tag:blogger.com,1999:blog-56027640827447928442024-02-08T16:44:36.137-03:00CONTOS BEM CONTADOSContos literários de vários autores da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, muito útil em estabelecimentos de ensino e para leitura em família.LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comBlogger74125tag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-13291218750390255832008-06-26T10:45:00.000-03:002008-06-26T10:47:03.310-03:00UM INGRATO - Artur AzevedoVieira havia levado a vida inteira remando contra a maré. Por fim conseguiu reunir algum dinheiro, não se sabe como, e abriu uma modestíssima loja de cigarros na Rua dos Ourives. Dava para viver, mas, como se sabe, não se precisa de muita coisa para viver. Morava com a mulher num quartinho ao lado da modesta loja, e Dona Maricota cozinhava, lavava e passava a roupa do marido e de alguns conhecidos, pois não tinham filhos.<br /> Pensando na vida e esperando os clientes, Vieira estava certo dia encostado no balcão da loja enquanto a mulher preparava o almoço, como de costume, quando entrou apressadamente um velho, meio congestionado, quase sem poder falar. Sentou-se num banquinho que ali havia, queixando-se silenciosamente e apenas murmurando algumas palavras. O traje do recém-chegado indicava pessoa de boa posição social. Solícito, Vieira indagou:<br /> — Que tem o senhor, cavalheiro? O que aconteceu?<br /> O velho levantou os olhos e só conseguiu dizer, com voz apagada:<br /> — Água!<br /> Vieira foi imediatamente buscar um copo d’água, que o velho bebeu, reanimando-se um pouco. E perguntou de novo:<br /> — O que aconteceu?<br /> — Não sei... Uma coisa que me deu de repente... Mas felizmente não foi nada, como o Sr. pode ver. Bastou esse copo d’água para sentir-me bem.<br /> — Não quer alguma outra coisa? Talvez um pouco de água com limão...<br /> — Não, nada. Muito obrigado.<br /> O velho permaneceu ainda ali uns vinte minutos, conversando amistosamente com Vieira, perguntando-lhe sobre seus negócios, sua família, sua vida. Quando saiu, apertou-lhe com vigor a mão, renovando seus agradecimentos.<br /> Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.<br /> Voltou no dia seguinte, e Vieira lhe apresentou Dona Maricota, com quem simpatizou bastante. Inteiraram-se então de que o assíduo visitante era o Comendador Matos, negociante aposentado, solteiro e sem filhos, que vivia de rendas, sem outra ocupação além da cobrança dos aluguéis e da renda dos altos negócios. Quando o Comendador saiu, Vieira disse à esposa:<br /> — Parece que esse sujeito está disposto a vir aqui todos os dias, para entreter-se em conversa.<br /> — É uma amizade que não devemos desprezar — respondeu a mulher, de espírito prático.<br /> — Por quê?<br /> — Que pergunta! Pode ser que encontremos nesse homem um protetor...<br /> — Que protetor coisíssima nenhuma! Um passatempo aborrecidíssimo, é o que você deve dizer. Não percebeu que ele nem sequer fuma? Não comprou até agora nem uma caixa de fósforos...<br /> Entretanto, quando o Comendador voltou no dia seguinte, encontrou uma cadeira, no lugar do banquinho. Precisamente nesse dia ficaram estabelecidas definitivamente as relações de amizade. A partir desse momento o velho foi infalível, sempre chegava na mesma hora. Não se passou muito tempo, e começou a ser-lhe oferecida durante a visita uma xícara de café, que se tornou um hábito durante os seguintes cinco anos.<br /> Quando não aparecia na hora de costume, Dona Maricota se inquietava:<br /> — O Comendador não veio. Estará doente? Por que não vais à casa dele? Pode ser que esteja doente, não acha?<br /> Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher:<br /> — Já está aqui o Comendador, Maricota. Traga já o cafezinho...<br /> As relações chegaram a ser tão estreitas, que uma vez Vieira queixou-se da falta de freguesia. O velho lhe disse:<br /> — É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo.<br /> — Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos.<br /> — Isso foi antigamente. Hoje em dia as lojas de cigarros têm que estar bem instaladas, com pelo menos duas portas, boas estantes, tudo bem ordenado e bem sortido.<br /> — É bem verdade, mas tudo isso custa dinheiro, e não vejo como possa consegui-lo.<br /> — Não se preocupe por questões de dinheiro. Procure uma casa melhor, em pleno centro, e deixe o resto por minha conta.<br /> Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar.<br /> O casal mudou-se para o segundo andar do mesmo imóvel, e o Comendador emprestou o dinheiro para a compra dos móveis. Quando foi assinar os papéis, Vieira perguntou se o Comendador tinha interesse em ser seu sócio.<br /> — Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados.<br /> Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva.<br /> — Quero ser o padrinho! — indicou o Comendador quando foi informado.<br /> O excelente homem já era considerado pessoa da casa, seguindo sempre o seu próprio ritmo, tomando o cafezinho sentado no mesmo local, já agora numa cadeira estofada, para mais comodidade.<br /> A pontualidade com que foram pagas as quinze promissórias fez aumentar a amizade do velho, pois colocava acima de tudo a probidade comercial, a honra da firma. Quando o menino foi batizado, o padrinho deu-lhe um bonito enxoval e fez para ele um seguro de vida. Desde então era raro a criança não receber todos os dias um presente ou um agrado. De vez em quando, Vieira e Maricota também eram obsequiados.<br /> — Comendador, por que tantos cuidados? O senhor não deve incomodar-se tanto conosco.<br /> — Não me incomodo, absolutamente. Vocês são minha única família. Não tenho ninguém mais no mundo, a não ser vocês.<br /> — Bendito aquele copo de água! — dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade.<br /> — Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos.<br /> Não sabendo como manifestar seu reconhecimento por tão inverossímil proteção, Vieira mandou pintar a óleo um retrato do Comendador, que colocou na sala de visitas.<br /> Mas tudo se acaba. Um dia o comendador deixou de aparecer na loja, que tão assiduamente visitava durante tantos anos. Vieira correu imediatamente à casa onde morava, e o encontrou seriamente doente. Quis levá-lo para sua casa, onde seria tratado com desvelo familiar, mas o comendador resistiu. Era seu propósito recolher-se a um asilo para idosos, e foi necessário respeitá-lo. A doença se agravou. Embora não lhe faltasse nenhum dos recursos da medicina, morreu depois de quinze dias.<br /> Vieira e Dona Maricota imaginavam — era natural — que ambos e o pimpolho seriam os únicos herdeiros, já que o velho não tinha família. Enganaram-se. O testamento, o único que apareceu entre os papéis do velho, e que foi divulgado depois do enterro, só contemplava no benefício o afilhado, com dez contos de réis. O resto era dividido entre hospitais e asilos. Nem o próprio Vieira tinha um único centavo no testamento.<br /> — Estranho! — bramiu Dona Maricota. — Nunca imaginei que aquele homem não nos deixasse ricos. Por que nos dizia então que éramos os únicos membros de sua família? Que mal empregados os oitenta mil réis da coroa que lhe mandamos!<br /> — Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria!<br /> — Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!<br /> — Tenho até vontade de destruir o retrato — disse indignado o marido.<br /> — Não! Não vale a pena. Esse retrato pode ser comprado por alguma das instituições que herdarão o dinheiro desse velho tacanho.<br /> Lançou um olhar severo sobre o retrato do Comendador, que sorria compassivamente, enquanto exclamava decepcionada:<br /> — Este mundo está cheio de ingratos!...<br /><br /><br />(Artur Azevedo, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br />www.fatoshistoricos.com.br<br />www.mundodanobreza.com.brLEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-39463979237864321082008-06-26T10:42:00.000-03:002008-06-26T10:44:56.400-03:00SÓ QUANDO ESTIVEREM JUNTOS - AnônimoEra uma vez três amigos que viajaram a um país estrangeiro. Chegando a uma cidade, entraram numa casa de banhos que pertencia a uma anciã. Queriam banhar-se, e disseram à mulher:<br /> — Prepara-nos um banho com tudo o que for necessário.<br /> Antes de entrar na sala de banhos, os três homens confiaram à anciã todo o seu dinheiro, mas fizeram expressamente a recomendação de que só lhes devolvesse o dinheiro quando os três estivessem juntos. Ela prometeu cumprir suas instruções, e eles entraram na sala de banhos.<br /> Ocorre que a mulher havia preparado tudo, mas se esquecera do pente. Quando se deram conta dessa falta, decidiram que um deles saísse para buscá-lo. O escolhido saiu e dirigiu-se à mulher:<br /> — Meus companheiros me encarregaram de pedir-te o nosso dinheiro.<br /> — Só o entregarei quando os três estiverem reunidos, conforme vós mesmo me exigistes.<br /> — São os meus próprios amigos que o desejam.<br /> Então os dois se aproximaram da porta do quarto de banhos, ele entrou e disse aos companheiros:<br /> — A velha está aí fora, e quer saber se pode entregá-lo a mim.<br /> Lá de dentro eles disseram em voz alta:<br /> — Senhora, pode entregar a ele.<br /> A anciã foi então buscar o dinheiro e o entregou ao homem que fora buscar com ela o pente, e este em seguida fugiu.<br /> Os outros dois esperaram em vão a volta do companheiro. Depois de muito tempo saíram, perguntaram por ele, e a anciã lhes disse:<br /> — Ele veio buscar comigo o dinheiro, eu o entreguei de acordo com a ordem que vós me destes, e em seguida ele fugiu.<br /> — Nós não lhe autorizamos a entrega do nosso dinheiro, mas apenas a do pente que nos faltava para o banho.<br /> — O que ele me pediu foi o dinheiro, e não falou nada de pente.<br /> Os dois homens decidiram levá-la ante o juiz, relataram o ocorrido, e concluíram:<br /> — Senhor, nós havíamos ordenado a esta mulher que só entregasse o dinheiro quando nós três estivéssemos juntos, e ela o entregou ao nosso outro companheiro sozinho. Portanto, ela tem a obrigação de nos devolver o dinheiro.<br /> O juiz concordou com eles, e ordenou:<br /> — Tens a obrigação de entregar-lhes o dinheiro.<br /> — Eu já o entreguei.<br /> — Mas contrariaste a ordem deles e o entregaste quando não estavam todos reunidos. Portanto, eles têm o direito de receber de ti o dinheiro.<br /> A anciã saiu dali aflita. Enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto, encontrou um menino, que lhe perguntou:<br /> — Por que choras, senhora?<br /> Ela contou ao menino a causa do seu pranto, e este lhe disse:<br /> — Se eu a ajudar, a senhora me dará um dinheiro para comprar balas?<br /> — Se conseguires um meio de me livrar dessa aflição, eu te darei quantas balas quiseres.<br /> — Pois então a senhora vai voltar ante o juiz e falar com ele do seguinte modo — e expôs como ela devia argumentar com o juiz.<br /> Satisfeita, a anciã apresentou-se ante o juiz e lhe disse:<br /> — Senhor, como sabeis, estes homens me confiaram o dinheiro sob a condição de o devolver somente quando os três estivessem juntos. Acontece, no entanto, que só estão aqui dois deles. Eu só poderei devolver o dinheiro quando estiver também o amigo deles, de acordo com as instruções que eles me deram.<br /> O juiz então sentenciou:<br /> — Ide buscar o vosso amigo, e só então recebereis o dinheiro.<br /><br /><br />(R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br />www.fatoshistoricos.com.br<br />www.mundodanobreza.com.brLEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-54421000745088194862008-06-26T10:40:00.000-03:002008-06-26T10:42:13.799-03:00QUEM CONTA UM CONTO... - Machado de AssisEu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé, dizem os tomistas, alivia o cérebro. A briga de galos é o Jóquei-Clube dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.<br /> E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é um tipo comum, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer, as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.<br /> Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é, tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.<br /> O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.<br /><br />* * *<br /><br /> Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.<br /> Era um modelo do gênero. Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira, como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.<br /> Não, senhor.<br /> Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o Ministério pedira demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.<br /> Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e, se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:<br /> — Então, parece que os homens...<br /> Os circunstantes perguntavam logo:<br /> — Que é? Que há?<br /> Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:<br /> — É o Ministério que pediu a demissão.<br /> — Ah! Sim? Quando?<br /> — Hoje.<br /> — Sabe quem foi chamado?<br /> — Foi chamado o Zezinho.<br /> — Mas por que caiu o Ministério?<br /> — Ora, estava podre.<br /> Etc. etc.<br /> Ou então:<br /> — Morreram como vieram.<br /> — Quem? Quem? Quem?<br /> Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:<br /> — Os ministros.<br /> Suponhamos agora que se tratasse de uma pessoa qualificada que devia vir no navio: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck. Luís da Costa puxava os punhos negligentemente, e em vez de dizer com simplicidade:<br /> — Veio no navio de hoje o príncipe Bismarck.<br /> Ou então:<br /> — O Thiers chegou no navio.<br /> Voltava-se para um dos circunstantes:<br /> — Teria chegado o navio?<br /> — Chegou — dizia o circunstante.<br /> — O Thiers veio?<br /> — Veio.<br /> Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa — razão principal do seu ofício.<br /><br />* * *<br /><br /> Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando muito, singular.<br /> Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? — perguntava o poeta da “Jovem Cativa”. Eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro. Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu ofício.<br /> Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado, como homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos e soltou secamente estas palavras:<br /> — Então fugiu a sobrinha do Gouveia? — disse ele, rindo.<br /> — Que Gouveia?<br /> — O Major Gouveia — explicou Luís da Costa.<br /> Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.<br /> — O Major Gouveia da Cidade Nova? — perguntou o desconhecido ao noveleiro.<br /> — Sim, senhor.<br /> Novo e mais profundo silêncio.<br /> Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de soltar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do Major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.<br /> O silêncio era sepulcral.<br /> O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão. Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:<br /> — E quando foi esse rapto?<br /> — Hoje de manhã.<br /> — O~h!<br /> — Das oito para as nove horas.<br /> — Conhece o Major Gouveia?<br /> — De nome.<br /> — Que idéia forma dele?<br /> — Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita...<br /> — Conhece-a?<br /> — Ainda ontem a vi.<br /> — Ah! A segunda circunstância...<br /> — A segunda circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata, dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o Major impedi-lo?<br /> — O Major tinha razões fortes — observou o desconhecido.<br /> — Ah! Conhece-o?<br /> — Sou eu.<br /> Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois, sem saber o que iria sair dali. Deste modo correram cinco minutos.<br /><br />* * *<br /><br /> No fim de cinco minutos, o Major Gouveia continuou:<br /> — Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.<br /> Luís da Costa ficou amarelo.<br /> — Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...<br /> Luís da Costa ostentou todas as cores do arco-íris.<br /> — Então? — disse o Major, passados alguns instantes de silêncio.<br /> — Sr. Major — disse com voz trêmula Luís da Costa — eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.<br /> — É justamente o que eu desejo saber.<br /> — Não me lembro...<br /> — Veja se se lembra — disse o Major amigavelmente.<br /> Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.<br /> As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o Major, que não era homem de graça, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.<br /> — Ah! agora me lembro — disse de repente Luís da Costa — foi o Pires.<br /> — Que Pires?<br /> — Um Pires que eu conheço muito superficialmente.<br /> — Bem, vamos ter com o Pires.<br /> — Mas, Sr. Major...<br /> O Major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com um ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do Major, não sem tentar ainda um:<br /> — Mas, Sr. Major...<br /> — Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?<br /> — Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.<br /> — Vamos ao escritório.<br /> Luís da Costa cumprimentou os outros e saiu ao lado do Major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O Major recusou o charuto, dobrou o passo, e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.<br /><br />* * *<br /><br /> — O Sr. Pires?<br /> — Foi à Secretaria da Justiça.<br /> — Demora-se?<br /> — Não sei.<br /> Luís da Costa olhou para o Major, ao ouvir estas respostas do criado do Sr. Pires. O Major disse, fleumaticamente:<br /> — Vamos à Secretaria da Justiça.<br /> E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do Major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o Major o levasse até lá antes de jantar. Tudo estava perdido.<br /> Chegaram enfim à Secretaria, bufando como dois touros. Os empregados vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhe que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.<br /><br /> — Voltemos à Rua dos Pescadores — disse pacificamente o Major.<br /> — Mas, senhor...<br /> A única resposta do Major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.<br /> Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o Major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.<br /> O Major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.<br /> Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.<br /> O Major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.<br /> — Não há dúvida — disse ele — iremos à Praia Grande.<br /> — Isso é impossível! — clamou Luís da Costa.<br /> — Não é tal — respondeu tranqüilamente o Major — temos barca, e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.<br /> — Mas, senhor, a esta hora...<br /> — Que tem?<br /> — São horas de jantar — suspirou o estômago de Luís da Costa.<br /> — Pois jantaremos antes.<br /> Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do Major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela. Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foram o começo da reconciliação. Quando veio o café e um charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.<br /> O Major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.<br /> No trajeto, o Major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o Major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como as soubesse.<br /><br />* * *<br /><br /> O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em São Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.<br /> O Major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda, e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:<br /> — Vamos a São Domingos.<br /> — Vamos a São Domingos — suspirou Luís da Costa.<br /> A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.<br /> Na casa do Dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir. Enfim vieram.<br /> — Está cá o Sr. Pires?<br /> — Está, sim senhor — disse o moleque.<br /> Os dois respiraram. O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable. Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão de Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente o Major Gouveia.<br /> — Queiram sentar-se.<br /> — Perdão — disse o Major — mas não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.<br /> O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou. O Major voltou-se então para Luís da Costa e disse:<br /> — Fale.<br /> Luís da Costa fez das tripas coração, e exprimiu-se nestes termos:<br /> — Estando eu hoje na loja de Paula Brito, contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. Major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O Major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia, e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim encontramo-lo.<br /> Durante o discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações de espanto e de medo. Um ator, um pintor ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.<br /> — Espero as suas ordens — disse o Major, vendo que o homem não falava.<br /> — Mas que quer o senhor? — balbuciou o Sr. Pires.<br /> — Que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?<br /> — Não disse tal — acudiu o Sr. Pires — o que eu disse foi que me constava ser bonita.<br /> — Vê? — disse o Major, voltando-se para Luís da Costa.<br /> Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto. O Major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:<br /> — Mas vamos lá: de quem ouviu a notícia?<br /> — Foi de um empregado do tesouro.<br /> — Onde mora?<br /> — Em Catumbi.<br /> O Major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.<br /> — Pode retirar-se — disse o Major.<br /> Luís da Costa apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível Major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.<br /> Estava livre.<br /><br />* * *<br /><br /> Ficaram a sós o Major e o Sr. Pires.<br /> — Agora — disse o primeiro — há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do tesouro... Como se chama?<br /> — O bacharel Plácido.<br /> — Estou às suas ordens. Tem passagem de carro paga.<br /> O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:<br /> — Mas eu não sei... se...<br /> — Se?<br /> — Não sei se me é possível nesta ocasião...<br /> — Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.<br /> — Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...<br /> — O quê?<br /> — Adiar?<br /> — Impossível.<br /> O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.<br /> — Acredite, Sr. Major — disse ele, concluindo — que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.<br /> O Major inclinou-se.<br /> O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável Major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.<br /> A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O Major parecia uma estátua; não falava, e raras vezes olhava para o seu companheiro. A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete fumando sete cigarros por hora.<br /> Enfim chegaram a Catumbi. Desta vez foi o Major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.<br /> O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido, verdadeiramente plácido.<br /> O Sr. Pires explicou o objeto da visita.<br /> — E é verdade que eu lhe falei de um rapto — disse o bacharel — mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do Major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto do rapto.<br /> — E quem lhe disse isto, Sr. bacharel? — perguntou o Major.<br /> — Foi o Capitão de Artilharia Soares.<br /> — Onde mora?<br /> — Ali em Mataporcos.<br /> — Bem — disse o Major. E voltando-se para o Sr. Pires: — agradeço-lhe o incômodo; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.<br /> O Sr. Pires não esperou novo discurso. Despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro, deu dois ou três socos em si mesmo, e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa:<br /> — É bem feito! Quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado, e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!<br /><br />* * *<br /><br /> O bacharel Plácido encarou o Major sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o Major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:<br /> — Queira agora acompanhar-me à casa do Capitão Soares.<br /> — Acompanhá-lo! — exclamou o bacharel surpreendido.<br /> — Sim, senhor.<br /> — Que pretende fazer?<br /> — Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.<br /> O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias, para ir a Mataporcos, era um absurdo. A nada atendia o Major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.<br /> — Mas há de confessar que é longe — observou este.<br /> — Não seja essa a dúvida — acudiu o outro — mande chamar um carro, que eu pago.<br /> O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.<br /> — Então? — disse o Major, ao cabo de algum tempo de silêncio.<br /> — Refleti. É melhor irmos a pé. Eu jantei há pouco, e preciso digerir. Vamos a pé...<br /> — Bem, estou às suas ordens.<br /> O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o Major, com as mãos nas costas, passeava na sala, meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.<br /> Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala quando o Major ia já tocar a campainha para chamar alguém.<br /> — Pronto?<br /> — Pronto.<br /> — Vamos!<br /> — Deus vá conosco.<br /> Se uma pipa andasse, seria o bacharel Plácido. Já porque a gordura não lho consentia, já porque desejaria pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.<br /> Com este era impossível o Major empregar o sistema de reboque, que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar, era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.<br /> Tudo isto punha o Major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.<br /> O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do Capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o Major batia palmas na escada.<br /> — Quem é? — perguntou uma voz açucarada.<br /> — O Sr. Capitão? — disse o Major Gouveia.<br /> — Eu não sei se já saiu — respondeu a voz. — Vou ver.<br /> Foi ver, enquanto o Major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:<br /> — O Sr. quem é?<br /> — Diga que o bacharel Plácido — acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.<br /> A voz foi dar a resposta, e daí a dois minutos voltou e disse que o bacharel Plácido podia subir. Subiram os dois.<br /> O Capitão estava na sala, e veio receber à porta o bacharel e o Major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.<br /> — Queiram sentar-se.<br /> Sentaram-se.<br /><br />* * *<br /><br /> — Que mandam nesta casa? — perguntou o Capitão Soares.<br /> O bacharel usou da palavra:<br /> — Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. Major Gouveia.<br /> — Não me lembro. Que foi? — disse o Capitão, com uma cara tão alegre como a de um homem a que estivessem torcendo o pé.<br /> — Disse-me você — continuou o bacharel Plácido — que o namoro da sobrinha do Sr. Major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...<br /> — Perdão! — interrompeu o Capitão — agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.<br /> — Não foi?<br /> — Não.<br /> — Então, que foi?<br /> — O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. Sa. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.<br /> — Sim, há alguma diferença — concordou o bacharel.<br /> — Há — disse o Major, deitando-lhe os olhos por cima do ombro.<br /> Seguiu-se um silêncio.<br /><br /> — Enfim, senhores — disse ele — ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. Capitão dizer-me de quem ouviu isso?<br /> — Do desembargador Lucas.<br /> — É meu amigo.<br /> — Tanto melhor.<br /> — Acho impossível que ele dissesse isso — disse o Major, levantando-se.<br /> — Senhor! — exclamou o Capitão.<br /> — Perdoe-me, Capitão — disse o Major, caindo em si — há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado, por culpa de um amigo...<br /> — Nem ele disse por mal — observou o Capitão Soares — Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa.<br /> — É verdade — concordou o Major —, o desembargador não seria capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso de alguém.<br /> — É provável.<br /> — Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.<br /> — Agora?!<br /> — Indispensável.<br /> — Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?<br /> — Sei. Iremos de carro.<br /> O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.<br /> — Não podíamos adiar isso para depois? — perguntou o Capitão logo que o bacharel saiu.<br /> — Não, senhor.<br /> O Capitão estava em sua casa; mas o Major tinha tal império na voz ou no gesto, quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O Capitão não teve remédio senão ceder. Preparou-se, meteram-se num carro, e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.<br /> O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.<br /> Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que, em menos de uma hora, lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava — figuradamente falando — e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.<br /> O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes:<br /> — Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.<br /> — Vamos, tenha paciência — dizia-lhe o coadjutor — vá ver o que é, que eu o espero. Talvez esta interrupção corrija a sorte dos dados.<br /> — Tem razão, é possível — concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.<br /><br />* * *<br /><br /> Na sala, teve a surpresa de achar dois conhecidos.<br /> O Capitão levantou-se, sorrindo, e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O Major levantou-se também, mas não sorria.