CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

sexta-feira

A CONTAGEM DOS PÃES - Ben Al-Sayi

Dois homens que viajavam juntos sentaram-se à beira da estrada, para comer. Um tinha cinco pães, e o outro três. Quando colocaram diante de si a comida, passou por ali um homem e os cumprimentou. Eles o convidaram:
— Senta-te para comer conosco.
Ele se sentou e comeu com eles, consumindo-se durante a refeição os oito pães. O homem então se levantou e lhes deu oito moedas de prata, dizendo:
— Recebam este pagamento pela comida que me deram.
E continuou seu caminho.
Os dois companheiros discutiram sobre o modo de dividir entre si as moedas. O dono dos cinco pães dizia:
— Para mim são cinco moedas, e para ti três, pois isto corresponde ao número de pães que cada um de nós tinha.
— Só me conformarei com a divisão das moedas em partes iguais, pois ele recompensou a nossa hospitalidade, que tem o mesmo valor.
Não conseguiram chegar a um acordo. Por isso levaram sua pendência ao Emir Ali ben Ali-Talib, a quem expuseram o ocorrido. O Emir disse então ao dono dos três pães:
— Teu companheiro está sendo muito condescendente, oferecendo-te três moedas, pois o pão dele era mais abundante que o teu. É melhor conformar-te com as três moedas.
— Só me conformarei com o que me cabe por direito.
— Mas, de acordo com o direito, só te cabe uma moeda, e as outras sete ao teu companheiro.
— Ele me ofereceu três moedas e não me conformei, e agora me afirmas que o direito me confere uma só moeda! Explica-me por que só tenho direito a isso, e só então o aceitarei.
Ali-Talib então explicou:
— Eram três pessoas, e não é possível saber quem comeu mais e quem comeu menos. Portanto, temos de supor que todos comeram quantidades iguais. Os pães comidos eram oito, que perfazem vinte e quatro terços. Cada um, portanto, comeu oito terços. Os teus três pães representavam nove terços, e deles comeste oito. O teu companheiro comeu oito terços e tinha quinze. Portanto, dos oito terços que o convidado comeu, sete eram do teu amigo, e apenas um era teu. Daí resulta que te cabe apenas uma moeda, e as outras sete ao teu amigo.
— Agora eu concordo. Nada como o que é justo!


(Ben Al-Sayi, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)

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quinta-feira

A CARREIRA DO SR. COLLERET - G. Lenôtre

Seria Soissons, Montdidier, Saint-Quentin ou talvez Laon — quem sabe? — a cidade onde, no dia 25 de dezembro de 1808, o Imperador Napoleão, no apogeu do poder e da glória, foi de Compiègne presidir à inauguração de um novo quartel. Esse pormenor não tem importância, nem vale a pena verificá-lo. Aliás, é costume, quando se transforma em conto uma história verdadeira, mudar cautelosamente os nomes do lugar e as datas, a fim de tornar os heróis irreconhecíveis; e nós não queremos faltar a essa tradição.
O que é de indiscutível autenticidade é que, na véspera desse dia, a cidade feliz que se preparava para receber o “senhor do mundo” vivia na agitação e na febre que precedem os grandes acontecimentos. À entrada da cidade erguia-se um arco de triunfo, de lona pintada, rematado por uma grande águia dourada de bico recurvo, obra do decorador do teatro municipal. Outro arco, todo de baionetas, coronhas de espingarda e pistolas, fora preparado pelos militares da guarnição no pátio do novo quartel. Entre essas duas portas triunfais, ao longo de todo o percurso que Sua Majestade havia de fazer a pé, estavam dispostos troféus e bandeiras, grinaldas de hera e de carvalho, salpicadas de vistosas flores de papel de cor e presas a mastros encimados por lampiões.
No dia 24, véspera do grande dia, já todas as autoridades da região tinham chegado à cidade. As estalagens estavam repletas, não havia família grada da terra que não hospedasse em sua casa algum visitante de categoria. Uma proclamação do prefeito convocara toda a legião dos funcionários. Do mais elevado ao mais obscuro, todos deviam comparecer à chegada do imperador e formar cortejo atrás dele, desde a entrada da cidade até ao novo quartel. E era por isso que o Sr. Colleret, naquela véspera de Natal, à noite, estava muito ocupado em escovar a sua melhor sobrecasaca e limpar mais uma vez os sapatos menos desgastados que tinha.
O Sr. Colleret era um rapaz de vinte e quatro anos, escriturário de classe inferior na repartição das finanças; recebia de ordenado oitocentos francos, parte dos quais lhe era descontada por uma caixa de aposentadoria, muito solícita do seu bem-estar futuro... Não tinha proteções nem esperança de promoção, embora fosse um empregado modelo, pontual, exato e escrupuloso. Não possuía nenhum protetor influente, e portanto era pouco distinguido pelos chefes.
Nos seus sonhos mais ambiciosos, sua mais alta perspectiva era terminar seus dias administrativos, ao fim de trinta anos de trabalho, como diretor de finanças, com 1800 francos de vencimento.
Por isso o Sr. Colleret não estava lá muito alegre ao limpar nessa noite, sozinho no seu miserável quarto alugado, os pobres sapatos de verniz. Pensava noutras noites já distantes, em que também limpava os sapatos como agora. Mas então era para ir pô-los na chaminé, na certeza de que o Menino Jesus passaria por ali durante a noite, para lhe deixar coisas bonitas. Quem viria naquele Natal fazer-lhe surpresa assim? Que divindade benfazeja se lembraria dele? No entanto, ao deitar-se, por uma espécie de superstição, embora soubesse muito bem que nada tinha a esperar, deixou os sapatos um pouco mais longe da cama e um pouco mais perto da chaminé do que habitualmente. Na manhã seguinte, ao acordar, foi encontrá-los vazios como os deixara na véspera, e quase teve uma decepção. Vestiu-se, entristecido.
Lá fora os tambores rufavam. Ouviam-se ao longe as bandas militares que percorriam a cidade, e da rua subia o rumor da multidão de camponeses, que iam chegando sem cessar das aldeias vizinhas e circulavam de boca aberta, para ver as bandeiras e as ornamentações.
A concentração dos funcionários estava marcada para as dez horas. O Sr. Colleret, como era seu hábito, foi pontual. Na praça, diante do arco de triunfo, as autoridades formavam já um grande semicírculo. O grupo importante compreendia, além do prefeito, do presidente da Câmara e do chefe da Polícia, o presidente do tribunal da comarca, os conselheiros, o procurador-geral, toda a magistratura envergando a toga. Havia generais, professores universitários, dois bispos; depois, formando as alas desse corpo central, os inspetores dos serviços florestais, os chefes das repartições, os juízes de paz, os párocos; e os cargos diminuíam de importância à medida que se afastavam do grupo central. Nas extremidades do semicírculo ficavam os empregados da alfândega, os comandantes dos bombeiros, os fiscais e apontadores de obras públicas, e por fim, fechando o brilhante conjunto, a multidão humilde dos escriturários.
O Sr. Colleret, o mais ínfimo deles, ocupava a extremidade da fila. Não era homem para se salientar, e deixou-se ficar modestamente no lugar que lhe competia. Como esse lugar era o último de todos, estava encostado a um dos pilares do arco triunfal e via à sua frente as pessoas graúdas do importante grupo central, onde não conhecia ninguém, congratularem-se uns com os outros pela festa, trocarem apertos de mão e cumprimentos, tudo num esplendor de uniformes de gala, de togas vermelhas e de casacas bordadas.
O dia estava encoberto e pesado, o céu de chumbo prometia temporal. De repente, ouviu-se ao longe troar o canhão; houve um remoinho entre os altos funcionários, e todos ocuparam os seus lugares hierárquicos; breves ordens de comando e ruídos de armas correram ao longo das fileiras da tropa; passaram a galope alguns oficiais de sabre nu, e quase logo a seguir, com um ruído de trovão, apareceram a trote largo, aprumados na sela, de pistolas em punho, os cavaleiros da escolta. Atrás deles cavalgava sozinho um mameluco, de turbante e alfanje na mão, depois os batedores com a libré imperial, e por fim a berlinda do imperador, tirada a três parelhas montadas por sotas de casaca verde. A carruagem parou bem por debaixo do arco, entre gritos de “viva o imperador!”, rufar de tambores, palmas e fanfarras. Um estribeiro correu para a portinhola, desdobrou o estribo e Napoleão surgiu, de cara franzida sob o pequeno chapéu lendário, trazendo por cima do uniforme um capote verde com rebuço de pele.
Sabendo de antemão que ninguém repararia nele, o humilde amanuense esticava o pescoço para não perder o espetáculo. Estava a dois passos do imperador, e pôde vê-lo descer penosamente da carruagem e pôr pé em terra, a resmungar. Colleret quase poderia jurar que ouvira sair da boca imperial uma formidável praga, engrolada a meia voz. E ali ficou, pasmado de ver tão de perto o grande homem, quando de repente se sentiu bruscamente agarrado pelo braço, e quase cambaleou. Custou um tanto a retomar o aprumo, e quando voltou a si da surpresa, viu que era o imperador em pessoa quem lhe dava a honra insigne de utilizar a sua insignificante pessoa como ponto de apoio.
Primeiro, julgou que ia desmaiar, tão grande foi a sua emoção ao sentir no braço a mão do conquistador; tinha a cabeça em fogo e os ouvidos zumbiam; o coração galopava no peito, e mal conseguiu ouvir as últimas palavras do discurso que o prefeito, agora mais próximo, pronunciava em voz soluçante de emoção.
O imperador, esse, não ouviu nem uma frase. Conservava-se imóvel, sempre encostado ao braço do amanuense, e olhando obstinadamente para a biqueira das botas. Com expressão furiosa, de cabeça baixa, não prestou atenção às arengas que, à queima-roupa, lhe dispararam sucessivamente um dos prelados e o presidente do tribunal.
