyage – Calmann-Lévy, Paris)

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