<br /> Feitos os cumprimentos, foi exposta a questão. O Capitão Soares apelou para a memória do desembargador, de quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do Major Gouveia.<br /> — Recordo-me ter-lhe dito — respondeu o desembargador — que a sobrinha do meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...<br /> O Major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia diminuindo à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.<br /> — Muito bem — disse ele — a mim não basta esse dito; desejo saber de quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.<br /> — De quem o ouvi?<br /> — Sim.<br /> — Foi do senhor.<br /> — De mim!<br /> — Sim, senhor! Sábado passado.<br /> — Não é possível.<br /> — Não se lembra que me disse, na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...<br /> — Ah! Mas não foi isso! O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.<br /> — Nada mais? — perguntou o capitão.<br /> — Nada mais.<br /> — Realmente, é curioso.<br /> O Major despediu-se do desembargador, levou o Capitão até Mataporcos e foi direito para casa, praguejando contra si e todo o mundo.<br /> Ao entrar em casa, já estava mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama, ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:<br /> — Quem conta um conto...<br /><br /><br />(Machado de Assis, in O. Pimentel, Antologia de contos – Livraria Cultural Ltda., Rio, 1961)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br />www.fatoshistoricos.com.br<br />www.mundodanobreza.com.brLEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-69337233157403759502008-06-26T10:38:00.000-03:002008-06-26T10:40:27.241-03:00QUAL DOS NOVE? - Maurício JokaiHavia nesta cidade de Budapest um pobre sapateiro, que nunca conseguiu enriquecer com o trabalho de suas mãos. Não se pense que todo mundo havia decidido deixar de usar botas, nem que os governantes da cidade o tivessem obrigado a vender os calçados pela metade do preço. O honrado sapateiro trabalhava tão bem, que seus clientes se queixavam de quase nunca conseguir gastar as botas que ele fazia. Choviam as encomendas, todos lhe pagavam pontualmente, e nunca ninguém pensou sequer em desaparecer sem pagar a conta.<br /> Apesar disso o sapateiro João jamais conseguia levantar a cabeça. Ao contrário, esteve tentado muitas vezes a jogar-se ao rio para morrer afogado. Claro que isso era apenas uma forma de desabafo, porque João era bom cristão, e um cristão não se suicida, por mais que o destino o maltrate.<br /> João não conseguia nunca viver com folga, porque Deus o havia abençoado de outro modo na família, e com grande abundância: todos os anos, com exata regularidade, sua mulher lhe dava ora um filho, ora uma filha, sempre pletóricos de força e saúde.<br /> — Deus meu! — suspirava João toda vez que chegava um novo filho.<br /> Suspirou com o sexto, com o sétimo e com o oitavo. Será que nunca chegaria ao ponto final?<br /> Veio ao mundo o nono, morreu a mulher, e o ponto final chegou.<br /> João se encontrou sozinho neste vasto mundo com seus nove filhos, o que já é bastante. Dois ou três iam à escola, outros aprendiam pouco a pouco a andar, mas ainda havia os menores, que ele tinha de carregar nos braços, dar de comer, preparar o mingau... Além de alimentar, vestir e lavar, tinha de os entreter. Reconheçamos que a carga era pesada, mas com um pouco de prática acaba tornando-se suportável.<br /> Tudo tinha de ser multiplicado por nove. Nove pares de calçados, nove pedaços de pão, nove roupas; nove camas, a casa toda cheia delas; todas com cabeças humanas pequenas e grandes, ruivas ou morenas.<br /> — Deus meu! Deus meu! — suspirava com freqüência o honrado artesão, às vezes depois da meia-noite, enquanto manejava infatigavelmente a sovela para alimentar os corpos de tantas almas, ou tratava de acalmar um ou outro de seus filhos que não queria dormir tranqüilo.<br /> Eram nove, nem mais nem menos, mas não tinha do que queixar-se. Os nove se desenvolviam maravilhosamente: todos bonitos, decididos, educados, com as mãos e pernas bem formadas e estômago de ferro. Ele preferia os nove pedaços de pão a um frasco de remédios, nove camas encostadas umas às outras a um ataúde entre elas. Que Deus mantenha o ataúde longe de pais e mães sensíveis, mesmo que ao perder um filho fiquem ainda com oito. Também é verdade que os filhos do sapateiro João não tinham nenhuma intenção de morrer, e estavam predestinados a caminhar pela vida. Resistiam a tudo: chuva, neve, pão seco...<br /> Um dia, véspera de Natal, João voltou para casa muito tarde, depois de intermináveis voltas pela cidade. Fora entregar encomendas em domicílio de clientes, recebendo por elas o suficiente para pagar as compras de matéria-prima e atender aos gastos caseiros. Quando se dirigia apressadamente para casa, viu que em todas as esquinas se haviam instalado quiosques cheios de artigos para presente, que os pais iam comprando para os filhos. Deteve-se em algum desses quiosques, pensando: “Devo comprar algum desses presentes?” Mas ao lembrar-se de que tinha nove filhos, duvidou. Comprar para todos, era acima das suas possibilidades. Comprar um só, suscitaria invejas e disputas. E resolveu fazer outra coisa. Decidiu fazer-lhes outro presente de Natal, algo bonito e magnífico, que não se quebrasse nem se gastasse, e que os alegraria a todos, sem que houvesse possibilidade de nenhum ficar privado do presente.<br /> Quando se encontrou no meio daquelas nove cabeças, disse:<br /> — Meus filhos... um, dois, três, quatro... vejo que estão todos aqui. Vocês sabem que hoje é véspera de Natal. É uma grande festa, uma festa magnífica! Hoje não vamos trabalhar mais, vamos festejar esta noite.<br /> Os meninos ficaram tão contentes com a proposta, que parecia que a casa vinha a baixo.<br /> — Esperem, fiquem quietos. Vou ensinar a vocês uma linda canção de Natal. Sei uma que é preciosa, e guardei-a para esta noite. É um presente que eu lhes dou.<br /> O grupo de pequenos abraçou as pernas e o pescoço do pai, quase derrubando-o, por causa da canção de Natal.<br /> — Prestem atenção! Todos alinhados! Assim: os maiores atrás e os menores na frente.<br /> Alinharam-se como os tubos de um órgão, e os dois menores se sentaram, um no joelho e o outro no braço do pai.<br /> — Agora, silêncio. Primeiro eu vou cantar sozinho, e depois vocês todos cantam comigo.<br /> Com ar grave e recolhido, depois de tirar seu gorro verde, João se pôs a cantar a belíssima canção que começa assim:<br /> Cantemos no nascimento<br /> Do dulcíssimo Jesus...<br /> Os meninos e meninas maiores aprenderam logo a melodia, mas os menores estropiavam a letra e o ritmo. Por fim todos acabaram aprendendo. E foi uma grande alegria quando os nove começaram a cantar, com suas frescas vozes, essa bela canção que um dia os próprios anjos cantaram, e que talvez cantem ainda hoje, depois que as vozes alegres e harmoniosas de nove almas inocentes pediu um eco celestial.<br /> É certo que nas alturas houve regozijo com o canto dos meninos. Mas é certo também que no andar de cima o regozijo não era tão grande. Morava ali, sozinho em nove cômodos, um velho solteirão, que comia no primeiro, sentava-se no segundo, fumava no terceiro e dormia no quarto. Só Deus sabe o que poderia fazer nos demais cômodos o ricaço, sem mulher e sem filhos.<br /> Naquela noite esse homem estava sentado no seu oitavo cômodo, e se perguntava por que sua comida não era saborosa, por que os dias e as noites não tinham nada interessante, por que aqueles amplos cômodos não eram suficientemente ventilados, por que não podia conciliar o sono no seu leito macio. Começou então a ouvir as vozes de João e seus filhos, cantando a canção que convidava todos a alegrar-se. A princípio não quis prestar atenção, pensando que acabariam logo. Mas quando começaram a cantá-la pela décima vez, perdeu a paciência. Jogou de lado o cigarro apagado e desceu à casa do sapateiro.<br /> — O senhor é o sapateiro João?<br /> — Às suas ordens, senhor. Está interessado em um par de botas, ou algum outro tipo de calçado?<br /> — Não o procurei por este motivo. Pelo que vejo, não lhe faltam filhos.<br /> — Grandes e pequenos, senhor. E são numerosos quando tenho de lhes dar alimentos.<br /> — E mais numerosos ainda me parecem quando se põem a cantar. Olhe, Sr. João, quero que seja um homem feliz. Dê-me um dos seus filhos. Eu o adotarei, e será como meu filho. Darei a ele uma boa educação, e o levarei para viajar comigo por outros países. Será um homem rico e poderá ajudar os demais.<br /> João arregalou os olhos ao ouvir as palavras do ricaço. Tratava-se de dar uma resposta importante. Que pai não se comove, ante a perspectiva de tornar rico um dos seus filhos?<br /> — Então, Sr. João, concorda? É claro que concorda, pois é uma felicidade para o menino. Escolha-o depressa, que preciso voltar para casa.<br /> João começou a escolher:<br /> — Este aqui é o Alexandre. Não o dou, porque é bom estudante, e com o tempo vai ser um grande sábio. Esta é menina, e certamente o Sr. não quer uma menina. Este aqui já me ajuda no trabalho, e não posso prescindir dele. Zequinha é a cara da mãe, e tem de ficar comigo. Paulo? Não, pois era o preferido da mãe, e ela não descansaria tranqüila se o desse a um estranho. Estes dois são ainda menores, e o Sr. não teria o que fazer com eles.<br /> Ao terminar a conta, ainda não se havia decidido. Voltou a começar pelos menores, e o resultado foi idêntico. Impossível escolher, impossível dar um deles, pois gostava muito de todos.<br /> — Vamos, meninos, vocês mesmos têm que escolher. Quem quer sair desta casa para tornar-se pessoa importante? Quem quer ir-se agora?<br /> Enquanto assim falava, o pobre sapateiro estava a ponto de desfazer-se em lágrimas. Mas os meninos, enquanto ele os incentivava, foram todos esconder-se atrás do pai. Um se agarrava na mão, outro nos joelhos, outro no avental de couro, para que o ricaço não os visse.<br /> Por fim João não conseguiu dominar-se mais, inclinou-se para eles e os abraçou, chorando, e os meninos não demoraram a imitar o exemplo do pai.<br /> — Impossível, senhor! Não posso. Sinto, mas não posso dar os meus filhos a ninguém, já que Deus os deu a mim.<br /> O homem rico respondeu que não tinha intenção de impor sua vontade, e pediu a João que lhe fizesse ao menos um serviço insignificante: que não continuasse cantando com seus filhos, e em troca disso lhe deu uma nota de cem libras. João, que nunca tivera em mãos uma nota desse valor, estava maravilhado.<br /> O vizinho voltou para sua casa, enquanto João, depois de muito admirar a nota, guardou-a timidamente na gaveta e se calou. A meninada se calou também, pois estava proibido cantar. Os maiores se sentaram nas cadeiras e tratavam, embora sem convicção, de tranqüilizar os menores: não se pode cantar, porque o homem rico do andar de cima nos ouviria.<br /> O próprio sapateiro, silencioso, batia com o pé no chão. Acabou afastando bruscamente o mais novo, o preferido da sua mulher, que insistia em aprender a bela canção de Natal:<br /> — Está proibido cantar.<br /> Depois sentou-se no seu banco de trabalho e se pôs a cortar e recortar com tanta atenção, que de repente se deu conta de que estava cantando involuntariamente.<br /> Cantemos no nascimento<br /> Do dulcíssimo Jesus...<br /> Bateu com a mão na boca, e seu rosto ficou vermelho de cólera. Deu um murro na mesa, abriu a gaveta e retirou a nota. Em seguida correu à casa do vizinho do segundo andar.<br /> — Senhor, que Deus o abençoe! Guarde este dinheiro, se quiser, pois eu não o quero. Prefiro cantar quando tiver vontade. Isso vale para mim muito mais do que cem libras.<br /> Deixou a nota sobre a mesa e voltou correndo para junto dos filhos. Beijou-os um por um, recolocou-os na formação dos tubos de órgão, sentou-se no seu banco de sapateiro, e todos começaram a cantar:<br /> Cantemos no nascimento<br /> Do dulcíssimo Jesus...<br /> Estavam todos contentes, tão contentes que se poderia dizer que a casa era deles.<br /><br /><br />(Maurício Jokai, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br />www.fatoshistoricos.com.br<br />www.mundodanobreza.com.brLEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-57740728269522399632008-06-26T10:36:00.000-03:002008-06-26T10:38:15.865-03:00POR UMA DÚZIA DE OVOS COZIDOS - Ernesto MontenegroEra uma vez um homem, pobre a mais não poder, que resolveu ir às minas tentar a sorte, deixando o quase-nada que lhe restava em casa para o sustento da mulher e dos filhinhos. Andou, andou, e lá um belo dia chegou a um povoado, onde teve de fazer das tripas coração para não pedir alguma coisa com que não o deixassem cair de fome; mas, finalmente, bateu à última porta, onde estava uma mulher sozinha ao pé do braseiro, com o seu gato e as suas galinhas.<br />— A necessidade, patroazinha, me obriga a lhe pedir que me arranje pelo menos alguns ovinhos, que quando eu voltar das minas lhe pagarei bem pagos.<br />Naquele tempo os ovos eram tão baratos, que muitas vezes nem valia a pena ir buscá-los nos chocos; e como a dona da casa tinha o tacho fervendo para tomar o seu mate, tirou um punhado na canastra e os pôs a cozinhar, enquanto rezava três credos.<br />Foi-se o mineiro, muito agradecido com a sua dúzia de ovos, e graças a eles conseguiu chegar até à Descobridora, onde diziam que se estava juntando dinheiro que não era brinquedo.<br />Decorridos uns dez anos, o mineiro viu que já estava rico, e era tempo de voltar para a sua terra e socorrer a família. Porém não se esqueceu de passar no povoado, para cumprir a promessa feita à mulher das galinhas. Em frente à casa, parou a tropinha de burros que vinha tocando.<br />— Não me conhece mais, avozinha? Não se recorda do que lhe prometeu aquele pobre que passou por aqui nas casas, e a quem você deu uma dúzia de ovos? Pois bem: uma destas cargas de prata é para você; escolha a que mais lhe agradar.<br />E despejou umas tantas pratas no chão.<br />A velha já estava com a vista fraca, e muito dura de ouvido. Mas, como sucede a tantos outros, com a idade tinha ficado avarenta:<br />— Como é, moço? Tudo que esses burros levam é prata? E você foi ganhar toda essa prata depois que me pediu fiado os ovos? Hum...<br />A velha não se podia conformar que lhe dessem uma carga, somente uma, quando os burros eram tantos! Não tivesse ela bom coração, e boa minazinha ele teria encontrado!<br />— Quanto tempo faz que lhe vendi esses ovos?<br />— Dez anos, pelo menos. Foi antes do Grande Tremor de Terra.<br />Com uma cara muito azeda, ela voltou-se para o homem:<br />— Então, caro senhor, toda essa prata é minha! Homessa! Já se viu maior desfaçatez: querer contentar-me com uma carguinha... Se em vez de lhe dar ovos eu os tivesse posto a chocar, quantos milhares de dúzias de ovos e de pintos imagina que eu teria agora? Não, senhor, não me venha com espertezas. Então, porque vê a gente vestida de lã, pensa que está tratando com ovelha? Ajude-me a botar esses burros no curral, vamos!