CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

sábado

A CABRA DO SENHOR SÉGUIN - Alphonse Daudet

Ao Sr. Pierre Gringoire, poeta lírico em Paris.


Tu serás sempre o mesmo, meu pobre Gringoire! Como! Oferecem-te um lugar de cronista em um bom jornal de Paris, e tu tens a petulância de recusar... Mas, olha-te, infortunado rapaz! Olha essa blusa esburacada, esses calções esfarrapados, essa face magra que apregoa a fome. Eis aí, portanto, aonde te conduziu a paixão das belas rimas! Eis o que te valeram dez anos de leais serviços nas páginas do senhor Apolo... Enfim, não tens vergonha?
Faze-te então cronista, imbecil! Faze-te cronista! Ganharás facilmente belos escudos, terás teu talher no Brébant e poderás exibir-te, nos dias de estréia, com uma pluma nova no barrete.
Não? Não queres? Pretendes permanecer livre à tua maneira, até o fim... Pois bem, escuta um pouco a história da cabra do Sr. Séguin. Verás o que se ganha em querer viver livre.
O Sr. Séguin nunca tivera sorte com suas cabras; elas arrebentavam a corda, fugiam para a montanha, e lá no alto o lobo as comia. Nem os carinhos do dono, nem o medo do lobo, nada as retinha. Eram, parece, cabras independentes, querendo a qualquer preço a amplidão e a liberdade. O estimável Sr. Séguin, que nada compreendia do caráter dos seus animais, estava consternado e dizia:
— É o fim. As cabras se aborrecem em minha casa. Não conservarei nenhuma delas.
Entretanto ele não se desencorajava, e depois de perder seis cabras do mesmo modo, comprou uma sétima; somente, desta vez, teve o cuidado de a prender enquanto muito nova, para que ela se habituasse melhor a permanecer em sua casa.
Ah! Gringoire, como era bonita a cabrinha do Sr. Séguin! Como era linda, com seus olhos doces, sua barbicha de sub-oficial, seus cascos negros e luzentes, seus cornos zebrados e seus longos pelos brancos, que a cobriam como uma sobrepeliz! Era quase tão encantadora quanto o cabritinho de Esmeralda — lembras-te, Gringoire? E, ademais, dócil, carinhosa, deixando-se ordenhar sem se agitar, sem meter os pés no balde. Um amor de cabrinha...
O Sr. Séguin tinha atrás de casa um curral cercado de plantas espinhentas. Foi lá que ele pôs a nova pensionista. Ligou-a com uma canga de madeira ao mais belo sítio do prado, tendo o cuidado de lhe deixar bastante corda. De vez em quando ia ver se ela se encontrava bem. A cabra se achava muito feliz, e pastava a erva de tão boa vontade, que o Sr. Séguin estava encantado.
— Enfim — pensava o pobre homem — eis aí uma que não se aborrecerá em minha casa!
O Sr. Séguin se enganava; a cabra aborreceu-se. Um dia ela disse para si mesma, contemplando a montanha:
— Como se deve estar bem lá em cima! Que prazer saltar entre a vegetação, sem esta maldita corda que esfola o pescoço da gente!... É bom para o burro ou para o boi, pastar num cercado!... As cabras necessitam de largueza.
A partir desse momento a erva do cercado lhe pareceu insípida. Sobreveio-lhe o tédio. Emagreceu. O leite diminuiu. Dava dó vê-la arrastar a corda o dia inteiro, a cabeça voltada para o lado da montanha, a venta aberta, fazendo “mé”... tristemente.
O Sr. Séguin notou logo que a cabra tinha qualquer coisa, mas não sabia o que era. Uma manhã, quando acabava de a ordenhar, a cabra voltou-se e lhe disse no seu patoá:
— Escute, Sr. Séguin, eu enlangueço em sua casa, deixe-me ir à montanha.
— Ah! Meu Deus!... Ela também! — gritou o sr. Séguin estupefato.
E com o susto deixou tombar o balde. Depois, sentando-se na relva ao lado de sua cabra:
— Como, Branquinha, queres deixar-me!
— Sim, Sr. Séguin.
— É pasto que te falta aqui?