Por fim os discursos acabaram e formou-se o cortejo. Um chanceler, com profunda reverência, deu a entender a Sua Majestade que chegara o momento de fazer a entrada solene na cidade e se dirigir para o quartel. E viu-se então este espetáculo extraordinário: o imperador, sem largar o braço do seu trêmulo companheiro, pôs-se a caminho, cada vez mais apreensivo; sem ouvir nenhuma das obsequiosas explicações que o prefeito prodigamente lhe dava, caminhava falando sem cessar com o Sr. Colleret, que inclinava a sua alta estatura para melhor recolher as palavras saídas da boca do semi-deus.
Pouco a pouco, a discrição, o respeito e o espanto impuseram silêncio e reserva a toda a gente. O cortejo retardou o passo, para não perturbar a conversação do imperador com o jovem escriturário; este, por seu lado, ia recuperando progressivamente o sangue-frio, e respondia em frases breves às confidências de Sua Majestade. E foi assim que se passou toda a cerimônia. Chegado ao novo quartel, Napoleão, sempre pelo braço de Colleret, subiu as escadas, percorreu salas, palmilhou corredores, desceu às caves, atravessou paradas, sem deixar de conversar com o seu acólito, sem lançar o mínimo olhar às instalações que assim inaugurava de tão estranha forma, e seguido a distância respeitosa pelo rebanho dos altos funcionários, mudos de surpresa e palpitantes de curiosidade.
Por fim, a visita acabou. O imperador voltou para a berlinda e despediu-se do modesto empregado, sem mais rodeios do que usara para o abordar. Instalou-se na carruagem, acenou com a mão às autoridades quase prosternadas e, enquanto novamente os tambores rufavam e o canhão troava, afastou-se, ao galope dos seus seis cavalos, pela estrada de Compiègne.
Na praça, assim que a carruagem imperial desapareceu, formou-se em volta de Colleret um grupo compacto. Faziam-lhe perguntas, empurravam-se para o ver melhor, procuravam descobrir o motivo do favor especial que ele acabava de merecer. Colleret permanecia impenetrável, com ar pensativo, sem dúvida mal refeito da estupefação. O prefeito, num tom cheio de unção e doçura, sussurrou-lhe ao ouvido um convite para o banquete dessa noite. O general comandante da divisão apertou-lhe calorosamente as mãos. O presidente do tribunal pediu-lhe que fosse na semana seguinte caçar nas suas terras. Colleret não sabia para que lado se havia de voltar. Cumprimentava, sorria, apertava as mãos que lhe estendiam.
Mas, a esta pergunta cem vezes repetida — “que lhe disse o Imperador?” — obstinava-se em responder, com ar de modesta discrição:
— Oh! Coisas muito pessoais...
Nessa noite, na prefeitura, trataram-no nas palmas das mãos. A mulher do prefeito abriu o baile pelo seu braço. Era bonita, parisiense e coquette, e julgou que venceria facilmente a reserva do pequeno amanuense, mas nada conseguiu saber. No dia seguinte, ao chegar à repartição, o Sr. Colleret foi chamado ao gabinete do chefe, funcionário habitualmente muito rebarbativo, e que nesse dia foi encantador, esforçando-se por arrancar ao funcionário, com mil gentilezas e palavrinhas doces, o segredo da misteriosa conversa da véspera. O subordinado foi impenetrável, o que não o impediu — antes, pelo contrário — de se tornar em poucos dias o ídolo do mundo oficial. Os convites choveram: bailes, caçadas, jantares. Não o dispensavam em nenhuma festa. As senhoras mais inacessíveis davam-lhe atenção.
Pela abundância dos convites, acabou relaxando as funções no emprego, e por isso foi promovido: em dois anos, passou de simples amanuense a inspetor. Todos porfiavam em lhe adivinhar os mínimos desejos. Não precisava requerer, nada tinha a solicitar, bastava viver... Foi proposto para ser condecorado, e o prefeito deslocou-se de propósito a Paris, para lhe apressar a promoção. Em 1814, Colleret era sub-diretor.
Mas, ai! Com a queda do Império as coisas mudaram de figura. O diretor de Colleret, que de repente passara da extrema afabilidade à extrema rispidez, desembaraçou-se dele, mandando-o para um posto afastado e difícil. Tendo reclamado contra esta decisão, colocaram-no em disponibilidade. Conseguiu no entanto ser readmitido na administração pública, mas numa categoria inferior à que antes ocupava.
Durante trinta e seis anos não recebeu um centavo de aumento. Desempenhou as funções mais desagradáveis, nas terras mais detestadas. Mandaram-no como fiscal de impostos para Orchies; dali, sem promoção, para Saint-Jean-pied-de-Port; depois, ainda como fiscal, desterraram-no para Binic, donde foi despachado para Embrun, ainda e sempre como fiscal. Impassível, o Sr. Colleret não esboçava a menor queixa. Com intervalos de dois ou três anos ia a Paris, fazia no ministério as diligências indispensáveis, e voltava com um sorriso irônico nos lábios, mas sem jamais obter qualquer melhoria de situação.
Esperava-o, entretanto, a mais retumbante desforra.
Veio a Revolução de 1848, logo seguida da eleição do príncipe Luís Napoleão para a presidência. Colleret era nessa altura fiscal em Port-de-Bouc. Por telegrama, foi nomeado inspetor em Versalhes, e de repente a sua carreira oficial, interrompida desde 1814, recomeça brilhante, inesperada, extravagante: em 1852 é diretor em Nantes; dois anos depois, nomeado conselheiro de Estado, recebe a roseta das mãos de Napoleão III; e morreu aos oitenta e oito anos, como membro do Conselho Privado, senador e grã-cruz da Legião de Honra.
Alguns meses antes da sua morte, um dos sobrinhos do Sr. Colleret foi encontrá-lo um dia na sua poltrona, pensativo como de costume, e tendo ao canto dos lábios esse sorriso irônico que nunca perdia. Tinha o ar de satisfação de um homem que foi espectador da sua própria vida e assistiu à mais desopilante das comédias. Nesse dia estava em maré de confidência, e como evocasse o início da sua carreira e o incidente estranho que lhe alterara a sorte, perguntou ao sobrinho:
— Queres saber o que me disse o imperador?
O rapaz era todo ouvidos, como se pode calcular. O Sr. Colleret continuou:
— Só há uma coisa indispensável para viver bem neste mundo: conhecer os homens. E se hoje te revelo o meu segredo, é na esperança de que esta revelação possa vir a ser-te útil. As coisas passaram-se assim. Logo que me agarrou no braço, Napoleão resmungou, falando menos para mim do que para desabafar: “Ah! maldito calo! Não consigo percorrer essas casernas, se não for agarrado a ti!”
Tinha dado o braço a mim, estás percebendo, como poderia tê-lo dado a outro qualquer. Coincidiu que fosse eu, porque a insignificância da minha pessoa me valera o último lugar na fila dos funcionários, por isso mesmo ao lado da porta da carruagem quando o imperador desceu. Ele tinha uma dor horrível no pé, mas não queria coxear. Pendurava-se literalmente em mim, e nunca ouvi pragas como as que soltava cada vez que punha o pé dolorido no chão. Fixei palavra por palavra algumas das frases que me disse, e transmito-as a ti religiosamente:
— Ah! — rosnava entre dentes — fizeram-me as botas apertadas! E duras, também!... Já não há cabedal capaz, nessa terra. Vocês aqui têm boas peles? Nunca teve calos? Quando eu era alferes, tive umas botas estupendas. Era vitela muito maleável, fornecida pelo correeiro da Escola Militar. Com aquelas, nem uma calosidade, nem nada! Fui de Valence a Port-Saint-Esprit com essas botas, sem uma única bolha! Aquilo é que era vitela excelente... Excelente!
Tudo isto, como deves calcular, entremeado de pragas, de queixas, de recriminações contra Daquin, o seu sapateiro — até guardei o nome. — Explosões de cólera contra os funcionários que não tiravam os olhos de nós, contra os discursos e os cumprimentos, e sobretudo contra o novo quartel, que ele mandava a todos os diabos... Posso garantir que não me disse outra coisa; separou-se de mim sem um agradecimento, nunca chegou a saber o meu nome, e nunca mais o tornei a ver.
O resto foi muito simples: não tive mais nada a fazer, senão calar-me. Nessa mesma noite, o meu futuro ficou assegurado. Todos imaginavam fazer a corte ao imperador, só por cobrirem de atenções e favores “o protegido de Napoleão”. As notas de louvor acumularam-se no meu processo... Mas o governo da Restauração foi desencantá-las, e exagerou-as em sentido inverso. Todos os anos se acrescentavam à minha folha de serviços novos comentários deste gênero: “Bonapartista incorrigível; era íntimo do usurpador; recebeu as confidências do Ogre da Córsega”, etc. De modo que, quando o Império voltou, após trinta e seis anos de interregno, eu estava naturalmente designado para figurar entre os mais favorecidos, é claro, pois um homem que teve a sua carreira cortada, só por dedicação à causa imperial...
E o velho acrescentava, sorrindo mais uma vez:
— Sabes? Quem já é muito velho volta a menino... E agora, que já tive tempo de refletir maduramente no que me aconteceu, tenho a certeza — ouça bem! — a certeza absoluta de que foi o Menino Jesus que arranjou tudo. Lembro-me perfeitamente... Na véspera desse dia de Natal que havia de decidir tão inesperadamente da minha sorte, depois de ter limpo os sapatos, tive a idéia de os pôr na chaminé, como fazia em pequeno. Foi um resto de fé, de superstição infantil. Devo dizer que o fiz sem confiança, em parte para troçar de mim próprio, para escarnecer tolamente da minha miséria e da minha solidão; e no dia seguinte, ao acordar, julguei que os sapatos estavam vazios, que o Menino Jesus não tinha vindo trazer-me nenhum presente. Enganava-me. Tinha-me posto tudo aquilo ali, mas eu é que não via...
E o Sr. Colleret, enquanto dizia isso, apontava para o grande cordão vermelho e para a casaca bordada de senador, que um criado preparava para a recepção dessa noite no Paço. Por instantes pareceu comovido, mas depressa retomou a costumada expressão irônica:
— E tudo por ter, durante uma hora, servido de bengala a Napoleão. Como já não tenho o que temer, agora posso dizer sem perigo: fui sempre um realista ferrenho...