<br />E empurrão pra cá, bordoada pra lá, fez entrar os burros e trancou a porta.<br />O mineiro, que era uma pobre alma, não sabia que fazer com o diabo daquela velha. Deitar-lhe abaixo a porta, quando nem ao menos os cães o conheciam, talvez fosse pior — refletiu.<br />Voltando para o centro do povoado, a passos lentos e de cabeça baixa, ouviu alguém lhe perguntar:<br />— Então, amigo, que foi que perdeu?<br />Era um homenzinho de fraque cor de chumbo e nariz muito vermelho, que andava com o chapéu sobre os olhos e meio como se estivesse tocado.<br />Num instante o mineiro lhe contou o que se passava.<br />— Não se aborreça, amigo velho. Olhe, eu sou advogado diplomado, e lhe prometo que amanhã ganhamos a questão. Providencie para que mandem à velha uma citação, lá para as duas da tarde, e me espere no tribunal.<br />E tirou-lhe o último peso que lhe restava, “para completar o pileque”.<br />No outro dia, já a velha estava em presença do juiz, e do rábula nem sinal.<br />— Que faz o seu advogado que não vem? — disse, de muito má cara, o juiz ao pobre mineiro. — Fique sabendo que, se ele não chegar a tempo, eu o condeno, inclusive nas custas.<br />Estão batendo as duas horas, quando entra o rábula, muito vermelho, com o nariz que nem um pimentão.<br />— V. Sa. me perdoe o atraso — disse ele ao juiz —, mas com a pressa que tinha em cozinhar uma cevada para semeá-la...<br />— Vá contar essa história 1a sua avó! — gritou-lhe o juiz, dando na mesa uma pancada, que por pouco não a partiu. — Além de se fazer esperar, o cavalheirinho, ainda por cima, vem rir nas bochechas da gente! Onde já se viu alguém pôr a cozer a semente antes de semeá-la?<br />— Estranho que V. Sa. se aborreça comigo porque lhe digo que estava cozinhando uma cevada para semeá-la, e deixe que esta mulher venha contar-lhe que podia ter tirado milhares de ovos e pintos de uma dúzia de ovos cozidos que deu, há dez anos, a este bom homem.<br />— Como? Estavam cozidos os ovos, senhora? jure dizer a verdade! — gritou-lhe o juiz.<br />— Tal como diz Vossemecê. Melhor ainda: cozidinhos.<br />— Então, moço, pague seu real e meio a esta velha desavergonhada, e leve a sua prata, que muito lhe custou a ganhar — disse o juiz ao mineiro.<br />O mineiro deu uma carga de prata ao rábula, por lhe haver defendido tão bem a questão, e foi com os seus burrinhos para casa, muito contente da vida.<br /><br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 8, p. 318)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br />www.fatoshistoricos.com.br<br />www.mundodanobreza.com.brLEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-19649303509408608662008-06-24T08:55:00.000-03:002008-06-24T08:57:11.068-03:00PLEBISCITO - Artur AzevedoA cena passa-se em 1890.<br />A família está toda reunida na sala de jantar.<br />O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.<br />Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga.<br />Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.<br />Silêncio.<br />De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:<br />— Papai, que é plebiscito?<br />O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir que dorme.<br />O pequeno insiste:<br />— Papai?<br />Pausa:<br />— Papai?<br />Dona Bernardina intervém:<br />— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.<br />O Senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.<br />— Que é? que desejam vocês?<br />— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.<br />— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?<br />— Se soubesse não perguntava.<br />O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:<br />— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!<br />— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.<br />— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?<br />— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.<br />— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!<br />— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...<br />— A senhora o que quer é enfezar-me!<br />— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!<br />— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.<br />— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!<br />— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!<br />— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho”.<br />O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:<br />— Mas se eu sei!<br />— Pois se sabe, diga!<br />— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!<br />E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.<br />No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...<br />A menina toma a palavra:<br />— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!<br />— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!<br />— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.<br />— Sim! sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!<br />Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:<br />— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.<br />O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.<br />— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...<br />A mulher e os filhos aproximam-se dele.<br />O homem continua, num tom profundamente dogmático:<br />— Plebiscito...<br />E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.<br />— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.<br />— Ah! — suspiram todos, aliviados.<br />— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...<br /><br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 6, p. 204)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-67486143889315225592008-06-24T08:54:00.000-03:002008-06-24T08:55:18.267-03:00OS TRINTA E CINCO CAMELOS - Malba TahanPoucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.<br /> Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:<br /> — Não pode ser!<br /> — Isto é um roubo!<br /> — Não aceito!<br /> O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.<br /> — Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?<br /> — É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.<br /> Neste ponto, procurei intervir na questão:<br /> — Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?<br /> — Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.<br /> Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.<br /> — Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.<br /> E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:<br /> — Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.<br /> Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:<br /> — E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.<br /> E disse, por fim, ao mais moço:<br /> — E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.<br /> Numa voz pausada e clara, concluiu:<br /> — Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.<br /> — Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade.<br /> E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:<br /> — Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.<br /> E continuamos a nossa jornada para Bagdá.<br /><br /><br />(Malba Tahan, Seleções - Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-54655681798057560112008-06-24T08:51:00.000-03:002008-06-24T08:52:23.729-03:00O XEQUE BOU-AKAS - Alexandre DumasNo Ferdj-Ouah existe um xeque chamado Bou-Akas-Ben-Acour. Trata-se de um dos nomes mais antigos do país, que aparece na história das dinastias bérberes e árabes de Ibn Khaldoun.<br /> Bou-Akas (o homem de maça), também conhecido como Bou-d’Jenoui (o homem do punhal), é um tipo admirável de beduíno do Leste. Seus ancestrais conquistaram Ferdj-Ouah, e Bou-Akas, após ter consolidado a conquista, reina agora sobre o “belo país”.<br /> O xeque El-Islam-Mohamed-Ben-Fagoune, que fora guindado ao poder pelo marechal Valée, convenceu Bou-Akas a reconhecer o poderio francês. Em sinal de vassalagem, enviou este um cavalo de Gada ao governador, mas recusou-se a ir pessoalmente. Temia ser feito prisioneiro dos franceses.<br /> O xeque tem quarenta e nove anos de idade e veste-se à maneira cabila: um manto de lã com cinturão de couro e um capuz debruado de corda fina. Traz à bandoleira um par de pistolas e um “flissa” cabila ao lado esquerdo; do pescoço pende-lhe um pequeno punhal negro. À sua frente caminha um negro, levando-lhe o fuzil, e ao seu lado cabriola um grande galgo.<br /> Quando alguma tribo vizinha às doze tribos por ele comandadas lhe causa qualquer dano, Bou-Akas desdenha de marchar contra os ofensores e contenta-se com enviar seu negro à vila. Este exibe ali o fuzil do xeque, e o dano fica reparado.<br /> Bou-Akas tem a seu serviço duzentos ou trezentos Tolbas, que lêem o Corão ao povo. Todo peregrino que, em viagem a Meca, atravesse o país, recebe subsídios de três francos e permissão para demorar-se no Ferdj-Ouah, como hóspede do xeque, pelo tempo que deseje. Todavia, quando chega ao conhecimento de Bou-Akas qualquer denúncia de ser o peregrino algum impostor, ele envia seus guardas à procura do culpado. Uma vez localizado este, os guardas o deitam de bruços e aplicam-lhe cinqüenta bastonadas à planta dos pés.<br /> Há ocasiões em que o xeque tem trezentos convidados ao jantar. Ao invés de compartilhar das iguarias, fica a caminhar em meio aos convidados, apoiado a um bordão, supervisando o serviço dos criados. Mais tarde, caso tenha sobrado alguma coisa, come também, mas sempre por último.<br /> Seu domínio se estende de Mali a Raboue, da ponta sul da Babour até duas milhas aquém de Gigelli. Quando o governador de Constantinopla — o único homem de quem reconhece o poder — encaminha-lhe algum viajante, sendo este pessoa de prol ou portador de boas recomendações, Bou-Akas entrega-lhe seu fuzil, seu cão ou seu punhal. Se recebe o fuzil, o viajante o pendura a tiracolo; se recebe o cão, prende-o por uma correia; se recebe o punhal, ata-o ao pescoço. De posse de qualquer desses talismãs, todos investidos de determinado grau de honra, pode atravessar incólume as doze tribos. Onde quer que se encontre, recebe hospedagem, já que é um protegido de Bou-Akas.<br /> Ao deixar o Ferdj-Ouah, pode o viajante entregar o punhal, o fuzil ou o cão a qualquer árabe que encontre. Este, se estiver caçando, abandonará a caça; se estiver lavrando, largará a charrua; se estiver entre seus familiares, deixá-los-á, para ir entregar ao xeque seus pertences.<br /> O pequeno punhal de cabo negro é tão conhecido, que emprestou seu nome a Bou-Akas, também conhecido por Bou-d’Jenoui, o homem do punhal. Com ele Bou-Akas apressa o curso da justiça, quando degola algum culpado.<br /> Ao assumir o governo, Bou-Akas encontrou o país infestado de ladrões, mas logo descobriu um meio de liquidá-los. Vestiu-se de mercador e deixou cair uma moeda de ouro na rua, tendo o cuidado de não perdê-la de vista. Uma moeda de ouro não permanece muito tempo assim abandonada. Quando alguém a apanhava e a colocava no bolso, Bou-Akas fazia um sinal ao seu “chaousse”, também disfarçado de mercador, e este, sabedor das intenções do amo, encarregava-se de agarrar o culpado e de decapitá-lo na mesma hora.<br /> Hoje os beduínos costumam dizer que uma criança de doze anos pode atravessar o Ferdj-Ouah com uma coroa de ouro à cabeça, sem que ninguém estenda a mão para roubá-la.<br /> O pequeno punhal do xeque goza de muita reputação entre os pastores das montanhas cabilas. Estes, ao se queixarem de alguma cabra muito vadia, costumam gritar-lhe:<br /> — La guela ou Djinoni Bou-Akasli oulli fi gabta — que quer dizer: Que a morte te leve, e que seja a navalha de Bou-Akas aquela a ser embainhada.<br /> Bou-Akas tem grande respeito pelas mulheres. Assim, estabeleceu no Ferdj-Ouah um costume: quando as mulheres estão enchendo na fonte os seus cantis de pele de bode, os homens devem desviar-se, para não encontrá-las.<br /> Certo dia Bou-Akas — que depois do que relatamos poderia bem ser chamado “o pai da justiça” — ouviu falar de um cádi de uma de suas doze tribos que pronunciava sentenças dignas do rei Salomão. Como um novo Harum-al-Raschid, quis ajuizar pessoalmente da verdade do que lhe contavam. Trajou-se, pois, como simples cavaleiro, sem levar nenhum dos atributos ou armas que o distinguiam, e sem qualquer comitiva pôs-se a caminho, montando um cavalo de raça que, não obstante, nada trazia que pudesse denunciá-lo como o de tão grande chefe.<br /> Aconteceu que no dia em que chegou à povoação onde o cádi fazia justiça era dia de feira, e em conseqüência dia de julgamento. Aconteceu ainda (em tudo protege Maomé seu servo!) que, à entrada da cidade, encontrou Bou-Akas um aleijado, e este, agarrando-se ao seu albornoz como o pedinte ao manto de São Martinho, rogou-lhe uma esmola.<br /> Bom muçulmano que era, Bou-Akas deu-lha, mas o aleijado continuou agarrado ao seu manto.<br /> — Que queres mais? — perguntou o xeque. — Já te dei a esmola que pediste.<br /> — Sim — retrucou o aleijado — mas a lei não diz apenas “darás esmola a teu irmão”. Diz também: “Farás por ele tudo quanto lhe pedir”.<br /> — Pois bem. Que mais posso fazer por ti?<br /> — Poderás evitar que eu, pobre réptil, seja pisoteado pelos homens e pelos animais, coisa que não deixará de acontecer se eu for rastejando até a vila.<br /> — E como poderei impedir isso?<br /> — Levando-me à garupa de teu cavalo até a praça do mercado, onde tenho meu ponto.<br /> — Pois seja — concordou Bou-Akas. E erguendo o aleijado, ajudou-o a montar.<br /> Apesar de algumas dificuldades, a operação foi coroada de êxito. Os dois cavaleiros atravessaram a povoação, não sem excitar a curiosidade geral, e chegaram finalmente à praça.<br /> — É aqui que querias vir? — perguntou Bou-Akas ao mendigo.<br /> — Sim.<br /> — Então desce.<br /> — Desce tu.<br /> — Se é para te ajudar a desmontar, descerei.<br /> — Não, é para deixar-me o cavalo.<br /> — Como, deixar-te meu cavalo?<br /> — Porque o cavalo me pertence.<br /> — Pois sim! É o que veremos.<br /> — Escuta e reflete — disse o aleijado.<br /> — Escutarei e refletirei depois.<br /> — Estamos na povoação do cádi justiceiro.<br /> — Eu sei.<br /> — Vais apresentar queixa contra mim ao cádi?<br /> — É possível que o faça.<br /> — Acreditas então que ele, ao ver-nos — tu com as pernas sãs que Deus te deu, eu com estas pobres pernas aleijadas — não decidirá que o cavalo pertence àquele que mais necessita dele?<br /> — Se proferir tal sentença, não poderá ser chamado de justiceiro, pois ter-se-á enganado no seu julgamento.<br /> — Chamam-no de cádi justiceiro, mas não o chamam de cádi infalível.<br /> — Por minha fé — disse o xeque consigo mesmo. — Eis uma excelente oportunidade de pôr o juiz à prova. Vamos à presença do cádi.