CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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quinta-feira

O HOMEM DISTRAÍDO - Jerome K. Jerome

Você o convida a jantar na quinta-feira, para encontrar algumas pessoas que muito desejam conhecê-lo.
— Mas não faça nenhuma trapalhada — adverte-o, lembrando-se de infortúnios anteriores —, e não venha na quarta.
Bonacheirão, ele ri, enquanto revista o quarto inteiro em busca da agenda.
— Não poderei ir na quarta — responde —, pois tenho de ir à Prefeitura fazer uns desenhos de trajes, e na sexta parto para a Escócia de modo a estar na Exposição no sábado. Desta vez tem de dar certo. Onde diabo anda a minha agenda? Deixe estar: vou anotar aqui, você mesmo pode ver.
Você se debruça sobre ele, enquanto ele anota o compromisso numa folha de papel almaço, e o vê prender a nota acima da escrivaninha. Depois você retira-se, tranqüilo.
— Espero mesmo que ele apareça — diz você à sua esposa na noite de quinta-feira, enquanto se veste.
— Você tem certeza de haver explicado tudo direitinho para ele? — pergunta ela, desconfiada.
Você percebe instintivamente que, haja o que houver, ela vai pôr a culpa em você.
Oito horas: chegam os demais convidados. Às oito e meia a dona da casa é misteriosamente chamada para fora da sala, onde a arrumadeira a informa de que a cozinheira mostrou a firme determinação de, caso o atraso se prolongue, lavar as mãos (em sentido figurado) quanto ao que possa acontecer.
De volta, sua esposa sugere aos hóspedes, caso queiram mesmo jantar, começarem imediatamente. Decerto ela acha que, ao pretender esperar o seu amigo, você estava apenas representando um papel, e que teria sido bem mais decente e mais direito confessar logo que você se esqueceu de convidá-lo.
Durante a sopa e o peixe, você vai contando anedotas sobre a impontualidade dele. Quando chega a entrée, a cadeira vazia já está espalhando um ar de melancolia pela sala toda, e a conversa, por associação de idéias, deriva para um bate-papo sobre parentes falecidos.
Na sexta-feira, às oito e quinze, ei-lo a assomar à porta, tocando a campainha com violência. Ouvindo-lhe a voz no patamar, você vai ao encontro dele.
— Desculpe o atraso — brada ele alegremente. — O idiota do cocheiro de um carro de aluguel levou-me à Alfred Place em vez de...
— Bem, e agora quais são as suas intenções? — interrompe você, sentindo em relação a ele tudo, menos simpatia.
Por ser um velho amigo, pode tratá-lo com rudeza.
Ele ri e lhe dá um tapa nas costas:
— Ora, quero o meu jantar, meu caro. Estou morto de fome.
— Ah! — responde você grunhindo. — Pois vá buscá-lo em outro lugar. Aqui é que você não vai comer.
— Que diabo quer você dizer, heim? Não foi você que me convidou para jantar?
— Eu não fiz nada disso — replica você. — Convidei-o, isto sim, para jantar na quinta, não na sexta.
Ele olha para você com incredulidade.
— Como é que eu guardei na cabeça sexta-feira? — pergunta, inquiridor.
— Porque a sua cabeça é daquelas que guardam firmemente sexta-feira, quando o dia certo é quinta — explica você; e acrescenta: — Pensei que você tinha de ir a Edimburgo hoje à noite.
— Droga! É mesmo!
E, sem mais uma palavra, o amigo vira-lhe as costas e você ainda o ouve, correndo pela rua, gritar pelo fiacre que acabou de dispensar.
Enquanto volta para o escritório, você se dá conta de que ele terá de viajar até à Escócia em traje de rigor e mandar o empregado do hotel comprar um terno. Essa idéia o deixa feliz.
A coisa toma rumo ainda mais desolador quando o anfitrião é ele. Lembro-me de ter estado com ele um dia no seu iate. Passava um pouco de meio-dia, e estávamos sentados na beira do barco, com os pés no rio, balançando. Era solitário o lugar, a meio caminho entre Wallingford e Day’s Lock. De repente, na curva do rio apareceram dois esquifes, cada um com seis pessoas muito bem trajadas. Logo que nos viram, começaram a sacudir lenços e sombrinhas.
— Opa! — disse eu — aí estão umas pessoas cumprimentando você.
— Ora, isso é comum aqui — respondeu ele sem olhar para cima. — Eles devem vir de algum jantar de fim de ano, de Abingdon; com certeza.