(G. Lenôtre, “Lendas de Natal” — Verbo, Lisboa, 1966)

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quarta-feira

A CAMISA DE MARGARIDA - Ricardo Palma

É provável que alguns dos meus leitores tenham ouvido dizer às velhas de Lima, quando querem aludir ao elevado preço de um artigo: “0 quê! É mais caro do que a camisa de Margarida Pareja”.
Ainda estaria curioso de saber quem foi essa Margarida, cuja camisa anda na boca do povo, se não houvesse encontrado um artigo assinado por D. Ildefonso Antonio Barmejo (autor de notável obra sobre o Paraguai), o qual, embora muito à ligeira, fala da moça e da sua camisa, o que me encaminhou a desenredar a trama, conseguindo tirar a limpo a história que ides ler.

Era Margarida Pareja (pelas alturas de 1765) a filha mais mimada de D. Raimundo Pareja, cavaleiro de Santiago e coletor-geral de Calhau.
A moça era uma dessas limenhazinhas que, pela sua beleza, cativam o próprio diabo e o fazem persignar-se e atirar pedras. Brilhava-lhe um par de olhos negros, que eram como dois torpedos carregados de dinamite, e que explodiam no íntimo da alma dos galãs limenhos.
Chegou da Espanha, por aquela época, um arrogante mancebo, filho da coroada vila do urso e do medronho,1 chamado D. Luís Alcázar. Tinha este em Lima um tio solteirão e apatacado, aragonês rançoso e com fumaças de fidalgo, mais cheio de orgulho que os filhos do Rei Fruela.
Enquanto lhe chegava a ocasião de herdar do tio, vivia o nosso Luís tão pelado como um rato de igreja e comendo o pão que o diabo amassou. Basta dizer que até as suas compras miúdas eram a crédito, e para pagar quando melhorasse de sorte.
Na procissão de Santa Rosa, conheceu Alcázar à linda Margarida. A rapariga encheu-lhe os olhos e flechou-lhe o coração. Fez-lhe a corte, e, embora ela não lhe dissesse nem sim, nem não, deu a entender, com sorrisinhos e outras armas do arsenal feminino, que o galã era prato muito de seu gosto. A verdade — como se eu estivesse falando ao confessor — é que eles se enamoraram até à raiz dos cabelos.
Como os namorados esquecem que existe a aritmética, acreditou D. Luís que sua pobreza atual não seria obstáculo aos seus namoros. Foi ter com o pai de Margarida, e, sem muitos rodeios, pediu-lhe a mão da filha.
A D. Raimundo não agradou o pedido, e delicadamente despediu o suplicante, dizendo-lhe ser Margarida muito nova para tomar estado, pois, apesar dos seus dezoito janeiros, ainda brincava com bonecas.
Não era esse, porém, o verdadeiro xis do problema. A recusa provinha de que D. Raimundo não queria ser sogro de um pobretão; e assim o disse em confiança a amigos seus, um dos quais foi mexericar junto a D. Honorato, que assim se chamava o tio aragonês. Este, que era mais altivo que o Cid,2 encheu-se de cólera e bradou:
— Desaforo! Desconsiderar meu sobrinho! Muitos levantariam as mãos ao Céu por se aparentarem com o rapaz, que não há mais galhardo que ele em toda Lima. Ora, dá-se tamanha insolência! Mas há de se ver comigo esse coletorzinho de má morte!
Margarida, que se antecipava ao seu século, pois era nervosa como uma senhorita de hoje, choramingou, arrancou os cabelos e teve chilique; e se não ameaçou envenenar-se, foi porque ainda não se haviam inventado os fósforos.
Perdia cores e carnes, enlanguescia a olhos vistos, falava em tornar-se monja e fazia tolices a torto e a direito.
— Ou de Luís ou de Deus! — gritava ela, cada vez que se lhe amotinavam os nervos, o que sucedia a toda hora.
Alarmou-se o cavaleiro santiaguês, fez vir médicos e curandeiras, e todos declararam que a menina estava às portas da tísica, e que a única meizinha salvadora não se vendia na botica.
— Ou casá-la com o varão do seu agrado ou metê-la no caixão com palmas e coroa — tal foi o ultimato médico.
D. Raimundo (pai, afinal de contas!), esquecendo-se de tomar a capa e a bengala, dirigiu-se, que nem um doido, à casa de D. Honorato, e disse-lhe:
— Venho pedir o seu consentimento para que amanhã mesmo se case seu sobrinho com Margarida, senão a menina se acaba num abrir e fechar de olhos.
— Não pode ser — respondeu o tio desabridamente. — Meu sobrinho é um pobretão, e o que Vossa Mercê deve procurar para sua filha é um homem que tenha dinheiro a dar com um pau.
Borrascoso foi o diálogo. Quanto mais rogava D. Raimundo, tanto mais o aragonês ia às nuvens; e já estava aquele a retirar-se, desenganado, quando D. Luís, atravessando-se na contenda, disse:
— Mas, tio, não é próprio de cristão matar a quem não tem culpa.
— Tu te dás por satisfeito?
— De todo o coração, tio e senhor.
— Pois bem, mancebo, consinto em atender-te; mas com uma condição. E é a seguinte: D. Raimundo me há de jurar perante a Hóstia consagrada que não oferecerá um oitavo à sua filha nem lhe deixará um real como herança.
E assim principiou nova e mais acesa disputa.
— Mas, homem de Deus — ponderou D. Raimundo —, minha filha tem vinte mil duros de dote.
— Renunciemos ao dote. A menina virá para casa de seu marido unicamente com a roupa do corpo.
— Permita-me então oferecer-lhe os móveis e o enxoval de noiva.
— Nem um alfinete. Se não se conforma, deixa-o, e que morra a menina.
— Seja razoável, D. Honorato. Minha filha necessita levar ao menos uma camisa, para mudar aquela com que vai vestida.
— Bem, vá lá, para que não me acuse de obstinado. Consinto em que lhe dê de presente a camisa de noiva, e ponto final.
No dia seguinte, D. Raimundo e D. Honorato se dirigiram, de manhãzinha, à igreja de São Francisco, ajoelhando-se para ouvir missa. Conforme o ajuste, no momento em que o sacerdote elevava a Hóstia divina, disse o pai de Margarida:
— Juro não dar à minha filha mais do que a camisa de noivado. Assim me castigue Deus se quebrar a jura.