<br /> E Bou-Akas, levando o cavalo pela brida, a cuja garupa estava agarrado o mendigo como um macaco, abriu caminho por entre a turba até onde o cádi, à moda do Oriente, fazia justiça publicamente.<br /> Duas causas estavam em litígio, e iriam ser julgadas antes. Bou-Akas tomou lugar entre a assistência. A primeira das causas era entre um “taleb” e um camponês — entre um sábio e um trabalhador. Tratava-se da mulher do sábio, que o camponês roubara e jurava ser sua. A mulher, por sua vez, não reconhecia nem a um nem a outro como seu marido, ou melhor, reconhecia ambos, o que tornava a situação extremamente embaraçosa.<br /> O juiz ouviu as duas partes, refletiu por um instante e disse:<br /> — Deixai-me a mulher e voltai amanhã.<br /> Após saudarem o juiz, ambos os litigantes se retiraram.<br /> Chegou a vez da segunda causa. Esta envolvia um açougueiro e um vendedor de azeite. O primeiro tinha as vestes todas manchadas de sangue, e o segundo tinha-as enodoadas de óleo. Declarou o açougueiro:<br /> — Fui comprar uma jarra de azeite a este homem. Para pagá-lo, tirei da bolsa um punhado de moedas. As moedas o tentaram, e ele agarrou-me o pulso. Chamei-o de ladrão, mas ele não quis soltar-me. Viemos juntos ao tribunal, eu com as moedas fechadas na mão, ele agarrado ao meu pulso. Juro por Maomé que este homem mente quando diz que o dinheiro lhe pertence: estas moedas são minhas, muito minhas.<br /> Disse o mercador de azeite:<br /> — Este homem veio comprar azeite na minha loja. Depois de encher a jarra, perguntou-me: “Tens troco para uma peça de ouro”? Enfiei a mão no bolso e tirei-a cheia de moedas, que coloquei sobre a soleira da porta. Ele então se apoderou do dinheiro e já ia fugir, quando comecei a gritar “pega ladrão!” e agarrei-o pelo pulso. Apesar dos meus gritos, não quis devolver-me o dinheiro. Por isso trouxe-o até aqui, para que o julgues. Juro por Maomé que este homem mente quando me acusa de roubo: estas moedas são minhas, muito minhas.<br /> O juiz meditou por uns instantes.<br /> — Deixai o dinheiro — disse o juiz — e voltai amanhã.<br /> O açougueiro depositou as moedas numa dobra do manto do cádi. Feito isto, ambos os queixosos, depois de terem saudado o juiz, se retiraram.<br /> Chegou a vez de Bou-Akas e o aleijado.<br /> — Senhor cádi — declarou o xeque — vim de uma vila distante, com o propósito de comprar mercadorias neste mercado. À porta da povoação, encontrei este aleijado que me pediu esmola e rogou-me em seguida que o levasse à garupa do meu cavalo até o mercado. Alegou que, se se arriscasse às ruas, pobre réptil que é, corria o risco de ser pisoteado por passantes ou animais. Dei-lhe a esmola que pedira e ajudei-o a montar. Quando chegamos à praça, recusou-se a descer, mentindo que o cavalo lhe pertencia. Ameacei-o com a justiça, mas ele respondeu-me: “Bah! O cádi é homem sensato demais para não compreender que o cavalo pertence àquele que não pode andar a pé”. Eis o caso em toda a sua verdade, senhor juiz. Juro por Maomé!<br /> Depois disso, o mendigo declarou:<br /> — Senhor cádi, eu vinha ao mercado desta cidade para tratar de negócios, montado em meu cavalo, quando vi este homem sentado à beira da estrada. Parecia semi-agonizante. Aproximei-me dele e perguntei-lhe se lhe ocorrera algum acidente. “Nada me aconteceu — respondeu. — Estou apenas exausto, e se o senhor é caritativo, poderia bem levar-me até a vila, onde tenho negócios a tratar. Quando chegarmos à praça do mercado, desmontarei e rogarei a Maomé que dê, a quem me prestou socorro, tudo quanto possa desejar”. Assenti ao seu pedido, e grande foi o meu espanto quando, chegados à praça, ele ordenou-me que desmontasse, dizendo que o cavalo lhe pertencia. Diante disso, resolvi trazê-lo ao tribunal, para que julgues o caso. Eis toda a verdade. Juro por Maomé!<br /> O cádi fez ambos repetirem seus depoimentos. Depois de refletir por alguns instantes, ordenou:<br /> — Deixem-me o cavalo e voltem amanhã.<br /> O cavalo foi entregue ao cádi, e ambos os litigantes, após terem reverenciado o juiz, se retiraram.<br /> Na manhã seguinte, não apenas os interessados, como grande número de curiosos, compareceram ao tribunal. A importância e a dificuldade das causas em litígio explicam tamanha afluência de espectadores. O cádi, seguindo a mesma ordem da véspera, chamou em primeiro lugar o “taleb” e o camponês, e disse ao “taleb”:<br /> — Eis tua mulher. Podes levá-la, ela te pertence.<br /> Depois, voltando-se para os guardas:<br /> — Aplicai cinqüenta bastonadas à planta dos pés desse homem — acrescentou, indicando o camponês.<br /> O “taleb” levou consigo a mulher, enquanto os guardas cumpriam as ordens do cádi.<br /> Logo em seguida foi julgada a segunda causa. O mercador do azeite e o açougueiro aproximaram-se, e o cádi disse ao açougueiro:<br /> — Eis teu dinheiro. Tu o tiraste realmente da tua bolsa; jamais pertenceu a esse homem — finalizou, apontando para o mercador de azeite.<br /> O açougueiro levou suas moedas, e os guardas aplicaram cinqüenta bastonadas à planta dos pés do mercador.<br /> Foi convocada a terceira causa. Bou-Akas e o aleijado se aproximaram.<br /> — Ah! sois vós — disse o cádi.<br /> — Sim, senhor juiz — responderam ambos, a uma só voz.<br /> — Reconhecerias teu cavalo em meio a vinte outros? — perguntou o cádi a Bou-Akas.<br /> — Certamente — respondeu este.<br /> — E tu?<br /> — Sem dúvida alguma — retorquiu o aleijado.<br /> — Vem então comigo — ordenou o cádi, dirigindo-se ao xeque.<br /> Saíram juntos em direção à cavalariça. Bou-Akas reconheceu seu cavalo entre vinte outros.<br /> — Muito bem — disse o cádi. — Vai esperar-me no tribunal e manda-me teu adversário.<br /> Bou-Akas voltou ao tribunal, e tendo cumprido o mandado do juiz, sentou-se à espera.<br /> O mendigo chegou à cavalariça tão depressa quanto lhe permitiam as pernas aleijadas. Mas seus olhos eram sãos, e ele apontou sem hesitação para o cavalo certo.<br /> — Muito bem — disse o cádi, mais uma vez. — Vem encontrar-me no tribunal.<br /> O cádi tomou lugar à esteira, e todos, impacientes, ficaram à espera do aleijado. Este chegou, ofegante, ao cabo de cinco minutos.<br /> — O cavalo é teu — disse o juiz, dirigindo-se a Bou-Akas. — Podes ir buscá-lo na cavalariça.<br /> Depois, voltando-se para os guardas:<br /> — Apliquem cinqüenta bastonadas no traseiro desse homem — ordenou, indicando o aleijado.<br /> Homem justo que era, levara em consideração as condições físicas do réu e mudara o local de aplicação do castigo.<br /> Bou-Akas foi buscar seu cavalo, enquanto os guardas aplicavam as cinqüenta bastonadas no aleijado. Depois voltou à presença do cádi.<br /> — Não estás satisfeito? — perguntou-lhe este.<br /> — Pelo contrário — replicou o xeque. — Mas queria ver-te para saber por que inspiração divina praticas justiça. Pois não duvido que os dois outros julgamentos tenham sido tão justos quanto o meu. Não sou nenhum mercador, sou Bou-Akas, xeque do Ferdj-Ouah. Ouvi falar de ti e quis conhecer-te pessoalmente.<br /> O cádi inclinou-se para beijar a mão de Bou-Akas, mas este o deteve.<br /> — Vamos, estou impaciente por saber como descobriste que a mulher era do sábio, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.<br /> — Foi muito simples, senhor — replicou o cádi. — Viste que retive comigo, durante uma noite, a mulher, o dinheiro e o cavalo. À meia-noite, ordenei que a mulher fosse despertada e trazida à minha presença. Mandei-a então limpar o meu tinteiro. Dando provas de que estava habituada a fazer tal serviço, ela o apanhou, tirou-lhe o algodão, lavou-o corretamente, colocou-o de novo no estojo e encheu-o de tinta. Disse comigo mesmo: “Se fosse mulher de camponês, não saberia como limpar um tinteiro”.<br /> — Seja — admitiu Bou-Akas. — Isso quanto à mulher. E quanto ao dinheiro?<br /> — Com o dinheiro foi diferente. Notaste como o mercador estava sujo de óleo, e sobretudo como tinha as mãos engorduradas?<br /> — Sim, notei.<br /> — Pois bem. Coloquei o dinheiro numa jarra cheia d’água, e hoje de manhã examinei-a. Nenhuma gota de óleo subira à superfície da água. Convenci-me, pois, de que as moedas pertenciam ao açougueiro. Se fossem do mercador, estariam engorduradas, e nesse caso haveria gota de óleo à superfície.<br /> — Muito bem! — concordou Bou-Akas, inclinando a cabeça. — Isso quanto ao dinheiro. E quanto ao meu cavalo?<br /> — Ah! Foi mais difícil. Até esta manhã estava ainda embaraçado para decidir.<br /> — Quer dizer que o aleijado não reconheceu a montaria?<br /> — Ele a reconheceu, e de modo tão positivo quanto o senhor.<br /> — E então?<br /> — Quando levei cada um de vós à estrebaria, não pretendia saber se reconheceríeis o cavalo, e sim se o cavalo os reconheceria. Quando te aproximaste do cavalo, ele relinchou. Quando foi a vez do aleijado, o cavalo escoiceou. Refleti então: o cavalo pertence àquele que tem boas pernas, e não ao aleijado.<br /> Bou-Akas meditou por longo tempo. Por fim, disse:<br /> — O Senhor está contigo. Deverias ocupar o meu lugar, e eu o teu. Contudo, embora eu esteja certo de que és digno de ser xeque, não estou muito certo de ser eu capaz de desempenhar satisfatoriamente o cargo de cádi.<br /><br /><br />(Alexandre Dumas, Histórias fabulosas – Cultrix, SP)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-52326877897459187302008-06-24T08:49:00.000-03:002008-06-24T08:50:56.695-03:00O VINHO DERRAMADO - Jakes de BasinHavia na Normandia um fidalgo bastante pobre, que só podia dispor de umas poucas moedas para comprar diariamente seu alimento. Uma certa manhã, verificou que só tinha em casa um pão, e decidiu comprar um pouco de vinho com algumas moedas de pouco valor. Foi à taberna próxima e pediu vinho. O taberneiro, que era um homem grosseiro e desagradável, serviu-lhe de má vontade um copo de vinho. Colocou-o na mesa tão bruscamente, que derramou quase a metade. Em vez de desculpar-se, disse com insolência:<br /> — O senhor está com sorte. O vinho derramado significa alegria e riquezas.<br /> O fidalgo não quis protestar contra aquele mal educado, pois seria trabalho perdido. Mas achou que de algum modo deveria ajustar essas contas, e pediu que o taberneiro lhe trouxesse um pedaço de queijo. O homem apanhou a moeda bruscamente e foi ao andar de cima buscar o queijo. Enquanto isso o fidalgo levantou-se, abriu a torneira do tonel de vinho e deixou que ele escoasse livremente, formando uma lagoa vermelha no meio da taberna.<br /> Quando o taberneiro voltou e viu o que acontecera, avançou furiosamente sobre o fidalgo. Este se defendeu e conseguiu lançá-lo de encontro ao tonel, que caiu ao chão junto com seu dono, entornando o que restava do vinho. Acudiram vizinhos e soldados, separaram os contendores e os levaram junto ao rei.<br /> O taberneiro falou primeiro e pediu uma indenização. Antes de dar a sentença, o rei quis ouvir também o fidalgo, que narrou o sucedido com toda a veracidade, e acrescentou:<br /> — Senhor, este homem me disse, quando entornou a metade do vinho que me vendera, que isso era sorte minha, pois vinho derramado significa alegria, e que eu me tornaria rico. Pensei então que, se eu me tornaria rico por ter derramado só meio copo de vinho, o bom taberneiro se tornaria muito mais rico e feliz se derramasse meio tonel. Cheio de reconhecimento e gratidão, resolvi então abrir a torneira do tonel, e o resto já conheceis.<br /> O rei e toda a corte se divertiram com a engenhosa justificativa, e o fidalgo foi dispensado sem pagar a pretendida indenização.<br /><br /><br />(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-78239067816962348132008-06-24T08:47:00.000-03:002008-06-24T08:49:20.354-03:00O VILÃO QUE CONQUISTOU O PARAÍSO - Jakes de BasinUm vilão morreu, e com ele aconteceu o que nunca havia acontecido antes e seguramente jamais voltará a acontecer: ninguém ficou sabendo da sua morte, nem no Céu nem no inferno. Como pôde acontecer isso, não sei. O que sei com segurança é que, no momento em que a alma dele se separou do corpo, não havia por ali nem anjos nem diabos para recolhê-la, e com isso o pobre homem ficou sem guia. E também não havia ninguém com atenção posta nele, para proibi-lo de fazer o que bem entendesse com a sua alma, de modo que resolveu por sua própria conta e risco tomar o caminho do paraíso. Não conhecia o caminho, mas viu de longe o arcanjo São Miguel conduzindo uma alma, e o seguiu despistadamente, como quem não quer nada.<br /> Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado. Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:<br /> — Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilães. Portanto, suma-se!<br /> — Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar? Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!<br /> São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder. Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.<br /> — Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.<br /> Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:<br /> — Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?<br /> — Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro? Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito. E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?<br /> São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou. Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:<br /> — É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.<br /> Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões. O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:<br /> — Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania. Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro. Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.<br /> Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros. Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus. Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça. Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.<br /> — Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.<br /> Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:<br /> — Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.<br /> — Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso. Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida. Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer. Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles. Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu. Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.<br /> — Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter freqüentado boa escola.<br /><br /><br />(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-24912955795839777812008-06-23T10:41:00.000-03:002008-06-23T10:43:07.860-03:00O VAPOR DAS PANELAS E O TINIR DAS MOEDAS - NovellinoExistem em Alexandria umas ruas chamadas “dos sarracenos”, que gozam de especial renome porque os árabes que mantêm ali suas tendas são os melhores cozinheiros, e os pratos que eles preparam deliciam os gastrônomos mais exigentes. Os sibaritas, gente verdadeiramente refinada em assuntos de mesa, freqüentam aquelas ruas da mesma forma que, nas cidades elegantes, as pessoas freqüentam as ruas onde há comércio de quadros.