— Oh! não, Sr. Séguin.
— Talvez estejas amarrada a distância curta demais. Queres que te alongue a corda?
— Não vale a pena, Sr. Séguin.
— Então, que é que te falta? Que queres?
— Quero ir para a montanha, Sr. Séguin.
— Mas, desgraçada, tu não sabes que há o lobo na montanha? Que farás quando ele vier?
— Dar-lhe-ei chifradas, Sr. Séguin.
— O lobo pouco se importa com teus chifres. Ele comeu cabritas muito mais chifrudas do que tu... Sabes da pobre velha Renaude, que estava aqui no ano passado, uma senhora cabra forte e malvada como um bode? Ela lutou com o lobo a noite inteira... depois, pela manhã, o lobo a comeu.
— Ai dela! Pobre Renaude!... Isso não importa, Sr. Séguin, deixe-me ir à montanha.
— Divina Providência!... — disse o Sr. Séguin. — Que acontece às minhas cabras? Outra mais que o lobo vai comer... Pois bem, não... Eu te salvarei, a teu pesar, velhaca! E, porque receio que rompas a corda, vou fechar-te no estábulo, e ali ficarás sempre.
Em seguida o Sr. Séguin levou a cabra para um estábulo todo escuro, cuja porta fechou com duas voltas da chave. Infelizmente, esquecera-se da janela; e, mal virou as costas, a pequena se foi...
Tu ris, Gringoire? Santo Deus! Acredito; tu és do partido das cabras, e estás contra o bom Sr. Séguin... Vamos ver se rirás todo o tempo.
Quando a cabra branca chegou à montanha, foi um encantamento geral. Jamais os velhos pinheiros tinham visto nada assim tão lindo. Receberam-na como a uma pequena rainha. Os castanheiros se curvavam até o chão, para acariciá-la com a ponta de seus ramos. As giestas douradas se abriam à sua passagem e a cheiravam quanto podiam. A montanha inteira fez-lhe festa.
Imagina, Gringoire, como nossa cabra era feliz! Nada de corda, nada de canga... nada que a impedisse de pular, de pastar à sua maneira... E quanta erva havia lá! Até lhe ultrapassava os chifres, meu caro!... E que erva! Saborosa, fina, recortada, feita de mil plantas... Era muito diferente do capim do cercado. E as flores, então!... Grandes campânulas azuis, digitalis de púrpura, com longos cálices, toda uma floresta de flores selvagens, transbordando sucos capitosos.
A cabra branca, meio farta, espojava-se lá dentro com as pernas para o ar e rolava ao longo das encostas, de cambulhada com as folhas caídas e as castanhas. Em seguida saltava repentinamente e endireitava-se sobre as patas. Upa! Ei-la que partia, cabeça para a frente, através de cerrados e capoeiras, ora sobre um pico, ora no fundo de uma ravina, no alto, embaixo, por toda parte. Dir-se-ia haver dez cabras do Sr. Séguin na montanha.
É que a Branquinha não tinha medo de nada.
Ela franqueava de um salto grandes torrentes, que lhe atiravam à passagem poeira úmida de espuma. Então, toda gotejante, ia estender-se em alguma rocha plana e se fazia secar ao sol. Uma vez, avançando à beira de um planalto, com uma flor de citisa entre os dentes, vislumbrou lá embaixo, bem lá embaixo, na planície, a casa do Sr. Séguin com o cercado atrás. Isso a fez rir até as lágrimas.
— Como é pequeno! — disse ela. — Como pude permanecer lá dentro?
Pobrezinha! Ao ver-se empoleirada tão alto, acreditava-se pelo menos tão grande quanto o mundo.
Em resumo, foi uma linda jornada para a cabra do Sr. Séguin. Pelo meio do dia, correndo à direita e à esquerda, ela caiu no meio de um bando de gamos que despedaçavam, para comer, uma vinha selvagem. Nossa pequena corredora, de roupa branca, causou sensação. Deram-lhe o melhor lugar na vinha, e todos esses senhores foram muito galantes... Parece mesmo — isto deve ficar entre nós, Gringoire — que um jovem gamo de pelagem negra teve a sorte de agradar a Branquinha. Os dois namorados se perderam entre o bosque, durante uma ou duas horas; e se quiseres saber o que disseram, vai perguntar às fontes tagarelas que correm invisíveis sob o musgo.