E D. Raimundo Pareja cumpriu ad pedem litterae3 o seu juramento; porque nem com vida nem por morte deu depois à sua filha coisa que valesse um maravedi.
As rendas de Flandres que adornavam a camisa da noiva custaram dois mil e setecentos duros, segundo afirma Barmejo, que, parece, colheu este dado nos Relatos Secretos de Ulloa e D. Jorge Juan. O cordãozinho que a ajustava ao pescoço era uma cadeiazinha de brilhantes, avaliada em trinta mil pesos.
Os recém-casados fizeram crer ao tio aragonês que a camisa valeria, quando muito, uma onça, porque D. Honorato era tão cabeçudo que, se soubesse a verdade, forçaria o sobrinho a divorciar-se.
Convenhamos que é muito merecida a fama que alcançou a camisa nupcial de Margarida Pareja.


NOTAS:

1 - Alusão às figuras que se vêem no brasão de Madri.
2 - Cid: Rodrigo Díaz de Bivar (1043-1099), famoso capitão espanhol, que se distinguiu em combater os mouros; é o protagonista de grande número de obras literárias.
3 - Ao pé-da-letra.

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai — Mar de histórias — Nova Fronteira, vol.5, p. 23)

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segunda-feira

A CADEIRA EMPRESTADA E DEVOLVIDA - Jakes de Basin

O conde Henrique tinha por senescal um homem duro, avaro e cruel. Sempre que o conde fazia alguma obra de caridade, ele se condoía muito pela perda do patrão. Não porque zelasse desinteressadamente pelos bens do conde, mas, pelo contrário, porque roubava constantemente da mesa vinho, caças e outros alimentos, que depois devorava às escondidas. E não queria que outros compartilhassem com ele os bens do conde.
Isso ocasionava algumas vezes, sobretudo quando havia visitas, cenas hilariantes com as quais se divertia o conde. Mas outros que viam isso não achavam graça, e desejavam que o senescal fosse de alguma forma punido por sua avareza.
Um dia o conde anunciou que ia dar uma festa, para a qual estavam convidados todos os seus vassalos, altos e baixos, ricos e pobres. Festa suntuosa. As portas do castelo estavam abertas de par em par, e por todo lado havia mesas cheias dos manjares mais diversos. Compareceram cavaleiros, damas, donzelas, escudeiros, jovens, jograis e menestréis. O avarento senescal pensava com seus botões: “Toda essa gentalha parece não ter comido durante todo o ano! Como comem! Vão acabar deixando a despensa vazia!”. Mas, como precisava agradar ao patrão, dissimulava a raiva e dizia aos convidados, com sorriso hipócrita:
— Servi-vos bem, senhores! Comei e bebei à vontade!
Todos se haviam assentado e a festa começado, quando chegou um pobre lavrador, que comparecia depois de terminada sua faina diária. Vendo-o, o senescal se enfureceu e descarregou sobre ele toda a raiva que havia acumulado, gritando com o pobre homem:
— O que está querendo aqui? O que é que perdeu nesta casa?
— Eu vim comer, pois fui convidado como todos os outros e estou com vontade de comer. Por favor, arranje-me um lugar para sentar-me, pois não estou vendo nenhuma cadeira vazia.
— Lugar para sentar? Aí tens um lugar para sentar — disse o senescal, enquanto dava um chute no traseiro do camponês.
Logo depois o senescal se arrependeu, por medo de que o fato chegasse ao conhecimento do conde, e resolveu apaziguar o lavrador, pedindo-lhe perdão e arranjando-lhe um lugar. Sorrindo, o lavrador demonstrou que não guardava rancor, mas de fato esperava a ocasião adequada para vingar-se. Comeu e bebeu à vontade, e depois passou com os outros para o salão.
O conde acabara de fazer entrar os jograis e menestréis, para divertir os convidados. Para incentivá-los a cantar bem e demonstrar suas habilidades, prometeu uma luxuosa roupa escarlate àquele que conseguisse maiores aplausos ou risos com o que cantasse ou fizesse. O prêmio era valioso, e então os jograis cantaram as mais belas canções, outros fizeram passes, outros imitaram os bêbados e loucos, alguns imitaram brigas de mulheres, cada um se esforçando por fazer o que julgava mais engenhoso. O lavrador olhava e se divertia como todos os outros, no salão repleto.
Quando tudo terminou, o lavrador se aproximou por trás do senescal, que estava de pé ao lado do conde, e lhe deu um tremendo ponta-pé no traseiro, que o fez estatelar-se de bruços no chão. E disse em voz bem alta:
— Aí está a cadeira que me emprestaste. Como estás vendo, entre gente honrada nada se perde.
A queda do senescal provocou grande sensação. Os criados acorreram, uns para socorrer o senescal, outros para deter o lavrador. Depois o conde o interrogou:
— Por que fizeste isso com o senescal?
— Senhor, disseram-me que eu poderia vir aqui hoje para a festa, e eu, muito agradecido em relação a vós, compareci, embora um pouco tarde, pois outros haviam chegado antes e tomado todos os assentos. Pedi então ao vosso senescal que me conseguisse um local onde pudesse sentar-me, e ele me deu um ponta-pé, dizendo que estava me emprestando uma cadeira. Como eu já comi e bebi, não tenho mais necessidade da cadeira, e estou devolvendo-a, com um certo acréscimo por conta dos juros. Asseguro-vos, senhor, que não tenho comigo nada mais que seja vosso, pois sou pobre mas tenho a consciência limpa. Mas se o senescal julgar que o valor do aluguel foi insuficiente, estou disposto a completá-lo.
Quando ouviram tal explicação, o conde e os convidados deram gostosas gargalhadas. Enquanto isso o senescal se levantara e massageava a parte dolorida, o que aumentou ainda mais as gargalhadas. Riram tanto, que afinal o conde acabou dando a roupa escarlate como prêmio ao lavrador, e todos os jograis e menestréis concordaram que era merecido.


(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)

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A CAÇADA DO MALHADEIRO - Conde de Ficalho

Tínhamos ido — o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro1 do Valfundo e eu — em busca de um porco-do-mato, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma mancha2 pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.
O malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não estava; mas aí os cães pegaram com força no rasto, e embaixo do vale achamos-lhe as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, de vale em vale, até que, quando nos decidimos a voltar — sem ter visto um pêlo do porco — estávamos a duas léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em dezembro, já ao cair da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo ao lado do sul, anunciavam uma noite de água.
— Nós, com um tempo desses, não deitamos nas Pedras Alvas senão alta noite — disse o mestre Domingos.
— Não deitamos, é certo! Maus raios partam o porco! — acrescentou o malhadeiro, para se consolar.
— Mas que há a fazer?
— Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O tio João sempre há de ter alguma coisa que se coma, e um lume pra gente se enxugar.
— Pois vamos lá.
As nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais, sobre o verde-negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato,3 e o mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães, tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz tênue da tarde, algumas poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta da asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as espingardas estavam carregadas de bala, bem acomodadas debaixo do braço, com as fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para atirar em galinholas.
— Maus raios partam o porco! — dizia de vez em quando o malhadeiro.
Era noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se desenharam diante de nós, no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães — estávamos na Crespa. O tio João veio à porta, conheceu a voz do outro malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa, com a nora e os netos pequenos; o filho andava trabalhando longe dali, e não voltara.
Improvisou-se rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre. E quando acabamos de cear e nos chegamos para o lume, acendendo os cigarros, penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono da chuva, e as lufadas do sul assobiando na telha-vã da malhada.
Naturalmente falou-se de caça — o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros caçadores da serra.
— Oh! tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? — disse o ferreiro, depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.
— Fiz... fiz... — disse o velho, como quem meditava.
— Você devia nos contar esse caso esta noite.
— Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.
— Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar bem a preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.
— Pois conto — respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro em uma brasa.
Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara enérgica, sulcada de rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Valfundo estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda fumavam. A chama, levantando e abaixando, projetava-lhes as sombras, desmesuradamente grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico.