<br /> Encontrava-se na sua cozinha um daqueles famosos cozinheiros, chamado Fabrac, quando se apresentou ali, com uma empada na mão, um mendigo sarraceno, que nem de longe tinha dinheiro para pagar o preço de um daqueles pratos famosos. O mendigo segurou a empada sobre a panela em que estava sendo preparado um guisado, e ela foi sendo impregnada pelo cheiroso vapor que dela se desprendia. Depois que a sentiu bem no ponto, retirou-a e se deliciou com o resultado do seu expediente culinário.<br /> Fabrac não gostou daquilo. Não achava correto o procedimento do mendigo, e o intimou:<br /> — Agora você tem de me pagar o que pegou da minha cozinha.<br /> — Da sua cozinha eu não peguei nada. Só usei um pouco do seu vapor.<br /> — Que seja! Você tem de me pagar então o vapor que pegou.<br /> Tanto discutiram, tanto se encresparam, e tal escândalo moveram por causa da estranha reclamação, que a coisa chegou aos ouvidos do sultão. Como o assunto era muito original, o sultão não quis resolvê-lo antes de conhecer a opinião dos dois contendores. Chamou-os à sua presença, e a questão foi planteada pelo cozinheiro nos termos mais enérgicos.<br /> Os sábios da corte do sultão começaram a discutir, argumentar, distinguir e sutilizar, como só os orientais o sabem fazer. Um dizia que o vapor não era do cozinheiro, pois se tratava de coisa que o demandante não podia reter, e se dissipava na atmosfera, além de carecer de substância corpórea e não deter propriedades úteis. Portanto, o mendigo não estava obrigado a pagar.<br /> Outros, pelo contrário, sustentavam que o vapor era uma propriedade inerente ao que estava sendo cozinhado, algo consubstancial com ele, produzido por ele e só atribuível a ele; e como o prato saboroso era um resultado da perícia do cozinheiro e do seu trabalho, sendo do seu trabalho que cada homem deve viver, era lógico que o demandante recebesse um pagamento pelo uso daquele resultado do seu trabalho.<br /> Muitos foram os argumentos, as razões, as argúcias e até os sofismas que se esgrimiram na contenda. Mas nada superou a engenhosa solução dada pelo sultão.<br /> — Senhores, quando o cozinheiro vende a alguém o prato que preparou, é justo que esse resultado material e tangível do seu trabalho seja pago com algo também material e tangível, que são as moedas. Tendo em vista que o vapor é a parte sutil e não tangível do prato que o cozinheiro preparou, deve também ser paga com algo imaterial e intangível.<br /> Dirigindo-se então ao mendigo, perguntou:<br /> — Tens aí algumas moedas?<br /> — Sim, senhor, pois as pessoas me ajudam geralmente com moedas, ainda que de pouco valor.<br /> — Então tome-as dentro de um saquinho, e agite-as bem.<br /> Feito isso, o sultão despediu o demandante, dizendo-lhe:<br /> — Considere-se pago, e muito adequadamente, pois o tinir das moedas é a parte imaterial e intangível delas.<br /><br /><br />(Novellino, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-32679154515263226502008-06-23T10:39:00.001-03:002008-06-23T10:41:26.332-03:00O TIRO - Alexandre PuchkinI<br /><br />Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.<br />Um único civil freqüentava o nosso grupo. Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.<br />Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste.<br />Freqüentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.<br />Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à mesa cinqüenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:<br />— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isto haja acontecido em minha casa.<br />Não tínhamos a menor dúvida acerca das conseqüências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu, dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.<br />No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão. Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.<br />Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente vêem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a adquirir sua influência anterior.<br />Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite infeliz, a idéia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade não fora lavada, essa idéia não me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais voltaram.<br />Os habitantes da capital, viciados pelas distrações, não fazem idéia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.<br />— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também — acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.<br />Com estas palavras saiu, apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para seu lado.<br />Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em que eu ia sair.<br />— Preciso falar com você — disse-me.<br />Fiquei.<br />Os outros foram-se embora, e nós dois permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio. Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.<br />— Talvez nunca mais nos tornemos a ver — disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.<br />Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.<br />— Achou estranho — continuou — que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria perdoado.<br />Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:<br />— É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.<br />Espicaçou-me a curiosidade.<br />— Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?<br />— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso duelo.<br />Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.<br />— Você sabe que eu servi no regimento de hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranqüilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria. Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram, porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.<br />Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”. Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou a minha hora.<br />Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã, e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto) informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga jovem e bonita.<br />— Você já suspeita — continuou — quem é a “pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.<br />Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.<br />Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.<br /><br />II<br /><br />Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Era preferível a solidão.<br />A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.<br />A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.<br />Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.<br />— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao Conde.<br />— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?<br />— Regularmente — repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.<br />— É verdade? — perguntou a condessa com visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos de distância?<br />— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego numa pistola.<br />— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa. já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.<br />O conde e a condessa pareciam contentes de me ouvir.<br />— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.<br />— Quando ele via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada contra a parede!<br />— É incrível! — disse o conde. — Como se chamava ele?<br />— Sílvio, Excelência.<br />— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?<br />— Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa. também o conhecia?<br />— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?<br />— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?<br />— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?<br />— Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Exa.?<br />— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.<br />— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.<br />— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de mim.<br />Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:<br />— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde, fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito — disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”. A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus, errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. — “Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada”. Macha, porém, continuava intranqüila. “Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero — respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.<br />O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na Batalha de Skuliani.2<br /><br /><br />NOTAS:<br /><br />1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na Rússia. Depois desta frase, na tradução de Mérimée (em Alexandre Pouchkine, Le Maître de Poste, La Dame de Pique et autres contes, Paris, Librairie Gründ, 1942, p. 145), figura o trecho seguinte, que não se encontra no texto russo de que nos utilizamos: “Enfim tomei a resolução de me deitar o mais cedo possível e jantar o mais tarde possível, de sorte que resolvi o problema de encurtar as noites e prolongar os dias, e vi que isto era bom”.<br />2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti, descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo, tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.<br /><br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p. 90)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-66816898368464492062008-06-23T10:37:00.000-03:002008-06-23T10:39:23.084-03:00O SEGREDO DE MESTRE CORNILLE - Alphonse DaudetNossa região, meu caro leitor, não foi sempre um sítio morto e sem canções, como é hoje. Antigamente havia aqui um ativo comércio de farinha. De dez léguas ao redor, os granjeiros nos traziam seu trigo para moer. Por toda parte, à volta da aldeia, as colinas estavam cobertas de moinhos de vento. À direita e à esquerda, só se viam asas de moinhos que volteavam ao sopro do mistral; acima dos pinheiros, filas de burricos carregados de sacos, subindo e descendo ao longo dos caminhos; e a semana inteira era o prazer de ouvir o estalido dos chicotes, o ruído seco do tecido dilacerado e o “Dia hue!” dos ajudantes dos moleiros. Aos domingos, íamos em bandos aos moinhos. Lá no alto, os moleiros pagavam o muscat. As moleiras eram belas como rainhas, com seus fichus de rendas e suas cruzes de ouro. Eu levava meu pífaro, e até altas horas da noite dançavam-se farândolas. Aqueles moinhos, como o senhor vê, eram a alegria e a riqueza da nossa terra.<br /> Infelizmente, franceses de Paris tiveram a idéia de estabelecer uma moagem a vapor, na estrada de Tarascon. Tudo belo, tudo novo! O povo tomou o hábito de enviar o trigo aos novos moageiros, e os pobres moinhos de vento ficaram sem trabalho. Durante algum tempo tentaram lutar, mas o moinho a vapor foi o mais forte. Um após outro — pobrezinhos! — foram todos obrigados a fechar. Não se viu mais virem os burrinhos. Nada de vinho!... Nada de farândolas!... O mistral soprava forte, as asas permaneciam imóveis... Depois, um belo dia, a municipalidade mandou demolir todas essas ruínas, e semearam-se em seu lugar vinha e oliveiras.<br /> Entretanto, em meio à derrocada, um moinho se havia mantido e continuava a girar corajosamente, sobre a colina, nas barbas dos moageiros. Era o moinho de Mestre Cornille, este mesmo onde estamos fazendo serão, neste momento.<br /> Mestre Cornille era um velho moleiro. Havia sessenta anos vivia metido na farinha. A instalação das moagens a vapor tinha-o deixado como louco. Durante oito dias viram-no correr pela aldeia, a reunir em tumulto toda a gente à sua volta, e a gritar, com todas as suas forças, que queriam envenenar a Provença com a farinha dessas fábricas.<br /> — Não vão lá embaixo — dizia ele. — Aqueles bandidos, para fazer o pão, servem-se de vapor, que é uma invenção do diabo, enquanto que eu trabalho com o mistral e o transmontano, que são o hálito do bom Deus!...<br /> E ele encontrava, como estas, uma quantidade de belas palavras em louvor dos moinhos de vento, mas ninguém as escutava.<br /> Então, com uma raiva maligna, o velho fechou-se no moinho e viveu completamente só, como um animal selvagem. Nem mesmo quis conservar junto de si a neta, Vivette, uma menina de quinze anos, que, mortos os pais, não tinha ninguém senão o avô no mundo. A pobre pequena foi obrigada a ganhar a vida e a se empregar ora aqui, ora ali, nas fazendas, para a colheita, os bichos-da-seda ou os olivais. Entretanto o avô parecia amá-la muito. Chegava a fazer freqüentemente quatro léguas a pé, na soalheira, para ir vê-la na casa em que trabalhava. Uma vez junto dela, passava horas inteiras a contemplá-la, chorando...<br /> Pensava-se, na região, que o velho moleiro, deixando sair Vivette, agira por avareza. Não o honrava ter consentido que a neta assim deambulasse de uma fazenda para outra, exposta às brutalidades dos vaîles e a todas as misérias que cercam as jovens, nessas condições de trabalho. Achava-se também muito malfeito que um homem da reputação de Mestre Cornille, que até ali era respeitado, fosse agora pelas ruas como um verdadeiro boêmio, pés nus, o boné furado, a faixa da cintura em tiras... O fato é que, no domingo, quando o víamos entrar para a missa, tínhamos vergonha por ele, nós outros os velhos; e Cornille o sentia tão bem, que não mais ousava vir sentar-se no banco dos administradores da paróquia. Ficava sempre no fundo da igreja, junto à pia de água-benta, com os pobres.<br /> Na vida de Mestre Cornille havia alguma coisa obscura. Havia muito tempo ninguém, na aldeia, lhe levava mais trigo, e no entanto as asas do seu moinho iam sempre fazendo seu ofício, como antes. À tarde, encontrava-se pelos caminhos o velho moleiro, tangendo à sua frente o burro carregado de grandes sacos de farinha.<br /> — Boas tardes, Mestre Cornille! — gritavam-lhe os camponeses. — Então, sempre vai indo a moagem?<br /> — Sempre, meus filhos — respondia o velho com ar altivo. — Deus seja louvado, não é trabalho o que nos falta.<br /> Então, se lhe perguntassem de onde podia vir tanto trabalho, ele colocava um dedo sobre os lábios e respondia gravemente:<br /> — Silêncio! Eu trabalho para a exportação...<br /> Jamais se pôde tirar mais nada dele, além disso. Quanto a meter o nariz no seu moinho, nem se devia sonhar. A própria Vivette não entrava ali. Quando se passava diante dele, via-se a porta sempre fechada, as grandes asas sempre em movimento, o velho burro retouçando a erva, sobre a plataforma, e um gatão magro que tomava sol no peitoril da janela e olhava para a gente com um ar maldoso.