Os barcos aproximaram-se. Quando se achavam a umas duzentas jardas, um senhor de idade levantou-se na proa do primeiro esquife e gritou para nós.
Ao ouvi-lo, McQuae deu um pulo que quase o joga na água.
— Céus! — exclamou — esqueci-me completamente disto.
— De quê? — perguntei.
— Ora, são os Palmers, os Grahams e os Hendersons. Convidei-os todos a almoçar, e agora não tenho a bordo nada para comer, a não ser duas costeletas de carneiro e uma libra de batatas. Ainda por cima, dei férias ao garoto!
Outro dia, estávamos almoçando com ele no Junior Hogarth, quando um tal de Hallyard, amigo de ambos, veio ter conosco.
— Que é que vocês dois vão fazer esta tarde? — perguntou, sentando-se à nossa frente.
— Vou ficar aqui escrevendo cartas — respondi.
— Se está procurando o que fazer, venha comigo — disse McQuae. — Vou levar Leena até Richmond (Leena era a jovem de quem ele se lembrava de ser noivo. Depois, transpirou que ele era noivo de três garotas ao mesmo tempo, mas esquecera-se completamente das outras duas). Atrás há lugar bastante.
— Está bem — disse Hallyard.
E foram-se embora juntos num cabriolé com a boléia atrás.
Hora e meia depois, Hallyard voltou ao salão com expressão cansada e deprimida, e atirou-se numa poltrona.
— Pensei que você ia a Richmond com McQuae — disse-lhe.
— Eu também — respondeu.
— Algum acidente? — perguntei.
— Sim — respondeu, ainda mais lacônico.
— Problema com a carruagem?
— Com eu mesmo.
A sintaxe e os nervos dele pareciam totalmente afetados.
Esperei por uma explicação, que obtive após pequena pausa.
— Chegamos a Putney — contou ele — depois de apenas uma leve colisão com um bonde; e íamos subir pelo morro, quando de súbito ele deu uma virada. Você conhece a maneira dele de virar: por cima do meio-fio, através da rua, de encontro ao lampião da frente. Sem dúvida eu esperava por aquilo; apenas, nunca teria pensado que ele virasse naquele lugar. A primeira coisa de que me lembro é de estar sentado no meio da rua, com uma dúzia de basbaques rindo de mim. Numa situação dessas a gente leva uns minutos para saber onde está, e foi o que aconteceu. Quando me levantei, já os dois estavam a alguma distância. Corri atrás deles por um quarto de milha, berrando o mais alto que pude, e acompanhado por um bando de garotos, que por sua vez urravam a mais não poder. Era como gritar para acordar os mortos. Assim, peguei o ônibus e voltei. Bem que eles poderiam ter adivinhado, pelo desgoverno da carruagem, o que havia acontecido, se tivessem um tiquinho de percepção. Não sou nenhum peso-leve.
Queixou-se de cansaço e disse que ia para casa. Sugeri que fosse de carro, porém ele respondeu que preferia ir a pé.
Encontrei McQuae na mesma noite no Teatro Saint James. Era uma première, e ele estava fazendo desenhos para The Graphic. No momento em que me viu, correu para mim.
— Você é a pessoa exata a quem eu queria encontrar — disse-me. — Será que peguei Hallyard comigo no carro para ir a Richmond esta tarde?
— Sim, pegou-o.
— É o que Leena diz — declarou-me, em extrema confusão —, mas posso jurar que não estava lá quando chegamos ao Queen’s Hotel.
— É isso mesmo — respondi. — Você o deixou cair em Putney.
— Deixei-o cair? — perguntou. — Não me lembro de ter feito semelhante coisa.
— Mas ele se lembra — disse eu. — Interrogue-o a respeito: ele não fala noutra coisa...
Todos achavam que ele não se casaria nunca. Era absurdo supor que, numa só manhã, ele se lembrasse do dia, da igreja e da moça. Se chegasse ao pé do altar, esqueceria a que viera e cederia a noiva ao padrinho do casamento. Hallyard achava que ele já era casado, mas se esquecera do fato. Eu mesmo achava que, casando-se, ele o esqueceria no dia seguinte.
Porém todos estávamos errados. Por milagre, a cerimônia chegou a realizar-se; e se a lembrança de Hallyard era exata (o que era bem possível), ia dar confusão. Quanto às minhas apreensões, eu as pus de lado logo que vi a moça. Era uma mulherzinha alegre e simpática, e não parecia ser do tipo que se deixa esquecer.