— Isto por aqui, no tempo dos franceses, esteve mau... muito mau! — começou o malhadeiro. Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi; mas depois, quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai quis aqui ficar. “Pra onde há de a gente ir? — dizia ele. — E depois, isto é cá desviado, não vêm cá”.
Eu, ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezassete. Estava aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive, era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os seus vinte ou vinte e um.
Passou tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava falquejando umas aivecas aqui na empena, a Inês, que tinha ido à fonte... — a fontinha lá abaixo na umbria, sabes, Joaquim? — a Inês veio fugindo ladeira acima, e chegou aí esfalfada, dizendo: “Aí vêm... aí vêm!”
E vinham. Tinham se desviado da estrada, perderam-se e vieram a corta-mato, diretos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um — estou-o vendo — alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído nos cantos da boca, trazia um lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça.
Meu pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo: “Esconda as espingardas”.
Fui àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-as, passei à porta de trás, e fui metê-las na palha da arramada. Quando voltei, já os franceses estavam dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão vino... vino..., e faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...
O velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa que não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história adquiria uma intensidade de vida, uma atualidade singular.
— Os franceses — prosseguiu o tio João — comeram, beberam, estavam já alegres, rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.
Eu vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; quatro ou cinco deles agarraram-se a meu pai, e depois de uma luta o deitaram no chão. Eu tinha levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por outros dois. O loiro ria-se com um riso mau, mas dizia — quis-me a mim parecer — que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim, ataram-me com um baraço e com a minha cinta.
As moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...
À mesa ficaram dois franceses, bebendo.
Eu ouvia minhas irmãs chorar lá dentro, chamando-nos, que lhes acudíssemos; e via o pai deitado no chão, com a camisa rasgada e as mãos atadas atrás das costas. Na luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas; e, dos olhos muito fitos, vi correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue.
Não posso dizer o tempo que isto durou; mas pareceu-me muito.
Quando os franceses saíram, rindo e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam para o pai; a mim, pegaram-me, e assim mesmo atado como estava, levaram-me à porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou, mas em lugar de lhes mostrar o atalho que vai direito à estrada, mostrei-lhes a que desce para a ribeira. Essa era a mais seguida das duas. Eles não desconfiaram, deitaram as espingardas ao ombro e desceram vale abaixo.
A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava. Quando a Mariana me desatou, disse-me só: “As espingardas”.
Fui à arramada buscá-las, e quando vim, já o pai tinha o polvorinho a tiracolo; apontou para o outro polvorinho, que eu enfiei; tirando da arca o saco das balas, esteve-as dividindo; deu-me um punhado delas e meteu as outras na algibeira. Saímos, sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga era — salvo seja — como uma criatura; quando estava numa porta, nem latia nem mexia um cabelo. À ponta dos farrejais, abaixou-se; desafivelou a coleira do chocalho da cadela e deitou-a fora.
Nós íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales mais ásperos. Lá embaixo, nos matões do barranco do Alendroal, é que os apanhamos. Vimo-los de longe, numa volta da trilha. Meu pai não falava, fez-me sinal que fosse à meia encosta da umbria, que ele ia pela soalheira; e quando nos apartamos, numa voz ainda trêmula, disse-me só estas palavras: “Não atires, sem eu atirar”.
Eu meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas. Era uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo. Fui... fui, até que cheguei bem à distância de um tiro. Já nesse tempo atirava bem. Desde pequeno eu andava com meu pai. E você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?
— Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala! — afirmou o ferreiro.
— E era! — continuou o velho. — Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra encosta. Os franceses iam embaixo, no vale, todos numa linha, porque a trilha era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e caiu de bruços. Os outros pararam; eu apontei bem um, dei no dedo, e ele caiu redondo. Ao segundo tiro, viraram-se para o meu lado; então o pai, para me livrar, apareceu-lhes no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta, direito a ele, mas era uma moita de mato muito forte; não puderam romper, e, deixando os dois mortos, abalaram a correr pelo vale.
O pai chamou-me, e fomos juntos sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos, de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do Sovereiral.
Quando os topamos, foi já no barranco do Algeriz, ali no açude do Moinho Velho. Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do barranco — mesmo onde tu mataste a porca grande, Joaquim, na semana passada.
Era quase à queima-roupa: caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que restavam ficaram direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na direção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima da minha cabeça. Nós separamo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos carregando. Quando atiramos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro, perdemo-los.
Fomos para um cabeço e ficamos ali toda a noite. Eu estava cansado, era uma criança, e ali me deitei. Mas o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava, com o frio e com a fome, via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.
Logo ao romper da manhã, abalamos. Os três franceses tinham tido toda a noite para fugir; mas aqui na serra, quem não é prático, jamais avança caminho de noite. Pode um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim deram-nos trabalho; atalaiamos pelos cerros; rastejamos os vales e as passagens dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado; até a cadela, Deus me perdoe, já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando os vimos lá muito embaixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.
Quando voltamos para a malhada, já os abutres andavam no ar às voltas, às voltas, por cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.
Meu pai, ao entrar em casa, não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.

O lume ia-se apagando, sem que — presos à narração — nos lembrássemos de o atiçar; e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas, iluminava vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado sobre os joelhos o pequenito adormecido.


NOTAS:

1 - Malhadeiro: indivíduo que trata de colméias; colmeeiro.
2 - Mancha: cama do javali, ou porco-do-mato
3 - A corta-mato: a direito, por atalho; pelo caminho mais curto.


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira — Mar de histórias — Nova Fronteira, vol. 5, p. 217)

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sábado

A CABRA DO SENHOR SÉGUIN - Alphonse Daudet

Ao Sr. Pierre Gringoire, poeta lírico em Paris.


Tu serás sempre o mesmo, meu pobre Gringoire! Como! Oferecem-te um lugar de cronista em um bom jornal de Paris, e tu tens a petulância de recusar... Mas, olha-te, infortunado rapaz! Olha essa blusa esburacada, esses calções esfarrapados, essa face magra que apregoa a fome. Eis aí, portanto, aonde te conduziu a paixão das belas rimas! Eis o que te valeram dez anos de leais serviços nas páginas do senhor Apolo... Enfim, não tens vergonha?
Faze-te então cronista, imbecil! Faze-te cronista! Ganharás facilmente belos escudos, terás teu talher no Brébant e poderás exibir-te, nos dias de estréia, com uma pluma nova no barrete.
Não? Não queres? Pretendes permanecer livre à tua maneira, até o fim... Pois bem, escuta um pouco a história da cabra do Sr. Séguin. Verás o que se ganha em querer viver livre.
O Sr. Séguin nunca tivera sorte com suas cabras; elas arrebentavam a corda, fugiam para a montanha, e lá no alto o lobo as comia. Nem os carinhos do dono, nem o medo do lobo, nada as retinha. Eram, parece, cabras independentes, querendo a qualquer preço a amplidão e a liberdade. O estimável Sr. Séguin, que nada compreendia do caráter dos seus animais, estava consternado e dizia:
— É o fim. As cabras se aborrecem em minha casa. Não conservarei nenhuma delas.
Entretanto ele não se desencorajava, e depois de perder seis cabras do mesmo modo, comprou uma sétima; somente, desta vez, teve o cuidado de a prender enquanto muito nova, para que ela se habituasse melhor a permanecer em sua casa.
Ah! Gringoire, como era bonita a cabrinha do Sr. Séguin! Como era linda, com seus olhos doces, sua barbicha de sub-oficial, seus cascos negros e luzentes, seus cornos zebrados e seus longos pelos brancos, que a cobriam como uma sobrepeliz! Era quase tão encantadora quanto o cabritinho de Esmeralda — lembras-te, Gringoire? E, ademais, dócil, carinhosa, deixando-se ordenhar sem se agitar, sem meter os pés no balde. Um amor de cabrinha...
O Sr. Séguin tinha atrás de casa um curral cercado de plantas espinhentas. Foi lá que ele pôs a nova pensionista. Ligou-a com uma canga de madeira ao mais belo sítio do prado, tendo o cuidado de lhe deixar bastante corda. De vez em quando ia ver se ela se encontrava bem. A cabra se achava muito feliz, e pastava a erva de tão boa vontade, que o Sr. Séguin estava encantado.
— Enfim — pensava o pobre homem — eis aí uma que não se aborrecerá em minha casa!
O Sr. Séguin se enganava; a cabra aborreceu-se. Um dia ela disse para si mesma, contemplando a montanha:
— Como se deve estar bem lá em cima! Que prazer saltar entre a vegetação, sem esta maldita corda que esfola o pescoço da gente!... É bom para o burro ou para o boi, pastar num cercado!... As cabras necessitam de largueza.
A partir desse momento a erva do cercado lhe pareceu insípida. Sobreveio-lhe o tédio. Emagreceu. O leite diminuiu. Dava dó vê-la arrastar a corda o dia inteiro, a cabeça voltada para o lado da montanha, a venta aberta, fazendo “mé”... tristemente.
O Sr. Séguin notou logo que a cabra tinha qualquer coisa, mas não sabia o que era. Uma manhã, quando acabava de a ordenhar, a cabra voltou-se e lhe disse no seu patoá:
— Escute, Sr. Séguin, eu enlangueço em sua casa, deixe-me ir à montanha.
— Ah! Meu Deus!... Ela também! — gritou o sr. Séguin estupefato.
E com o susto deixou tombar o balde. Depois, sentando-se na relva ao lado de sua cabra:
— Como, Branquinha, queres deixar-me!
— Sim, Sr. Séguin.
— É pasto que te falta aqui?
— Oh! não, Sr. Séguin.
— Talvez estejas amarrada a distância curta demais. Queres que te alongue a corda?
— Não vale a pena, Sr. Séguin.
— Então, que é que te falta? Que queres?
— Quero ir para a montanha, Sr. Séguin.
— Mas, desgraçada, tu não sabes que há o lobo na montanha? Que farás quando ele vier?
— Dar-lhe-ei chifradas, Sr. Séguin.
— O lobo pouco se importa com teus chifres. Ele comeu cabritas muito mais chifrudas do que tu... Sabes da pobre velha Renaude, que estava aqui no ano passado, uma senhora cabra forte e malvada como um bode? Ela lutou com o lobo a noite inteira... depois, pela manhã, o lobo a comeu.
— Ai dela! Pobre Renaude!... Isso não importa, Sr. Séguin, deixe-me ir à montanha.
— Divina Providência!... — disse o Sr. Séguin. — Que acontece às minhas cabras? Outra mais que o lobo vai comer... Pois bem, não... Eu te salvarei, a teu pesar, velhaca! E, porque receio que rompas a corda, vou fechar-te no estábulo, e ali ficarás sempre.
Em seguida o Sr. Séguin levou a cabra para um estábulo todo escuro, cuja porta fechou com duas voltas da chave. Infelizmente, esquecera-se da janela; e, mal virou as costas, a pequena se foi...
Tu ris, Gringoire? Santo Deus! Acredito; tu és do partido das cabras, e estás contra o bom Sr. Séguin... Vamos ver se rirás todo o tempo.
Quando a cabra branca chegou à montanha, foi um encantamento geral. Jamais os velhos pinheiros tinham visto nada assim tão lindo. Receberam-na como a uma pequena rainha. Os castanheiros se curvavam até o chão, para acariciá-la com a ponta de seus ramos. As giestas douradas se abriam à sua passagem e a cheiravam quanto podiam. A montanha inteira fez-lhe festa.
Imagina, Gringoire, como nossa cabra era feliz! Nada de corda, nada de canga... nada que a impedisse de pular, de pastar à sua maneira... E quanta erva havia lá! Até lhe ultrapassava os chifres, meu caro!... E que erva! Saborosa, fina, recortada, feita de mil plantas... Era muito diferente do capim do cercado. E as flores, então!... Grandes campânulas azuis, digitalis de púrpura, com longos cálices, toda uma floresta de flores selvagens, transbordando sucos capitosos.
A cabra branca, meio farta, espojava-se lá dentro com as pernas para o ar e rolava ao longo das encostas, de cambulhada com as folhas caídas e as castanhas. Em seguida saltava repentinamente e endireitava-se sobre as patas. Upa! Ei-la que partia, cabeça para a frente, através de cerrados e capoeiras, ora sobre um pico, ora no fundo de uma ravina, no alto, embaixo, por toda parte. Dir-se-ia haver dez cabras do Sr. Séguin na montanha.
É que a Branquinha não tinha medo de nada.
Ela franqueava de um salto grandes torrentes, que lhe atiravam à passagem poeira úmida de espuma. Então, toda gotejante, ia estender-se em alguma rocha plana e se fazia secar ao sol. Uma vez, avançando à beira de um planalto, com uma flor de citisa entre os dentes, vislumbrou lá embaixo, bem lá embaixo, na planície, a casa do Sr. Séguin com o cercado atrás. Isso a fez rir até as lágrimas.
— Como é pequeno! — disse ela. — Como pude permanecer lá dentro?
Pobrezinha! Ao ver-se empoleirada tão alto, acreditava-se pelo menos tão grande quanto o mundo.
Em resumo, foi uma linda jornada para a cabra do Sr. Séguin. Pelo meio do dia, correndo à direita e à esquerda, ela caiu no meio de um bando de gamos que despedaçavam, para comer, uma vinha selvagem. Nossa pequena corredora, de roupa branca, causou sensação. Deram-lhe o melhor lugar na vinha, e todos esses senhores foram muito galantes... Parece mesmo — isto deve ficar entre nós, Gringoire — que um jovem gamo de pelagem negra teve a sorte de agradar a Branquinha. Os dois namorados se perderam entre o bosque, durante uma ou duas horas; e se quiseres saber o que disseram, vai perguntar às fontes tagarelas que correm invisíveis sob o musgo.
De repente o vento esfriou. A montanha se tornou violeta. Era a noite...
— Já! — disse a cabrinha, e se deteve muito espantada.
Embaixo, os campos estavam inundados de bruma. O cercado do Sr. Séguin desaparecia na penumbra, e da casinhola só se via o teto com um pouco de fumaça. Ela ouviu as campainhas de um rebanho que se recolhia, e sentiu a alma muito triste. Um corujão que voltava ao ninho a esfrolou com as asas, ao passar. Ela estremeceu... depois foi um brado na montanha:
— Uuuuu! Uuuuu!
Ela pensou no lobo; o dia inteiro a louca não tinha pensado nisso... No mesmo instante, uma trompa soou bem longe, no vale. Era esse bom Sr. Séguin, que tentava um último esforço.
— Uuuu! Uuuu! Uuuu! — fazia o lobo.
— Volta! Volta! — gritava a trompa.
Branquinha teve vontade de voltar, mas lembrando-se da canga, da corda, da cerca do curral, pensou que já agora não mais se podia afazer àquela vida, e que era melhor ficar.
A trompa não soou mais...
A cabra ouviu atrás de si um rumor de folhas. Voltou-se, e viu na sombra duas orelhas curtas, muito direitas, com dois olhos que reluziam... Era o lobo.
Enorme, imóvel, sentado sobre os quartos traseiros, estava ali, olhando para a cabrinha branca e saboreando-a por antecipação. Como sabia que a comeria, o lobo não se apressava; somente, quando ela se voltou, ele se pôs a rir maldosamente.
— Ah! Ah! A cabrinha do Sr. Séguin! — e passou a grossa língua vermelha sobre as beiçolas de cogumelo.
Branquinha sentiu-se perdida... Por instantes, lembrando-se da história da velha Renaude, que se tinha batido a noite toda para ser devorada pela manhã, disse para si mesma que talvez fosse melhor deixar-se comer imediatamente. Depois, tendo mudado de idéia, caiu em guarda, a cabeça baixa e o chifre para a frente, como corajosa cabra do Sr. Séguin que era. Não que tivesse esperança de matar o lobo — as cabras não matam o lobo — mas unicamente para ver se poderia resistir tanto tempo quanto a Renaude...
Então o monstro avançou, e os pequenos chifres começaram a dança.
Ah! a valente cabrinha, como lutava com todas as forças! Mais de dez vezes (eu não minto, Gringoire) ela forçou o lobo a recuar para retomar alento. Durante essas tréguas de um minuto, a gulosa colhia às pressas um brotinho da erva querida, depois retornava ao combate, com a boca cheia. Isso durou toda a noite. De quando em quando a cabra do Sr. Séguin olhava as estrelas dançarem no céu claro, e dizia consigo mesma:
— Oh! tomara que eu resista até a madrugada...
Uma após outra, as estrelas se extinguiram. Branquinha redobrou as chifradas, o lobo as dentadas... Um pálido clarão apareceu no horizonte... O canto enrouquecido do galo subiu de uma fazenda.
— Enfim! — disse o pobre animal, que não esperava senão pelo dia para morrer.
E ela estendeu-se por terra em sua bela pelagem branca, toda malhada de sangue... Aí o lobo se atirou sobre a cabrinha e a devorou.
Adeus, Gringoire!
A história que ouviste não é um conto de minha invenção. Se algum dia vieres à Provença, nossos caseiros te falarão freqüentemente da cabro de moussu Séguin, que se battègue touto la neui emé loup, e piei, lou loup la mangé — A cabra do Sr. Séguin, que se bateu toda a noite com o lobo, e depois, pela manhã, o lobo a devorou.
Ouves-me bem, Gringoire?
E piei, lou loup la mangé.