<br /> Tudo isso sugeria mistério e fazia tagarelar o mundo. Cada um explicava à sua maneira o segredo de Mestre Cornille, mas o rumor geral era que ele tinha em seu moinho mais sacos de dinheiro que de farinha.<br /> Com o decorrer do tempo, entretanto, tudo se descobriu. Eis como:<br /> Fazendo dançar a mocidade com o meu pífaro, percebi um belo dia que o mais velho dos meus rapazes e a pequena Vivette se haviam enamorado um do outro. No fundo, eu não ficara nem um pouco zangado, porque, apesar de tudo, o nome de Cornille era honrado entre nós; e dar-me-ia prazer ver saltitar em minha casa essa linda avezinha de Vivette. Somente, como nossos namorados tinham freqüentemente ocasião de estar juntos, eu quis, de medo de acidentes, regular o negócio imediatamente; e subi até o moinho, para trocar sobre o assunto duas palavras com o avô.<br /> Ah! o velho feiticeiro! Era preciso ver de que maneira me recebeu! Impossível fazê-lo abrir a porta. Expliquei-lhe minhas razões, mal-e-mal, através do buraco da fechadura; e durante o tempo em que lhe falei, ficava esse ladrão de gato magro a soprar como um diabo, acima da minha cabeça. O velho não me deu tempo de terminar, e me gritou muito malcriadamente que retornasse à minha flauta; caso tivesse pressa de casar o rapaz, fosse procurar moças na fábrica...<br /> O senhor imagine como o sangue me subia, ao ouvir essas más palavras. Contudo eu tive até bastante prudência para me conter, e, deixando o velho louco em sua mó, voltei para anunciar aos jovens o meu humilhante insucesso. Os pobres cordeirinhos não podiam acreditar. Pediram-me que lhes permitisse subirem os dois juntos ao moinho, para falar ao avô. Não tive coragem de recusar, e eis os namorados a caminho.<br /> Justamente quando chegaram ao alto, Mestre Cornille acabava de sair. A porta estava fechada com duas voltas; mas o velho, ao sair, deixara a escada fora. Imediatamente os moços tiveram a idéia de entrar pela janela, para verem o que havia nesse famoso moinho.<br /> Coisa singular! O quarto da mó estava vazio. Nem um saco, nem um grão de trigo; nem a menor farinha nos muros, nas teias de aranha... Não se sentia nem mesmo esse bom cheiro quente do grão de trigo triturado, que embalsama os moinhos. A braçadeira estava coberta de pó, e o gatão dormia em cima dela.<br /> A peça de baixo tinha o mesmo ar de miséria e de abandono: um mau leito, alguns trapos sujos, um pedaço de pão sobre um degrau da escada; e, finalmente, num canto, três ou quatro sacos furados, de onde escapavam caliça e areia.<br /> Era o segredo de Mestre Cornille! Era esse entulho que ele passeava à tarde pelas estradas, para salvar a honra do moinho e fazer crer que ali se produzia farinha... Pobre moinho! Pobre Cornille! Havia muito tempo os moageiros tinham-no feito perder os últimos negócios. As asas viravam sempre, mas a mó girava no vazio.<br /> Os mocinhos voltaram, lavados em lágrimas, para me contar o que tinham visto. Senti o coração machucado ao ouvi-los. Sem perder um minuto, corri à casa dos vizinhos, contei-lhes a coisa em duas palavras, e concordamos todos em que era preciso levar imediatamente ao moinho de Cornille tudo que houvesse de grão em nossas casas. Tão logo foi dito, logo se fez. Toda a aldeia se pôs a caminho, e chegamos ao alto com uma procissão de burros carregados de trigo — trigo verdadeiro!<br /> O moinho estava completamente aberto. Diante da porta, Mestre Cornille, sentado num saco de gesso, chorava, com a cabeça entre as mãos. Acabava de perceber, entrando, que durante sua ausência alguém penetrara em sua casa e surpreendera seu triste segredo.<br /> — Pobre de mim! — dizia ele. — Agora não me resta senão morrer... O moinho está desonrado.<br /> E soluçava de cortar o coração, chamando seu moinho por todas as espécies de nomes, falando-lhe como a uma pessoa viva.<br /> Nesse momento os burros chegaram à plataforma, e nós nos pusemos todos a gritar bem alto, como nos belos tempos dos moleiros:<br /> — Eh! Ó do moinho!... Ei! Mestre Cornille!<br /> De súbito os sacos se acumulam diante da porta, e o belo grão ruivo rola abundantemente pela terra, de todos os lados.<br /> Mestre Cornille arregalava os olhos. Apanhara um pouco de trigo no côncavo da velha mão, e dizia, rindo e chorando ao mesmo tempo:<br /> — É trigo!... Senhor Deus! Trigo verdadeiro!... Deixem-me contemplá-lo...<br /> Depois, voltando-se para nós:<br /> — Ah! Eu sabia que vocês voltariam...<br /> Queríamos levá-lo em triunfo até a aldeia.<br /> — Não, não, meus filhos! É preciso, antes de tudo, que eu vá dar de comer ao moinho... Pensem! Há muito tempo que nada lhe pomos entre os dentes!<br /> E todos nós tínhamos lágrimas nos olhos, de ver o pobre velho agitar-se para a direita e para a esquerda, destripando os sacos, vigiando a mó, enquanto o grão arrebentava e a fina poeira do trigo subia para o teto.<br /> Justiça nos seja feita: a partir desse dia, nunca deixamos faltar trabalho ao velho moleiro. Depois, certa manhã, Mestre Cornille morreu, e as asas do nosso derradeiro moinho cessaram de virar, para sempre desta vez. Morto Cornille, ninguém continuou sua obra...<br /><br /><br />(Alphonse Daudet, Contos – Cultrix, SP, 1993)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-57159260977907536172008-06-23T10:35:00.000-03:002008-06-23T10:37:36.695-03:00O SACRISTÃO - Somerset MaughamHouvera um batizado aquela tarde, na igreja de São Pedro, e Albert Edward Foreman ainda estava com sua batina de sacristão. Ele reservava sua melhor indumentária do cargo para casamentos e funerais, e a que usava naquele momento era a segunda melhor. Gostava de usar a batina, por ser um digno símbolo das suas funções, e se sentia insuficientemente vestido sem ela. Cuidava do traje com todo carinho, e durante os dezesseis anos no cargo tivera uma série delas, mas nunca fora capaz de jogá-las fora quando desgastadas pelo uso, guardando-as embrulhadas em papel marrom nas gavetas inferiores do guarda-roupa.<br /> Estava esperando apenas o vigário sair, para poder arrumar tudo, trancar a igreja e ir para casa. O vigário passou para o presbitério, fez uma genuflexão diante do altar e começou a caminhar numa das alas de bancos.<br /> — “Que será que ele está procurando? — pensou. — Ele devia perceber que eu tenho de ir para casa tomar o meu chá”.<br /> O vigário era um homem de seus quarenta anos, rosto corado e enérgico, que assumira o cargo recentemente. Albert ainda lamentava a perda do antecessor, um sacerdote da velha escola que pregava seus sermões monotonamente, com voz argêntea, e freqüentemente jantava com seus paroquianos mais aristocráticos. Gostava das coisas assim, não como esse novo vigário, que queria dar palpite em tudo. Mas Albert era tolerante, e nunca se agastava.<br /> A Igreja de São Pedro era muito bem localizada, com paroquianos muito distintos. O novo vigário estivera antes junto a paroquianos de outro nível social, e era natural que demorasse um pouco a se adaptar aos novos.<br /> — “Mudanças assim contundem as pessoas — pensava Albert, — mas ele acabará aprendendo”.<br /> Quando o vigário se aproximou de Albert a ponto de poder falar-lhe no tom de voz baixo adequado ao lugar sagrado, parou e o chamou.<br /> — Foreman, venha comigo à sacristia, que eu preciso conversar um pouco com você.<br /> — Pois não, senhor.<br /> Enquanto caminhavam juntos, Albert comentou:<br /> — Bonito batizado, senhor. E foi muito interessante como a criança parou de chorar exatamente quando o senhor a tomou nos braços.<br /> — Já notei que isso acontece com freqüência. De fato eu consegui boa prática em lidar com bebês.<br /> Albert ficou um tanto surpreso ao encontrar na sacristia os dois conselheiros da paróquia, que ele não vira entrar. Cumprimentou-os cortesmente. Eles ocupavam o conselho há muito tempo, quase tanto quanto o dele como sacristão. Estavam sentados atrás de uma grande mesa, e o vigário ocupou a cadeira vaga entre os dois. Albert sentou-se do outro lado da mesa, enquanto procurava, com certa intranqüilidade, descobrir o que podia ter acontecido. Lembrava-se de quando o organista criou uma encrenca, e dos aborrecimentos que os três tiveram para acertar as coisas. Numa igreja como a de São Pedro não se podiam admitir escândalos. O vigário tinha um ar de benevolência, mas os outros estavam um tanto a contra-gosto.<br /> — “Ele os deve ter repreendido — pensou o sacristão. — Parece que ele os convenceu a fazer alguma coisa, mas não estão gostando nem um pouco”.<br /> — Foreman — começou abruptamente o vigário, — temos algo bem desagradável a comunicar-lhe. Você está aqui há bastante tempo, e estamos de acordo em que vem desempenhando a contento as suas funções — os outros dois assentiram, com uma inclinação da cabeça. — Mas uma informação surpreendente chegou ao meu conhecimento: você não sabe ler nem escrever.<br /> — O vigário anterior sabia disso — replicou Albert sem nenhum embaraço. — Ele me disse que isso não tinha importância, e que para o gosto dele já havia educação em excesso no mundo.<br /> — Isto é a coisa mais espantosa que eu já ouvi — replicou um dos conselheiros. — Quer dizer que você foi sacristão desta igreja dezesseis anos, sem saber ler nem escrever?<br /> — Eu comecei a trabalhar aos doze anos, senhor. O cozinheiro do meu primeiro emprego tentou ensinar-me, mas parece que eu não tinha embocadura para o negócio. E daí para diante, sempre mexendo com uma coisa e outra, não me sobrava tempo. De fato eu nem queria, pois estou cansado de ver essa gente perdendo tempo em ler, quando podia estar fazendo alguma coisa útil.<br /> — Mas você não se interessa em ler os jornais? Nunca quis escrever uma carta?<br /> — Não, senhor. Vivo muito bem sem isso. De uns tempos para cá os jornais trazem fotografias, e assim eu fico sabendo o que acontece por aí. Além disso, a minha mulher é instruída, e escreve todas as cartas de que eu preciso. Não sou nenhum imprestável por isso.<br /> Os dois conselheiros olhavam para o vigário, um tanto perturbados, e depois baixaram os olhos para a mesa.<br /> — Bem, Foreman. Eu discuti o assunto com os conselheiros, e eles concordaram em que numa igreja do porte da nossa não é admissível um sacristão analfabeto. Quero que você compreenda, Foreman, que não tenho nenhuma reclamação contra você, pois tenho em alto conceito o seu caráter e a sua capacidade, além disso você desempenha bem suas funções. Mas não temos o direito de arriscar-nos a que algum acidente possa ocorrer devido à sua lamentável ignorância. É por motivo de prudência, e também por princípio.<br /> — Você não conseguiria aprender, Foreman? — perguntou um dos conselheiros.<br /> — Não, senhor. É muito tarde para isso. Se eu não consegui quando era criança, acho pouco provável que consiga enfiar as letras na cabeça agora.<br /> — Não queremos agir com brutalidade, Foreman, mas os conselheiros e eu já decidimos dar-lhe três meses de prazo. Se até lá você não conseguir, teremos de dispensá-lo.<br /> — Lamento, senhor, mas isso será perda de tempo. Burro velho não pega marcha. Vivi muitos anos sem saber ler e escrever, e modéstia à parte desempenhei bem o meu papel sem isso. Mesmo que eu tivesse condições para aprender agora, não me interessaria nem um pouco.<br /> — Neste caso, Foreman, lamento dizer-lhe que o dispensamos.<br /> — Sim, senhor. Com prazer eu entregarei meu cargo tão logo o senhor contrate um substituto.<br /> Depois que se despediu dos três e fechou atrás de si a porta da sacristia, Albert relaxou o ar de serena dignidade com que suportara o golpe, e seus lábios se contraíram. Pendurou a batina no armário, vestiu o sobretudo e saiu da igreja pensativo. Não tomou o caminho de casa, onde o esperava o seu chá. De coração oprimido, caminhou lentamente, sem saber de momento o que fazer da vida. Não lhe passava pela cabeça voltar à função de mordomo, depois de ser o dono de si mesmo por tanto tempo, pois quem de fato administrava aquela igreja era ele. Tinha economizado bastante, mas não o suficiente para viver sem trabalhar, e além disso a vida estava cada dia mais cara.<br /> Nunca pensara que viria a enfrentar esse problema. Afinal de contas, os sacristães da Igreja de São Pedro eram vitalícios, tanto quanto os Papas. Pensara até nas elogiosas referências que o vigário faria, no sermão seguinte à sua morte, sobre a dedicação e o caráter exemplar do falecido sacristão Albert Edward Foreman. E suspirou profundamente.<br /> Albert não fumava nem bebia. Ou melhor, não em termos tão absolutos. Tomava uma cerveja no jantar, algumas vezes, e fumava um cigarro quando se sentia preocupado ou cansado. Era bem o caso, naquele momento, e como não costumava trazê-los consigo, começou a olhar de um lado e outro daquela rua movimentada, à procura de uma tabacaria. Havia por ali lojas de todos os tipos, mas nenhuma tabacaria. Foi até o fim da rua, e nada.<br /> — “Que coisa estranha!” — pensou.<br />Para não haver dúvidas, voltou ao início da rua: nenhuma tabacaria.<br /> — “Não é possível que eu seja o único homem, em toda esta rua, que de vez em quando quer dar uma tragada. E acho que um comerciante poderia ter bom lucro com uma loja dessas aqui”.<br /> Albert tomou o caminho de casa, e ia pensando:<br /> — “Estranho, como as idéias ocorrem quando a gente menos espera”.<br /> Em casa, enquanto tomava o chá, a mulher comentou:<br /> — Você está silencioso hoje, Albert.<br /> — Estou pensando.<br /> Examinou os vários aspectos do assunto, e no dia seguinte voltou àquela rua. Encontrou facilmente uma loja adequada, alugou-a, e um mês depois despedia-se do emprego na igreja, iniciando suas novas atividades de comerciante de tabaco e jornaleiro. A mulher o censurou pela queda de status, mas ele argumentou que se deve dançar conforme a música, e que agora ele ia dar a César o que é de César.<br /> Albert saiu-se muito bem. Tão bem que depois de um ano resolveu montar outra loja, a ser confiada a um gerente. Procurou uma rua nas mesmas condições, que também não tivesse tabacaria, e a abasteceu convenientemente. Novo sucesso.<br /> Ocorreu-lhe então que, se podia administrar duas, podia administrar meia-dúzia. E começou a andar pela cidade, à procura de ruas movimentadas desprovidas de tabacarias. Em dez anos, as lojas dele já eram nada menos que dez. Toda Segunda-feira ele as percorria, recolhia a renda e depositava num banco.<br /> Um dia, quando fazia esses depósitos habituais, o funcionário do banco o avisou de que o gerente queria conversar com ele. Foi conduzido a uma sala, onde o gerente o recebeu sorridente:<br /> — Sr. Foreman, gostaria de conversar sobre o seu saldo conosco. O senhor sabe exatamente o montante?<br /> — Não em todos os centavos, mas tenho uma idéia bastante aproximada.<br /> — Sem contar o que o senhor depositou hoje, é um pouco mais de trinta mil libras. É uma quantia muito alta para ficar simplesmente depositada, e eu acho que o senhor poderia lucrar bastante investindo-a.