Não vi McQuae desde o casamento, que se efetuara na primavera. Voltando da Escócia em jornadas ligeiras, parei por alguns dias em Scarborough. Após a table-d’hôte, vesti o impermeável e saí para dar uma volta. Chovia muito, mas depois de um mês passado na Escócia não se nota mais o tempo da Inglaterra, e eu precisava de ar. Andando pela baía escura com o vento batendo na cabeça, tropecei numa figura agachada, que procurava proteger-se da tempestade encostando-se à parede da estação de águas.
— Desculpe — disse eu —, não o vi.
Ao ouvir a minha voz, a figura ergueu-se:
— É você, meu velho?
— McQuae! — gritei.
— Por Deus — disse —, em toda a minha vida nunca senti tamanho prazer em encontrar alguém.
E quase me arrancou a mão, de tanto sacudi-la.
— Mas que diabo está você fazendo por aqui? — perguntei. — Está inteiramente ensopado.
Ele vestia uma roupa de flanela e uma capa de tênis.
— Pois é — respondeu. — Não pensei que fosse chover. De manhã fez ótimo tempo.
Comecei a suspeitar que ele estava com febre cerebral, devido à estafa.
— Por que não volta para casa? — perguntei,
— Não posso — respondeu. — Não sei onde estou morando. Esqueci-me do endereço.
E acrescentou:
— Pelo amor de Deus, leve-me para algum lugar e dê-me algo para comer. Estou morrendo de fome.
— Você está sem dinheiro? — perguntei, enquanto voltávamos para o hotel.
— Nem um tostão — respondeu. — Chegamos a York, eu e minha mulher, por volta das onze. Deixamos as malas na estação e fomos procurar um lugar para ficar. Depois de tê-lo encontrado, mudei de roupa e saí para dar uns passos. Disse a Maud que estaria de volta à uma para almoçar. Idiota como sou, não anotei o endereço, nem observei o caminho por onde andara. É uma atrapalhação danada — continuou. — Não sei como vou encontrá-la. Esperava que ela fosse sair à tarde, para dar um passeio na estância, e estou zanzando pela estrada desde as seis. Não tinha os três pence para entrar.
— Mas você não tem idéia da espécie de rua ou do aspecto da casa?
— Não tenho a mínima. Deixei Maud cuidar de tudo, e não prestei atenção a nada.
— Você tentou perguntar em algumas pensões?
— Se tentei! — exclamou amargamente. — Tenho batido em tudo que é portão e perguntado, por toda parte, se a Sra. McQuae mora ali. Na maior parte das casas bateram-me com a porta no nariz, sem responder sequer. Fui contar a coisa a um guarda, pensando que ele me poderia dar alguma sugestão. Mas o imbecil riu-me na cara, o que me enfureceu a tal ponto que lhe dei um soco, e tive de dar o fora. A esta hora eles devem estar-me procurando. Entrei num restaurante — continuou sombrio — e tentei obter a crédito um bife. Mas a proprietária disse que já ouvira a história antes, e mandou, na frente de todos os fregueses, que me enxotassem de lá. Acho que teria dado fim à vida, se você não tivesse aparecido.
Após mudar de roupa e comer alguma coisa, ele se pôs a discutir o caso comigo com mais calma. O caso, porém, era realmente sério. Eles tinham trancado a casa, e os parentes da mulher estavam viajando. Não havia ninguém a quem mandasse uma carta ou com quem comunicar-se. A possibilidade de voltar a encontrar a mulher neste mundo parecia das mais remotas.
Nem creio que ele aguardasse tal encontro, se é que havia de dar-se jamais, com expectativa muito alegre, por mais que estivesse apaixonado e ansioso de reencontrá-la.
— Ela há de achar a coisa estranha — disse, meditativo, enquanto, mergulhado em reflexões, tirava as meias. — Na certa vai achá-la estranha.
No dia seguinte, uma quarta-feira, ele foi procurar um advogado e expôs-lhe o problema. O advogado realizou um inquérito em todas as pensões de Scarborough, graças ao qual ele foi restituído, como o protagonista dos Adefos no último ato, ao lar e à mulher.
Na primeira vez que, depois disso, nós nos encontramos, perguntei-lhe o que ela dissera.
— Oh, exatamente aquilo que eu esperava.
Mas nunca me disse o que tinha esperado.


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 6, p. 242)

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