(Alphonse Daudet, “Contos” – Cultrix, SP, 1993)

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sexta-feira

A BONECA - G. Lenôtre

Lembro-me ainda muito bem da velha marquesa de Flavigny, que conheci quando pequenino, sempre sorridente e serena, sentada numa antiga poltrona de veludo cor-de-rosa, que fazia realçar os seus cabelos grisalhos e as grandes toucas de renda enfeitadas com laços.
A seu lado estava quase sempre, numa cadeira baixa, uma mulher da mesma idade, sorridente como ela, serena como ela. Chamavam-na menina Odília. Não era uma criada. Entre as duas velhinhas parecia existir grande intimidade. Enquanto as duas faziam horrendos saiotes de malha azul, que distribuíam aos pobres às quintas-feiras de manhã, com um pedaço de pão e algumas moedas, trocavam em voz baixa, em tom quase cúmplice, intermináveis confidências.
Em certos dias de grandes arrumações, quando não tricotavam a malha, as duas amigas iam dar volta aos armários — enormes bisarmas de carvalho polido, com longos puxadores de cobre e fechaduras altas e estreitas, recortadas em arabescos. Abriam caixas, perfumavam a roupa com alfazema, forravam as prateleiras de belas toalhas bordadas, espanavam e limpavam durante todo o dia.
Nós, as crianças, tínhamos licença de assistir àquele espetáculo salutar, com a condição de não mexer em nada.
No fundo de um desses misteriosos armários, como num santuário, repousava, de pé na sua caixa de vidro, certo objeto pelo qual as duas senhoras pareciam ter uma espécie de veneração. Era uma grande boneca vestida à moda antiga, com um vestido de seda desbotado; os anos tinham-lhe comido quase todo o cabelo; tinha o nariz partido, o verniz lascado no rosto e nas mãos, e lembro-me de ter visto dela só um sapato, sapatinho velho, de marroquim estalado, com a fivela de prata enegrecida e um salto que fora vermelho. Quando chegavam ao imponente brinquedo, a marquesa e a menina Odília deslocavam-no com mil cuidados, como meninos de coro que pegassem num relicário; falavam dele em voz receosa, em frases curtas:
— Olha, já lhe caiu mais cabelo... O vestido está mesmo desfiado. Este dedo solta-se, não demora...
Levantavam com mil precauções a tampa de vidro, renovavam a pimenta que usavam contra traça, alisavam a saia, vincando-a delicadamente com a unha... Depois tornavam a pôr a boneca no seu lugar, de pé na melhor prateleira, como num altar.
— Está bem segura, menina? — perguntava a marquesa. Era assim que tratava sempre a sua companheira. Esta tratava-a sempre familiarmente por Madame Solange, sem nunca lhe dar o título, falando com um vago sotaque alsaciano, mas sem rudeza e como esbatido pelo tempo.
Não sabíamos nada sobre a história das duas senhoras e da boneca. Um dia — era na véspera de Natal de um ano que já vai muito longe — fomos de repente iniciados no mistério.
Nesse dia, Odília e a marquesa tinham conversado com mais animação que de costume. Ao fim da tarde, ambas tinham ficado caladas e recolhidas. Com as mãos caídas no regaço, olhavam-se enternecidas, e percebia-se que mergulhavam pouco a pouco numa recordação comum. Quando anoiteceu de todo, Odília acendeu as velas, puxou de um molho de chaves e abriu o armário. Tiraram a boneca da caixa. Nas suas sedas desbotadas, sem cabelo, parecia mais velha que as duas senhoras, que a passavam de mão em mão, com gestos cautelosos, quase ternos. A marquesa a pôs no colo, endireitou-lhe ao longo do corpo o braço de gesso, que rangeu levemente, como num gemido. Ficou a olhar para a “senhora”, com um sorriso de carinho.
— Ó menina — disse, como se falasse com a boneca, — e se eu contasse a nossa história a estes pequenos?
Odília acenou com a cabeça, em sinal de assentimento. A marquesa mandou-nos sentar à sua volta. Tinha a boneca sentada nos joelhos, e parecia conversar com ela.
Começou por dizer que, muitos anos antes, quando era ainda uma menina da nossa idade, a guerra civil devastava a Bretanha, sua terra natal. Era a época do grande pavor.
Logo em princípios do ano de 1792, os pais de Solange tinham emigrado. Com receio dos perigos do exílio, confiaram-na aos cuidados de uma camponesa de Ploubalay, aldeia vizinha do solar, perto da costa de Saint-Malo. Estavam convencidos de que a “boa causa” triunfaria, e de que a sua ausência seria breve.
Mas, quase logo a seguir, a fronteira fora fechada. Havia leis impiedosas contra os emigrados que tentassem voltar à França. Uma terrível tempestade sangrenta assolava a Bretanha. Solange, enquanto durou o vendaval, permaneceu em casa dos aldeães a quem fora entregue, os Rouault, gente boa mas que vivia receosa, sem notícias dos pais da menina nem possibilidade de comunicar-se com eles, pois a lei castigava com pena de morte a menor tentativa de correspondência com os emigrados.
Ploubalay é uma aldeia grande, a três léguas de Saint-Malo, distante da costa cerca de meia hora. A costa é eriçada de rochedos avermelhados e protegida por um arquipélago de recifes que o mar fustiga sem cessar, e que tornam perigosa qualquer tentativa de desembarque. Os “azuis” ocupavam a aldeia, donde tinham expulsado os “chouans”. O sargento que os comandava era um desses subalternos, como muitos que havia no exército revolucionário: patriota rude, inflexível e obstinado. Era alsaciano, e chamava-se Metzger. Toda a aldeia o temia. A pequena Solange, sobretudo, punha-se a tremer, na soleira da porta dos Rouault, mal avistava esse homem terrível de grandes bigodes, sobrancelhas espessas, olhar oblíquo, voz estrondosa e pronúncia áspera. Era o seu pesadelo. Quando não andava em reconhecimento com a brigada, o sargento Metzger estava sempre à porta do posto instalado na igreja ocupada, a cavalo numa cadeira, fumando obstinadamente o seu cachimbo. Era dali que vigiava, com ar feroz, as três ruas da aldeia.
Um dia, Solange tinha ido buscar pão para a tia Rouault, e já vinha de volta, com a pesada broa negra enrolada no avental, quando viu, no lugar do costume em frente do portal da igreja, o sargento Metzger, que a seguia de longe com os seus olhos grandes. A pequena hesitou. Vontade de fugir não lhe faltava, mas teve medo. Enchendo-se de coragem, começou a andar muito depressa, como qualquer menina que tivesse ido aos recados com a recomendação de não se demorar. Apertava o passo, rente às casas, sem voltar a cabeça. Mas, quando já julgava ter escapado ao perigo, ouviu a voz retumbante do sargento:
— Alto aí, pequena!
A criança sentiu o coração parar no peito; ficou pregada ao chão, gelada de pavor, quase a desfalecer.
— Vem cá... Anda, mais perto! — continuou a voz.
Solange obedeceu, quase sem saber o que fazia. Agora estava a dois passos do sargento, e ainda não se atrevera a levantar os olhos. O homem deixou-a assim estar, sem dizer palavra. Por fim, num tom que fez estremecer a criança como o súbito estourar de um trovão, perguntou:
— És uma miúda aristocrata, heim?
A pequena ficou de boca aberta, sem voz, encomendando-se a Deus. Não tinha compreendido lá muito bem, mas uma coisa sabia: essa palavra aristocrata designava pessoas que eram condenadas à morte.
— Que idade tens? — perguntou o homem.
Numa pobre vozinha enrouquecida, balbuciante de terror, respondeu:
— Oito anos...
Ia acrescentar cortesmente “senhor”... Mas engoliu a palavra em tempo, por instinto, certa de que, se a pronunciasse, o soldado a mataria logo ali. Contudo, naquele momento ele não parecia muito disposto a isso. Murmurou:
— Oito anos... Oito anos! Exatamente...
E logo a seguir acrescentou:
— Estás crescidinha e forte para a idade.
Disse isto num tom tão diferente, que a menina, surpreendida, levantou os olhos para ele. Era medonho, com o bicórnio de bicos para os lados, donde pendia uma borla de crina vermelha, a face tisnada, o cachimbo enegrecido, as mangas agaloadas, os talabartes brancos cruzados no peito, o grande sabre, as polainas enlameadas. E, pior que tudo, os olhos, os olhos profundos e penetrantes, que pareciam devorá-la.
— Vamos, põe-te a andar — ordenou.
A menina deu meia-volta e continuou a correr para casa, ainda trêmula e fria de emoção.
A partir desse dia, começou a sentir-se espiada pelo sargento. Quando ele passava pela porta dos Rouault, à frente dos soldados, deitava um olhar para dentro da casa. Se a encontrava nas ruas, parava e ficava a segui-la com os olhos. E naquela voz áspera, com a pronúncia diabólica que a fazia arrepiar, chamava-a, entre grandes risadas:
— Ah! Ah! Ah! Pequena...
Por sua vontade, Solange agora nunca saía de casa. Mas a tia Rouault, calculando que a garota não tornaria a ver os pais, e não sendo pessoa para dar hospedagem de graça, utilizava-a para fazer os recados. Assim obrigada a encarar todos os dias aquela sua sombra negra, Solange acabara por sentir-se condenada à morte. O malvado, pelo visto, só esperava ocasião para dar cabo dela. E convenceu-se disso certo dia em que, quando lavava hortaliças no chafariz da praça, o sargento a interpelou bruscamente:
— Como te chamas, menina?
Pensando que chegara a sua hora, respondeu, resignada:
— Solange.
O sargento exclamou:
— Solange! — ele pronunciava Zôlange. — Que nome patusco!
Apalpou-lhe os braços e levantou-a do chão, como se quisesse avaliar-lhe o peso.
— Oito anos! — exclamou. — Oito anos! O que isto cresce!...
A pequena julgou-se nas mãos de uma fera, que apreciasse a presa já segura. Com aquela perspectiva, a vida para ela tornou-se lúgubre.
Dezembro chegara, com as noites sinistras, os dias sem sol. Não se passava um dia sem que os “azuis” prendessem um emigrado. Os exilados passavam tal miséria em Jersey ou Londres, ansiavam tão ardentemente por voltar à França, que muitos deles não resistiam a desembarcar. Os “azuis”, emboscados em terra, davam-lhes caça nos rochedos do litoral ou na charneca. Para apanhar as suas presas, tinham treinado enormes cães, que farejavam o rastro dos infelizes e iam descobri-los nos fossos por onde se arrastavam durante a noite, ou nos juncais onde passavam o dia alapardados. Depois, a gente de Ploubalay via-os atravessar a aldeia acorrentados, com as roupas em farrapos, entre soldados que os levavam a Saint-Malo ou a Rennes, onde eram fuzilados após julgamento sumário. A lei era impiedosa e irrevogável: emigrado que apanhassem era homem morto.
Quando chegou a véspera de Natal desse ano de 1793, ninguém deu mostras de pensar na doce festa de outrora. A igreja estava fechada, os sinos mudos. A noite caiu, muito enevoada. Ao longo do dia se tinham ouvido ladrar os cães, do lado da planície Bodard: os “azuis” deviam ter feito boa caçada...
No sobrado da casa dos Rouault, a pequena Solange dormia numa água-furtada contígua a um celeiro cheio de escuridão e de terror, que a fazia arrepiar quando à noite, muito quieta na enxerga, pensava em todos os misteriosos perigos que podiam estar do outro lado da porta fechada.
Nessa noite Solange estava muito triste: enquanto se despia a tiritar, lembrava-se de outras vésperas de Natal, essas bem alegres, quando ainda estava com os pais, e sentia o coraçãozinho cheio de afeto e ternura. Como o despertar era radioso, nesses Natais passados! Que êxtases, diante da chaminé cheia de brinquedos, de gulodices, de embrulhos com laçarotes de fita! Enquanto pensava em tudo isso, segurava nas mãozinhas cansadas os tamancos grosseiros que dessa vez não iria pôr na chaminé, sabendo de antemão que haviam de ficar vazios, como no ano passado... Talvez o Menino Jesus tivesse medo, e era por isso que já não vinha à França...