De repente o vento esfriou. A montanha se tornou violeta. Era a noite...
— Já! — disse a cabrinha, e se deteve muito espantada.
Embaixo, os campos estavam inundados de bruma. O cercado do Sr. Séguin desaparecia na penumbra, e da casinhola só se via o teto com um pouco de fumaça. Ela ouviu as campainhas de um rebanho que se recolhia, e sentiu a alma muito triste. Um corujão que voltava ao ninho a esfrolou com as asas, ao passar. Ela estremeceu... depois foi um brado na montanha:
— Uuuuu! Uuuuu!
Ela pensou no lobo; o dia inteiro a louca não tinha pensado nisso... No mesmo instante, uma trompa soou bem longe, no vale. Era esse bom Sr. Séguin, que tentava um último esforço.
— Uuuu! Uuuu! Uuuu! — fazia o lobo.
— Volta! Volta! — gritava a trompa.
Branquinha teve vontade de voltar, mas lembrando-se da canga, da corda, da cerca do curral, pensou que já agora não mais se podia afazer àquela vida, e que era melhor ficar.
A trompa não soou mais...
A cabra ouviu atrás de si um rumor de folhas. Voltou-se, e viu na sombra duas orelhas curtas, muito direitas, com dois olhos que reluziam... Era o lobo.
Enorme, imóvel, sentado sobre os quartos traseiros, estava ali, olhando para a cabrinha branca e saboreando-a por antecipação. Como sabia que a comeria, o lobo não se apressava; somente, quando ela se voltou, ele se pôs a rir maldosamente.
— Ah! Ah! A cabrinha do Sr. Séguin! — e passou a grossa língua vermelha sobre as beiçolas de cogumelo.
Branquinha sentiu-se perdida... Por instantes, lembrando-se da história da velha Renaude, que se tinha batido a noite toda para ser devorada pela manhã, disse para si mesma que talvez fosse melhor deixar-se comer imediatamente. Depois, tendo mudado de idéia, caiu em guarda, a cabeça baixa e o chifre para a frente, como corajosa cabra do Sr. Séguin que era. Não que tivesse esperança de matar o lobo — as cabras não matam o lobo — mas unicamente para ver se poderia resistir tanto tempo quanto a Renaude...
Então o monstro avançou, e os pequenos chifres começaram a dança.
Ah! a valente cabrinha, como lutava com todas as forças! Mais de dez vezes (eu não minto, Gringoire) ela forçou o lobo a recuar para retomar alento. Durante essas tréguas de um minuto, a gulosa colhia às pressas um brotinho da erva querida, depois retornava ao combate, com a boca cheia. Isso durou toda a noite. De quando em quando a cabra do Sr. Séguin olhava as estrelas dançarem no céu claro, e dizia consigo mesma:
— Oh! tomara que eu resista até a madrugada...
Uma após outra, as estrelas se extinguiram. Branquinha redobrou as chifradas, o lobo as dentadas... Um pálido clarão apareceu no horizonte... O canto enrouquecido do galo subiu de uma fazenda.
— Enfim! — disse o pobre animal, que não esperava senão pelo dia para morrer.
E ela estendeu-se por terra em sua bela pelagem branca, toda malhada de sangue... Aí o lobo se atirou sobre a cabrinha e a devorou.
Adeus, Gringoire!
A história que ouviste não é um conto de minha invenção. Se algum dia vieres à Provença, nossos caseiros te falarão freqüentemente da cabro de moussu Séguin, que se battègue touto la neui emé loup, e piei, lou loup la mangé — A cabra do Sr. Séguin, que se bateu toda a noite com o lobo, e depois, pela manhã, o lobo a devorou.
Ouves-me bem, Gringoire?
E piei, lou loup la mangé.


(Alphonse Daudet, “Contos” – Cultrix, SP, 1993)

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