De repente, julgou ouvir ruído no celeiro. Assoprou a vela, muito depressa, e enfiou-se debaixo do cobertor. Depois adormeceu. Enquanto dormia, pareceu-lhe que uma porta se abria devagarinho, e que uma sombra entrava na água-furtada. Arriscou um olhar fora dos cobertores, para ver o que lhe mostraria a luz do luar que inundava o quarto.
Estaria sonhando? Percebeu que a sombra era um homem, vestido como esses emigrados que ela via passar pelas ruas da aldeia, quando os levavam presos para Saint-Malo, e ouviu uma voz meiga que dizia:
— Não tenhas medo, minha pequenina, não tenhas medo!
Solange não tinha medo. Sentiu afastarem-lhe com cuidado os caracóis que lhe cobriam a testa. Um raio de luar atravessava a janela sem cortinas e batia em cheio na cama. O homem que entrara contemplava-a:
— Como estás bonita, minha Solange! E crescida, e forte!
Não se cansava de olhar para ela. E de repente tomou-a nos braços, apertou-a desesperadamente ao peito e cobriu-a de beijos. A menina já não sabia se estava acordada ou sonhando, mas pensou de repente que, se o pai fosse vivo e estivesse ali, diria aquelas coisas, e seriam assim os seus afagos, aquele abraço, aqueles beijos... Pareceu-lhe que o homem se ajoelhava à beira da cama, julgou ouvi-lo soluçar, aninhou-se-lhe nos braços e tornou a adormecer, inundada de felicidade.
De manhãzinha, quando abriu os olhos, custou-lhe ordenar as suas recordações. Mas depressa recuperou a consciência da realidade: não havia dúvida, tinha sido tudo um sonho. O quarto estava vazio, e a porta do celeiro fechada. No andar de baixo, ouvia como de costume o passo pesado da tia Rouault, nas suas voltas da manhã. Solange sentou-se na cama, e de repente soltou um grito de alegria. Sobre os tamanquinhos, acabava de ver, no esplendor de um vestido verde claro, uma grande boneca majestosa e sorridente, uma boneca vestida como uma lady, com lindos caracóis sedosos a emoldurar as faces de esmalte, um xale de renda cruzado no peito e sapatinhos de marroquim com fivelas de prata reluzentes.
A criança caiu de joelhos em frente da “senhora”, e batizou-a logo com o nome de Yvonne. Vestiu-se num abrir e fechar de olhos, e levando a “filha” nos braços, desceu à cozinha. A tia Rouault, ao vê-la aparecer com aquele brinquedo maravilhoso, que excedia tudo quanto a sua imaginação podia conceber, exclamou, estupefata:
— Santo Nome de Deus! Quem te deu essa boneca, Solange?
— Foi o Menino Jesus... — respondeu a menina, com toda a simplicidade.
A bretã ficou de boca aberta. Embora fosse muito crente, aquele milagre, ainda assim, parecia-lhe ultrapassar os limites do poder divino. Mas a evidência era esmagadora. Ela bem sabia que ninguém teria podido comprar em Ploubalay semelhante maravilha, nem mesmo em Matignon, nem sequer em Saint-Malo ou em Rennes. O prodígio encheu-a de respeito. Examinou, sem quase se atrever a tocar-lhe, a “senhora” que Solange lhe estendeu triunfalmente. Depois chamou o marido:
— Venha ver, Rouault! Venha ver o que o Menino Jesus trouxe para a nossa menina!
O espanto de Rouault não foi tão grande. Era uma alma simples, e nada percebia de sedas e enfeites. Mas já as vizinhas se aproximavam, e falavam todas ao mesmo tempo, pondo as mãos em sinal de admiração. Algumas curvavam-se ingenuamente ante o prodígio indiscutível. Outras, mais céticas, ficavam desnorteadas, incapazes de encontrar explicação satisfatória. Solange, essa, importava-se pouco com o pasmo delas. Embalava Yvonne, abraçava-a com cuidado, mal ousando aflorar com os lábios os caracóis loiros, as faces lustrosas da sua “filha”. Levou-a à janela e mostrou-lhe a estreita perspectiva da rua direita de Ploubalay. Depois a tia Rouault voltou às coisas práticas, e a mandou ao outro extremo da aldeia para comprar favas. Ela saiu radiante, levando a boneca ao colo.
O grande acontecimento já era sabido em metade da aldeia. As mulheres vinham às portas, para ver. Solange passava, orgulhosa e grave, compenetrada da sua importância. Quando passou em frente da igreja, onde o sargento Metzger como de costume estava sentado na sua cadeira, nem pensou em se desviar, como das outras vezes. Que perigo podia ameaçá-la num dia como aquele? A sua felicidade interior era tão perfeita, que não tinha medo de nada nem de ninguém. E quando o militar a chamou, perguntando-lhe o que tinha consigo, parou com desenvoltura e respondeu, aproximando-se dele:
— É uma boneca.
— Que linda boneca! Onde é que a arranjaste, menina?
— Senhor sargento, foi o Menino Jesus que a trouxe para mim.
O jacobino levantou-se, terrível, e afastou a cadeira com um pontapé.
— O que é que estás dizendo? — gritou.
— É uma boneca que o Menino Jesus me trouxe, por ser Natal.
Metzger estava espantado com tanta audácia:
— Imaginas que eu engulo essas?!...
Mas, ante o ar de candura da menina, calou-se, tirou-lhe a boneca e examinou-a minuciosamente.
— Uma bela dama, sim, senhora! Uma verdadeira lady! E já viste o que está escrito aqui na sola dos sapatos? Berkint - London. Então é inglês o teu Menino Jesus?
— Não sei, senhor sargento — respondeu Solange, pegando outra vez na boneca, mas sentindo estragada toda a alegria.
— Já vamos ver isso — trovejou o sargento.
E voltando-se para o posto, chamou:
— La Cocarde!
Apareceu um cabo.
— Ontem entrou alguém na aldeia?
— Não me parece, meu sargento. Os homens estiveram sempre alerta. É verdade que ao anoitecer os cães ladraram de maneira esquisita, mas nós batemos as moitas e não encontramos nada.
— Está bem. Chama os teus homens.
Pôs a patrona ao ombro, afivelou o cinturão, pegou a espingarda e, à frente da brigada, dirigiu-se para a casa dos Rouault. Solange, instintivamente angustiada, caminhava ao lado dele, estugando o passo para o acompanhar, apertando ao coração a linda Yvonne.
Ao chegarem à casa dos Rouault, o sargento dispôs os seus homens: dois de sentinela em frente da porta e outros no pomar atrás da casa, que ficou cercada por todos os lados. Depois, seguido pelos restantes soldados, entrou no jardim da casa levando Solange pela mão. Sentou-se num banco, pôs a pequena entre os joelhos e disse, num tom mais humano, certamente para a conquistar:
— Vamos, menina: Conta-me tudo!
Com o coração apertado, um pouco ofegante, Solange começou em voz muito baixa a sua longa narrativa. Contou o “sonho”, o homem que julgara ver entrar no quarto, a ilusão de ter sido abraçada e beijada e, de manhã, a surpresa ao dar com a linda boneca. O sargento não perdia palavra. De repente, voltando-se para os soldados que assistiam de pé ao interrogatório, ordenou:
— Vamos, meia-volta! Ponham-se lá fora de sentinela. Façam fogo sobre o primeiro que tentar fugir daqui.
Os homens saíram, e ele ficou só com a menina.
— Com que então, pequena, dizes que o tal homem te beijou, que te chamava minha pequenina?... Que se pôs de joelhos ao pé da tua cama e chorou?...
A criança, a cada pergunta, respondia que sim, com a cabeça, sem querer mentir, mas pressentindo alguma desgraça que a ameaçava. Metzger não se deu pressa em agir. Pousou as rudes mãos nos ombros de Solange e, como se falasse consigo mesmo, disse gravemente:
— É claro... Também eu tenho uma filha assim, lá para os lados de Gerlsheim, na Alsácia... Também tem oito anos... E também há dois anos bem contados que não a vejo. Para a ver, mesmo estando ela dormindo, às escuras, para a beijar uma vez que fosse, para a sentir respirar no meu ombro, com os cabelinhos loiros tocando-me a cara... Sim, para isso também eu arriscaria a vida sem pensar. Os pais são todos do mesmo jeito, pelo visto...
Ficou uns instantes embebido em profunda reflexão. Depois, decidindo-se bruscamente, levantou-se, sacudiu a cabeça, e voltando-se para a porta que ficara aberta, gritou:
— Venham cá, dois de vocês! Vamos passar uma busca na barraca.
Solange soltou um grito:
— Senhor Sargento, espere!...
Ao ouvi-lo falar, a menina compreendera tudo: era o pai que, na calada da noite, afrontando a morte para estar um instante com ela, deixara o exílio, atravessara o mar, desembarcara nos rochedos, rastejara sob a ameaça das espingardas até à aldeia... Era o pai que, pensando no Natal sem brinquedos, que ia passar a sua menina, lhe trouxera a “senhora”. Era o pai que estava lá em cima, escondido no celeiro, e que os soldados iam prender e levar acorrentado, entre quatro canos de espingarda...
Então a pobre pequena, com o coração trespassado, agarrou-se ao sargento e, sacudida dos pés à cabeça por grandes soluços, suplicou:
— Espere, espere!
— Que mais temos? — perguntou o alsaciano, retomando a expressão brutal e a voz áspera.
Solange tivera uma inspiração. Para salvar o pai, daria tudo o que tivesse. Mas só tinha a boneca, e lembrou-se de fazer um grande sacrifício.
— O senhor sargento tem uma filha, não tem? Da minha idade... E que não o vê há dois anos...
Metzger respondeu afirmativamente, com a cabeça.
— Então... talvez... como o senhor não está em casa, o Menino Jesus se tenha esquecido dela... Olhe, tome a minha boneca, e mande-a para lá... Eu a dou à sua filha...
O soldado curvou-se de repente para a menina e fitou-a, com os grandes olhos lacrimejantes. Respirava com ruído, os lábios tremiam sob o bigode, e o movimento dos músculos nas faces denunciava a comoção reprimida. Os dois homens que ele chamara se aproximaram.
— Cala-te, menina, e não tenhas medo — disse em voz baixa o sargento.
Depois, dirigindo-se aos soldados:
— Vamos subir lá no celeiro e revistar tudo. Armas engatilhadas e olho alerta! Tu, pequena, vais adiante.
Os três militares e a menina subiram a escada. Chegados à água-furtada, o sargento postou um dos seus homens à entrada do quarto e o outro perto da janela. Depois dirigiu-se para o celeiro e entrou sozinho, fechando a porta atrás de si. O coração de Solange batia como doido. Passados instantes, a porta do celeiro tornou a abrir-se, e Metzger apareceu.
— Está vazio — disse. — Vamos para baixo. O pássaro bateu asas. Fomos enganados.
Quando se achou sozinho com Solange, na sala do andar térreo, curvou-se para ela e disse-lhe ao ouvido:
— Fixa bem o que te vou dizer: o “homem” pode ficar lá em cima esta noite e o dia de amanhã. Dize-lhe que esteja descansado, que ninguém o incomodará. Que saia na outra noite e vá daqui a Lancieux, e depois a Saint-Briac, onde pode embarcar. Essa região não estará vigiada: eu me encarrego de levar os meus homens para outro lado. Entendeste tudo?
— Sim, senhor sargento.
— Bom, agora a boneca. Fico com ela, e vou mandá-la para Odília, a minha filha. Fico com ela, porque mais alguém poderia estranhar, como eu estranhei, que o Menino Jesus andasse trazendo brinquedos da Inglaterra às meninas como tu. Esta “filha” ainda te daria algum desgosto. Agora, bico calado! E não te esqueças: por Lancieux e Saint-Briac.
E saiu, reunindo os seus homens, que levou nessa mesma noite, com os cães policiais, numa expedição de três dias para o lado de Matignon.

— E aqui têm, meus meninos, a nossa história: de Yvonne, de Odília e minha — concluiu a marquesa de Flavigny. — O único drama da nossa existência. Quinze anos depois, quando me casei, fui com o marquês em passeio à Alsácia. Dirigi-me a Gerlsheim, e perguntei pelo sargento Metzger e pela sua filha Odília. Estes nomes me ficaram bem gravados na memória. Encontrei o velho soldado, na sua plantação de lúpulo. Passara à reserva, depois de ter sido condecorado em Austerlitz pelas mãos do Imperador. Muitas vezes contara a história da pequena Solange à filha, que tinha conservado preciosamente a “senhora”. Quando o sargento morreu, anos mais tarde, fui buscar Odília para a minha companhia. Ela me trouxe a Yvonne, e desde então nunca mais nós três nos separamos.


(G. Lenôtre, “Lendas de Natal” - Verbo, Lisboa, 1966)

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terça-feira

A ÁRVORE DE NATAL DO SENHOR D'AUVRIGNY - G. Lenôtre

Auvrigny é o nome de uma aldeia perdida nos confins das Ardenas, numa região isolada e bravia junto da fronteira com a Bélgica. Esse pequeno recanto da França, berço natal de todos os cesteiros, afastado das grandes vias de comunicação, manteve-se por muito tempo atrasado em relação ao resto do país. No princípio da Revolução Francesa, Auvrigny era uma aldeia de cinqüenta casas, a pouca distância de uma vasta casa conhecida como castelo, habitada por um bom fidalgo provinciano, solteirão, muito agradável no trato e muito afável.
Desde tempos imemoriais a aldeia e o castelo mantinham entre si as melhores relações. O conde de Auvrigny era caridoso, os camponeses mostravam-se dedicados. À menor dificuldade, recorriam ao senhor, que se encarregava de resolver amigavelmente as questões entre eles, e se mostrava sempre disposto a intervir nos desaguisados com a administração das Águas e Florestas ou com os guardas do senhor duque de Orleans.
Sem pôr fim àquele bom entendimento, os acontecimentos da Revolução esfriaram um pouco as relações entre os aldeães e o senhor. As gazetas não chegavam a Auvrigny, é certo. Aliás, teriam encontrado ali tão reduzido número de leitores, que a sua influência seria quase nula. No entanto, os “espíritos fortes” agitavam-se. Sempre havia contatos com a vila de Nouvions, e mesmo com Vervins, onde acabava de ser instalado o tribunal da comarca. Embora apenas de forma remota e vaga, a aldeia mantinha-se informada do que ia acontecendo em Paris.
Na altura das eleições, tinham vindo de Laon uns senhores de largos cinturões, empenachados como trombeteiros, que pregavam aos camponeses boquiabertos os benefícios da igualdade e a felicidade da independência. Diziam mais: que todos os nobres eram falsos como Judas e cruéis como o Barba Azul; mas os camponeses de Auvrigny só conheciam um, que sempre lhes parecera franco e generoso, de maneira que os discursos dos jacobinos de Laon não fizeram efeito por ali.
Quanto ao conde, nada mudara nos seus hábitos. Como era sensato e inteligente, absteve-se de emigrar. Não tendo nenhum direito senhorial a perder, não mostrou qualquer despeito quando da abolição dos privilégios. E ao ver que pouco a pouco os aldeães, que sempre tratara como amigos, por desconfiança ou por orgulho se desabituavam de vir consultá-lo, fez-se de desentendido e continuou como antes, vivendo à maneira de filósofo que nada espera de ninguém, e que a opinião alheia pouco afeta.
Estava-se no inverno de 1793, na véspera de Natal, e o conde de Auvrigny, fiel a um velho costume da região, mandara armar no vestíbulo do castelo um magnífico pinheiro cortado no seu parque e enfeitado de luzinhas, fitas, brinquedos e gulodices, alegremente pendurados nos ramos escuros. Era tradição as crianças da aldeia virem todos os anos, acompanhadas pelos pais, fazer a colheita daquelas maravilhas; em seguida o conde mandava distribuir uma suculenta merenda de bolos e doces. Os cestos das mães, que tinham vindo vazios, regressavam transbordando de provisões e de roupas confortáveis. Até os homens encontravam, na algibeira dos capotes, poeirentas garrafas de vinho ou cabacinhas de aguardente velha. Era uma festa que alegrava toda a gente dois meses antes, e que dava que falar depois até à Páscoa.
Ora, nesse ano desgraçado o conde entendera que não havia de renunciar à caridosa tradição, embora percebesse muito bem que, havia tempos, a desinteligência entre o castelo e a aldeia se ia cavando mais fundo. Nesse dia lembrara-se até de arranjar um lindo presépio, onde se via a imagem de cera do Menino Deus, deitado nas palhinhas, numa gruta de cortiça colocada à sombra da árvore de Natal, sob os grossos ramos que uma nuvem de farinha parecia cobrir de neve.
O velho fidalgo, que gostava de dirigir pessoalmente estes arranjos, dava os últimos retoques na sua obra quando ouviu baterem à porta do castelo. Imaginando que a impaciência de algum dos seus convidados o trazia antes da hora, apressava-se a acender as últimas velas, quando o criado introduziu, em vez do bando de crianças que ele esperava, o regedor da aldeia, Gérard, e o seu adjunto, que se chamava Birou.
O conde estendeu-lhes a mão, que apertaram com certo embaraço. Conhecia-os a ambos de longa data. Gérard, camponês quase analfabeto, não era mau. Birou, pelo contrário, era invejoso, parlapatão e pretensioso. Sabia ler mais ou menos a “letra de forma”, e essa superioridade granjeava-lhe enorme prestígio aos olhos dos conterrâneos. Conseguira ser admitido no clube dos jacobinos de Guise, e acabava até de se fazer assinante de uma folha revolucionária, que lá ia decifrando mal-mal, sem perceber patavina. Era ele que dava ordens na comuna; fora ele, igualmente, que conseguira inculcar no espírito dos patrícios a idéia de que a sua dignidade de homens livres não lhes permitia manter relações com “o explorador dos pobres”, que era o conde. Deve-se dizer entre parênteses que Birou tratava o melhor possível esse mesmo senhor, pois era naturalmente obsequioso, e pensava com prudência que não se podia prever “que volta levariam as coisas”...
Gérard e Birou apresentaram-se, pois, ao conde de Auvrigny, muito surpreendido com a inesperada visita. Birou lançou à árvore de Natal um olhar bastante escarninho, mas conteve-se. Gérard cumprimentou com acanhamento. Como o nobre lhes agradecesse por terem vindo antes de todos os conterrâneos, o regedor balbuciou:
— Oh!... Não é bem por isso que nós... Pois não, Birou?...
— Não, não — replicou Birou, com um risinho alvar. — Não é isso que nos traz aqui.
O conde convidou-os a entrar no escritório e a expor o motivo da visita, declarando-se pronto a escutá-los, enquanto não chegassem os convidados; mas Birou cortou de repente:
— Bom!... Para sermos francos, cidadão, os seus convidados não vêm.
— Como?!... Por quê?
— Lamento, lamento muito — apressou-se a acrescentar Birou. — O cidadão Gérard que diga a pena que tenho, mas eles pensaram... acharam...
— O quê? Acharam o quê?
— Que as circunstâncias não lhes permitiam, como patriotas, participar em certos atos manchados de espírito aristocrático.
Era uma frase de gazeta. O conde mordeu os lábios.
— Ora, diga-me cá, Birou: acha que o que era bom há alguns anos pode hoje ser mau?
— Não, claro... O que eu queria dizer...
— A menos que a moral tenha mudado, como receio, será que temos o direito de criticar hoje o que aprovávamos ontem?
Não se sentindo à altura de manter a discussão naquele tom, Birou esquivou-se e replicou com um dos argumentos que ouvira repetir no clube de Guise, e que aplicava a torto e a direito, sem lhe compreender o alcance:
— Deixemo-nos de discussões, cidadão: se a gente não vem aqui desfilar diante da sua árvore, é porque essa manifestação pueril revolta a razão e ofende a igualdade!
— Quando tiver tempo, Sr. Birou — respondeu o aristocrata — há de explicar-me por que a imagem de uma criança deitada nas palhinhas do presépio fere os seus sentimentos igualitários. Mas é melhor ficarmos por aqui. Tornaremos a falar da minha árvore de Natal quando os tempos forem menos confusos, e as pessoas menos tolas. Oxalá este repúdio de um velho costume, de que os vossos pais tanto gostavam, não venha a trazer-vos infelicidade...
E, como a despedir os visitantes, acrescentou:
— Não tinham mais nenhuma comunicação a fazer-me?
— Perdão — disse por sua vez Gérard — eu vinha consultá-lo sobre uma coisa muito delicada. Birou, que fala bem mas fala demais, não me deu tempo para perguntar.
E o regedor explicou que, nos seus três anos de funções, fora se desembaraçando a contento da tarefa. Lembrou que muitas vezes, no princípio, viera pedir conselho ao conde. Depois esforçara-se por se valer do seu bom senso e das luzes do povo da comuna, mas daquela vez o caso era grave, tão grave que ele não vira remédio senão vir esclarecer-se junto do “homem mais instruído da região”. É que ele recebera na antevéspera, por intermédio do comissário do Poder Executivo de Salvação Pública, intimação para organizar o mais depressa possível a lista dos suspeitos da comuna de Auvrigny.
— Ora — continuou — por mais que puxe pela cabeça, não sei o que é um suspeito. O Birou também não sabe. Consultei o Havard, o Desquesne, o Jendelle e o Rendon, as melhores cabeças da aldeia, e nenhum deles ouviu falar de suspeito. É palavra que não conhecemos. Então tirei-me dos meus afazeres e vim perguntar ao cidadão se sabe o que é.
O conde encarou rapidamente os seus interlocutores. Vendo que não havia neles sombra de malícia, e que o seu embaraço era real, volveu com toda a seriedade:
— De fato, suspeito é uma expressão nova, que eu também nunca tinha ouvido até há pouco tempo... Mas a que se destina essa lista que os senhores têm de organizar?
— Assim que esteja escrita, tenho de a mandar diretamente ao Comitê de Salvação Pública, que, como diz aqui na carta, tomará imediatamente medidas adequadas.
— Oh! Oh! A coisa é urgente, na verdade... Pois muito bem, meu bom Gérard, o que o Comitê lhe pede é simples: quer apenas saber os nomes de todos aqueles que nesta comuna se têm distinguido desde o começo da Revolução, pelo seu patriotismo e pelo seu ódio ao antigo regime.
Como notasse que Birou era todo ouvidos, o conde acrescentou negligentemente:
— É provável que a Convenção queira distribuir cargos e pensões. Suspeitos, em linguagem oficial, quer dizer aqueles que são suscetíveis de receber uma recompensa nacional.
— Era o que eu pensava — observou Birou.
— Não me surpreende, Birou. Como você me dizia no outro dia, a República abateu a hidra do fanatismo e triunfou sobre todos os seus inimigos. Por conseguinte, só lhe resta agora pensar nos amigos; e, como vêem, não os esquece... Só tenho uma mágoa: é não poder figurar nessa lista de honra.
— Ora!... — insinuou Gérard, magnânimo. — Se tem tanto empenho nisso...
— Não! De maneira nenhuma! O meu nome de aristocrata só poderia prejudicá-los perante o Comitê. E além disso nada fiz para merecer figurar ao lado daqueles que, como vocês, se bateram pela liberdade.
O regedor parecia imensamente atrapalhado:
— Então, como há de ser? Na tal lista de suspeitos (diacho de nome!) vou já plantar o Birou...
— Excelente idéia! Ponha-o logo no início... Então, então — acrescentou o conde, voltando-se para Birou, que esboçava um protesto afetado — deixe-se de modéstia. É mais do que justo. Olhe, Gérard, sente-se a essa mesa e escreva: Lista dos Suspeitos da Comuna de Auvrigny...
O camponês, com a pena apertada nos dedos grossos, traçava em caracteres enormes as palavras que ia soletrando a meia-voz. E aplicava-se tanto, que tinha a testa perlada de suor e a ponta da língua entre os dentes. Finalmente, lá conseguiu levar a empresa a bom termo.
— Pronto! Cá está o título. Agora os nomes: Birou primeiro; depois, quem mais há de ser? Não posso pôr só um... É uma miséria.
— Claro! — aprovou o conde. Até parecia que estava a regatear. — Mas olhe lá, ainda há pouco citou o Havard, que grita “fora com ele!” quando eu atravesso a aldeia. Esse é dos bons. E o Rendon, que me apanha os faisões que pode, a pretexto de que os coutos já acabaram. Aí tem você outro fervoroso partidário do novo regime. Olhe, o Jendelle, que derrubou a cruz do cemitério. O Desquesne, que nos trata a todos por tu e não tira o chapéu, porque acha que a boa educação é inimiga da liberdade. Aí tem uma boa quantidade deles, que têm dado garantias ao novo regime.
Gérard ia escrevendo os nomes que o conde citava. Quando acabou, levantou a cabeça com ar satisfeito, e arriscou:
— E se eu pusesse também o meu nome?
— Não o aconselho, Gérard — respondeu o conde. — Tem de assinar a lista como regedor da comuna, por isso é mais conveniente não se indicar a si próprio.
Embora um pouco desconsolado por não figurar na lista dos suspeitos, o regedor de Auvrigny mandou-a nessa mesma noite ao Comitê de Salvação Pública. Na aldeia espalhara-se a notícia do acontecimento. Birou não pudera calar-se, gabara-se de que em breve os senhores desse comitê o chamariam a Paris para lhe conceder uma recompensa — talvez dinheiro, ou um bom lugar, acompanhado de uma coroa cívica. Por isso não faltou quem o invejasse quando, certa manhã, a casa do adjunto foi invadida pela guarda de Nouvions, sob o comando de um agente do Comitê de Segurança Geral. Fez subir Birou para uma berlinda, em cujas portas se distinguia ainda, apesar de muito raspado, o escudo de armas com as flores-de-lis da casa de Orleans. Jendelle e os outros foram também levados; e nessa noite, à ceia, Gérard não pôde conter um suspiro ao dizer para a mulher:
— Se o conde me tivesse deixado fazer o que eu queria, também eu iria com eles a estas horas, a caminho de Paris...
— É para aprenderes a não confiar nos conselhos de um aristocrata!
Gérard, amuado, não tornou a pôr os pés no castelo. O conde, por seu lado, também nunca ia à aldeia. Mas um dia que teve de ir ao ferreiro, estranhou o aspecto deserto e silencioso das ruas. Vendo um velhote, que o saudava à moda antiga, perguntou-lhe o que significava aquilo.
— Ah, senhor conde! Já não há homens válidos na aldeia. Como o senhor sabe, o governo mandou pedir os nomes dos que haviam de receber recompensas, e o regedor indicou cinco, que foram logo chamados a Paris. Mas os outros, quando viram aquilo, nunca mais sossegaram, insistindo para serem propostos, e o Sr. Gérard teve de redigir segunda lista dos suspeitos de Auvrigny, onde meteu quase todo mundo. Nem sequer resistiu à tentação de lá se inscrever também. De maneira que um dia veio aí a brigada toda de Vervins com um grande carro, onde empilharam os nossos homens. Há seis semanas que para lá foram, todos a rir e a cantar, mas o tal lugar que lhes deram deve ser de muito trabalho, porque ainda não houve nem um que desse notícias...
E foi assim que o conde de Auvrigny, aristocrata da gema, se desembaraçou de vizinhos desagradáveis e viveu sossegado no seu castelo durante todo o período do Terror, enquanto os seus camponeses, com mais alguns dez mil, tão perigosos e tão culpados como eles, enchiam as cadeias de Paris.
Quando veio o Termidor, o fidalgo fez tudo o que pôde para obter a liberdade dos presos. Mas nessa altura eram tantas as injustiças a reparar, que os meses iam passando e ele nada conseguia.
Transformara-se no pai adotivo da aldeia, onde só restavam velhos, mulheres e crianças. Tinha sempre a mesa posta e a bolsa aberta para aquela pobre gente, que não dava um passo sem o consultar, e que o considerava a sua providência. Auvrigny voltara aos velhos tempos de antes de 1789, quando a aldeia e o castelo confraternizavam. Os camponeses, não tendo outros recursos senão a generosidade do senhor, voltaram a chamá-lo senhor conde e respeitavam-lhe os faisões. Ele, por seu lado, continuava a não dar mostras de surpresa ante as sucessivas reviravoltas que o espírito da população ia sofrendo a seu respeito.
Notou-se apenas que, ao aproximar-se o inverno, fez várias viagens a Paris. O motivo dessas peregrinações tornou-se claro quando, alguns dias antes do fim do ano de 1794, começaram a chegar a Auvrigny, de orelha murcha, um a um, os suspeitos que dali tinham partido tão gloriosos alguns meses antes. Mostravam-se muito reservados quanto aos pormenores da sua aventura, de que aliás não percebiam grande coisa. Mas não poupavam louvores ao conde, que dera provas de um zelo infatigável para os tirar da cadeia.
Por isso houve grande afluxo de gente no castelo, naquela véspera de Natal. O conde, no entanto, não fizera convites. Se armara a costumada árvore de Natal, ainda mais carregada de surpresas do que habitualmente, fora apenas, ao que parecia, para sua satisfação pessoal. Estava ali a aldeia em peso, respeitosa, cheia de gratidão. E como o regedor Gérard se conservava modestamente atrás do povo, o fidalgo foi buscá-lo pela mão e o trouxe para perto.
— Ah, senhor conde! Se eu lhe tivesse dado ouvidos! Mesmo assim o senhor sempre nos pregou uma destas lições!...
— E não ficou zangado, Gérard?
— Nada, senhor conde, porque se eu naquela altura tivesse sabido de fato o que era um suspeito, era o senhor, e só o senhor que eu ia pôr na lista. Teria feito essa asneira. Quando penso nisso, até sinto calafrios.
— Por quê?
— É que eu bem vi como as coisas se passaram! O senhor conde, se lá tivesse ido, nunca mais voltaria. Mas, naquela confusão, não ligaram nenhuma importância a nós, camponeses. Só o Birou...
— O Birou?...
— O senhor conde sabe... aquele espírito forte... Ele tanto fez, tanto protestou, alegando que tinha direito a uma recompensa, e exigindo um cargo, que resolveram recompensá-lo, e foi incorporado na 12ª Brigada. Agora é cabo no Regimento de Caçadores de Gevaudan.
Como se encontravam ambos junto do presépio iluminado, Gérard, apontando ao fidalgo os rostos extasiados das crianças, que passavam de mão em mão os brinquedos tirados da árvore, acrescentou:
— Olhe, senhor conde, estou certo de que o Birou daria as divisas todas para estar aqui esta noite conosco...


(G. Lenôtre, Lendas de Natal — Verbo, Lisboa, 1966)