<br /> — Não quero correr riscos, senhor, e prefiro tê-la garantida no banco.<br /> — O senhor não precisa preocupar-se. Forneceremos para sua escolha uma lista de investimentos seguros, com lastro em ouro, que lhe trarão rendimento maior do que o banco pode oferecer.<br /> — Nunca entendi de ações e títulos, e terei de deixar as aplicações para o senhor decidir.<br /> — Não há problema. Tomaremos todas as providências necessárias. Basta o senhor assinar os papéis quando voltar ao banco.<br /> — Está bem, mas como é que eu vou saber o que é que estarei assinando?<br /> — Basta ler o texto dos próprios documentos.<br /> — Acontece, senhor, que isso eu não posso fazer. Pode parecer estranho, mas não sei ler nem escrever, só sei assinar meu nome. E mesmo isso, só porque fui obrigado, quando entrei no ramo de negócios.<br /> O gerente levou um susto tão grande, que saltou da cadeira.<br /> — Isto é a coisa mais extraordinária que eu já ouvi!<br /> — Mas é como eu lhe estou dizendo. Só tive a oportunidade de aprender quando já era bem idoso, e aí eu decidi não tentar. Uma espécie de obstinação.<br /> O gerente olhava-o fixamente, como se fosse um monstro pré-histórico.<br /> — Quer dizer que o senhor montou todo esse seu negócio e juntou uma fortuna de trinta mil libras sem saber ler nem escrever? Santo Deus! Imagino então o que o senhor teria conseguido, se soubesse.<br /> Foreman deu uma gargalhada, e respondeu:<br /> — Isso eu posso lhe dizer, direitinho: Seria sacristão na igreja de São Pedro.<br /><br /><br />(Somerset Maugham, Collected short stories – Penguin Books, Harmondsworth, 1971)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-84611369414479625402008-06-23T10:33:00.000-03:002008-06-23T10:35:25.102-03:00O SÁBIO DA EFELOGIA - Malba TahanDurante a última excursão que fiz a Marrocos, encontrei um dos tipos mais curiosos que tenho visto em minha vida.<br /> Conheci-o casualmente, no velho hotel de Yazid El-Kedim, em Marrakech. Era um homem alto, magro, de barbas pretas e olhos escuros; vestia sempre pesadíssimo casaco de astracã, com esquisita gola de peles que lhe chegava até às orelhas. Falava pouco; quando conversava casualmente com os outros hóspedes, não fazia a menor referência à sua vida ou ao seu passado. Deixava porém, de vez em quando, escapar observações eruditas, denotadoras de grande e extraordinário saber.<br /> Além do nome — Vladimir Kolievich — pouco mais se conhecia dele. Entre os viajantes que se achavam em “El-Kedim”, constava que o misterioso cavalheiro era um antigo e notável professor da Universidade de Riga, que vivia foragido por ter tomado parte numa revolução contra o governo da Letônia.<br /> Uma noite, como de costume estávamos reunidos na sala de jantar, quando uma jovem escritora russa, Sônia Baliakine, que se entretinha com a leitura de um romance, me perguntou:<br /> — Sabe o senhor onde fica o rio Falgu?<br /> — O quê? Rio Falgu?<br /> Ao cabo de alguns momentos de baldada pesquisa nos escaninhos da memória, fui obrigado a confessar a minha ignorância, lamentável nesse ponto. Nunca tinha ouvido falar em semelhante rio, apesar de ter feito um curso completo e distinto na Universidade de Moscou.<br /> Com surpresa de todos, o misterioso Vladimir Kolievich, que fumava em silêncio a um canto, veio esclarecer a dúvida da encantadora excursionista russa:<br /> — O Rio Falgu fica nas proximidades da cidade de Gaya, na Índia. Para os budistas, o Falgu é um rio sagrado, pois foi junto a ele que Buda, fundador da grande religião, recebeu a inspiração de Deus.<br /> Diante da admiração geral dos hóspedes, aquele cavalheiro, habitualmente taciturno e concentrado, continuou:<br /> — É muito curioso o rio Falgu. O seu leito apresenta-se coberto de areia; parece eternamente seco, árido, como um deserto. O viajante que dele se aproxima não vê água nem ouve o menor rumor do líquido. Cavando-se, porém, alguns palmos na areia, encontra-se um lençol de água pura e límpida.<br /> Com a simplicidade e clareza peculiares aos grandes sábios, passou a contar-nos coisas curiosas, não só da Índia, como de várias outras partes do mundo. Falou-nos minuciosamente das “filazenes”, espécie de cadeiras em que se assentam, quando viajam, os habitantes de Madagáscar.<br /> — Que grande talento! Que invejável cultura científica! — segredou, a meu lado, um missionário católico, sinceramente admirado.<br /> A formosa Sônia afirmou que encontrara referências ao rio Falgu exatamente no livro que estava lendo, uma obra de Otávio Feuillet.<br /> — Ah! Feuillet, o célebre romancista francês! — atalhou ainda o erudito cavalheiro do astracã. — Otávio Feuillet nasceu em 1821 e morreu em 1890. As suas obras, de um romantismo um pouco exagerado, são notáveis pela finura das observações e pela concisão e brilho do estilo.<br /> Durante algum tempo, prendeu a atenção de todos, discorrendo sobre Otávio Feuillet, sobre a França e sobre os escritores franceses. Ao referir-se aos romances realistas, citou as obras de Gustavo Flaubert: “Salambô”, “Madame Bovary”, “Educação Sentimental”...<br /> — Não se limita a conhecer a Geografia — acrescentou, a meia-voz, o velho missionário. — Sabe também literatura a fundo!<br /> Realmente. A precisão com que o erudito Vladimir citava datas e nomes, e a segurança com que expunha os diversos assuntos, não deixavam dúvida alguma sobre a extensão de seu considerável saber.<br /> Nesse momento, começava uma forte ventania. As janelas e portas batem com violência. Alguns excursionistas que se achavam na sala mostraram-se assustados.<br /> — Não tenham medo — acudiu, bondoso, o extraordinário Kolievich. — Não há motivo para temores ou receios. Faye, o grande astrônomo, que estudou a teoria dos ciclones...<br /> Discorreu longamente sobre a obra de Faye, e depois passou a falar, com grande loquacidade, dos ciclones, avalanches, erupções e todos os flagelos da natureza.<br /> Senti-me seriamente intrigado. Quem seria, afinal, aquele homem tão sábio, de rara e copiosa erudição, que se deixava ficar modesto, incógnito, como simples aventureiro, numa velha e monótona cidade marroquina?<br /> No dia seguinte, ao regressar de fatigante excursão aos jardins de El-Menara, encontrei-o casualmente, sozinho, no pátio da linda mesquita de Kasb. Não me contive e fui ter com ele.<br /> — O senhor maravilhou-nos ontem com o seu saber — confessei, respeitoso. — Não podíamos imaginar, com franqueza, que fosse um homem de tão grande cultura. Na sua academia, com certeza...<br /> — Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.<br /> Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?<br /> — Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.<br /> Achei curiosa aquela conclusão da original história do inteligente Kolievich, o negociante de fumo. Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha enciclopédia.<br /> Era, inquestionavelmente, o homem que mais conhecia a ciência que ele próprio denominara “efelogia”.<br /><br /><br />(Malba Tahan, Seleções - Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-36176868294834380552008-06-22T16:02:00.000-03:002008-06-22T16:04:25.261-03:00O REALEJO - Boleslaw PrusNa Rua Miodowa, por volta do meio‑dia, via‑se diariamente um senhor de certa idade, a caminhar da Praça dos Krasinski em direção à Rua Senatorska. Durante o verão, usava elegante capote azul‑marinho‑escuro e cartola já um tanto surrada. Tinha o rosto rosado, suíças grisalhas e olhos claros, bondosos. Andava meio inclinado, com as mãos nos bolsos. Se o tempo era bom, sobraçava uma bengala; nos dias nublados, carregava um guarda‑chuva inglês de seda.<br /><br />Caminhava devagar, abismado em profundas meditações. Diante da igreja dos Capuchinhos, tocava piedosamente na car­tola e atravessava a rua para observar na vitrina da Pik a elevação do barômetro e do termômetro; depois, voltava à calçada direita, parava em frente da vitrina da Mieczkowsky, contemplava as fotografias de Modrzejewska e retomava o passeio, cedendo o lugar a cada transeunte; e se alguém o empurrava, sorria com benevolência. Cruzando alguma jovem bonita, punha os óculos para vê‑la melhor. Mas, como executasse a operação bem devagar, quase nunca lograva êxito.<br /><br />Este cavalheiro era o Sr. Tomás. Havia trinta anos que percorria a Rua Miodowa, e por vezes pensava que muita coisa nela tinha mudado. A rua poderia pensar o mesmo a respeito dele. Quando ainda advogado num tribunal de paz, corria tão de­pressa que nenhuma costureirinha, de volta da loja para casa, conseguiria escapar‑lhe. O Sr. Tomás era então alegre, loquaz, esbelto, tinha cabeleira, e bigode retorcido.<br /><br />Já naquela época o impressionavam as belas‑artes, porém não lhes consagrava o seu tempo, porque era louco pelas mulheres. Freqüentemente fora bem‑sucedido com elas e tivera boas oportunidades de casar; mas a isso ligava pouca importância, e nunca se lhe oferecia ocasião para declarar‑se, ocupado que estava com a profissão ou com os encontros amorosos. Depois de ha­ver visitado a Chiquita, dirigia‑se ao tribunal, de onde corria à casa da Sofia, a quem deixava tarde para jantar com a Josefina e a Filka.<br /><br />Ao ser nomeado advogado junto a um tribunal mais alto, já tinha a testa crescida até o topo da cabeça, em conseqüência do árduo trabalho mental, e apontavam‑lhe no bigode uns fios brancos. Perdera o ardor juvenil, possuía razoável fortuna e passava por um conhecedor das belas‑artes. E, como continuasse a amar as moças, começou a pensar em casar‑se. Alugou um apartamento de seis quartos, mandou pavimentá‑lo, cobriu as paredes de papéis pintados, comprou lindos móveis e foi à procura de uma esposa.<br /><br />Porém não era fácil a escolha para um homem maduro. Uma era jovem demais; a outra, ele a namorava desde muitíssimo tempo; a terceira tinha aparência e idade adequadas, mas gênio impróprio; a quarta, de aparência, idade e gênio apropriados, não aguardou a declaração do advogado e casou com um médico.<br /><br />Não se afligia muito o Sr. Tomás: mulheres não faltavam. Entretanto completava o arranjo do aposento, cuidando cada vez mais de que as menores peças tivessem valor artístico. Mudava os móveis, deslocava os espelhos, comprava quadros.<br /><br />Com o correr do tempo, o apartamento se tornara famoso. O Sr. Tomás, não se sabia quando, transformara a casa numa verdadeira galeria. O número de amigos e curiosos que iam visitá‑la aumentava sempre, tanto mais que o dono era muito hospitalei­ro, dava recepções excelentes e mantinha relações com alguns músicos. Aos poucos, iam‑se organizando em sua residência vesperais de concertos, honradas também com a presença de senhoras. O Sr. Tomás recebia a todos com muita fidalguia.<br /><br />Verificando, nos espelhos, que a testa já lhe ultrapassara o topo da cabeça e se aproximava, por trás, do colarinho impecavelmente branco, lembrava‑se de que, fosse como fosse, era tempo de tomar estado; tanto mais quanto os seus sentimentos em relação ao belo sexo se mantinham calorosos.<br /><br />Certa vez, ao receber uma companhia mais numerosa que de costume, uma das moças, contemplando os salões, exclamou:<br />— Que quadros! E este parquete, que beleza! A esposa do senhor será muito feliz!<br />— Será, se o belo parquete lhe bastar para a felicidade — observou baixinho um bom amigo do advogado.<br /><br />O ambiente do salão fez‑se muito alegre. O Sr. Tomás sorriu também, mas desde aquele dia, se alguém lhe falava em casamento, ele se limitava a um gesto de desdém, dizendo apenas:<br />— Ih, ih, ih!<br /><br />Nessa época, rapou o bigode e deixou crescer as suíças. A respeito das mulheres, continuava a exprimir‑se muito respeitosamente, desculpando‑lhes os defeitos com larga indulgência.<br /><br />Nada mais esperando da sociedade, pois já tinha abandonado a profissão, o advogado concentrou nas artes os seus tranqüilos afetos. Um lindo quadro, um bom concerto, uma pré‑estréia, eram acontecimentos marcantes na sua vida. Não se extasiava, não se agitava: saboreava.<br /><br />Nos concertos, escolhia sempre um lugar longe da platéia, para ouvir a música sem perceber nenhum outro ruído e sem ver os artistas. Antes de ir ao teatro, lia a peça, a fim de poder observar sem curiosidade febril o desempenho dos atores. Quando não havia muita gente na galeria, admirava os quadros. Passava ali horas inteiras.<br /><br />Se gostava de uma coisa, dizia:<br />— Vocês sabem, isto não está mau!<br />Era um desses poucos entendidos que logo reconhecem um talento. Mas nem por isso condenava as obras medíocres.<br />— Aguardem um pouco — dizia, ao ouvir criticarem um artista. — Talvez ele melhore.<br /><br />E assim continuava, sempre indulgente com as imperfeições humanas, sem jamais comentar as falhas.<br /><br />Felizmente nenhum dos mortais é de todo livre de extravagâncias. Não o era o Sr. Tomás. Odiava ele os realejos e os homens que os tocam.<br /><br />Ao sentir na rua os sons de um realejo, acelerava o passo e per­dia o bom humor por algumas horas. Apesar de tão calmo, agitava‑se; de tão silencioso, gritava; de tão brando, encolerizava‑se, ouvindo o primeiro toque de um realejo.<br /><br />Longe de esconder esta fraqueza, explicava‑a:<br />— A música — dizia, fora de si — é a coisa mais sutil, mais espiritual que existe; no realejo, todo esse espírito se transforma em execução mecânica num instrumento de banditismo; pois que são os tocadores de realejo, senão uns bandidos? Por isso — acrescentava — os realejos irritam‑me; e como só tenho uma vida, não quero desperdiçá‑la escutando essa música detestável.<br /><br />Uma pessoa malévola, conhecendo‑lhe a aversão às caixas de música, lembrou‑se de lhe pregar uma peça: mandou dois realejistas tocarem sob suas janelas. O Sr. Tomás adoeceu de indignação, e depois, tendo descoberto o autor, provocou‑o a duelo. Foi preciso convocar‑se um tribunal de honra, para evitar derramamento de sangue por motivo aparentemente tão frívolo.<br /><br />O edifício onde morava o Sr. Tomás mudou algumas vezes de proprietário. E cada um deles, naturalmente, considerava de seu dever aumentar o aluguel de todos os inquilinos, principalmente do Sr. Tomás. O advogado pagava sem protesto os aumentos, mas, de cada vez, estipulava no contrato, com todos os efes‑e‑erres, que não poderiam tocar realejo no quintal do edifício.<br /><br />Independentemente das restrições contratuais, sempre que chegava novo vigia o Sr. Tomás o chamava ao seu apartamento e tinha com ele mais ou menos esta conversa:<br />— Escute, amigo... Seu nome?<br />— Casimiro, senhor.<br />— Escute, Casimiro: cada vez que eu voltar para casa tarde e você me abrir a porta, terá vinte groszy. Entendeu?<br />— Entendi, Excelência.<br />— Além disso, você terá de mim, no fim de cada mês, dez zlotych. Sabe para quê?<br />— Não posso saber, Excelência — respondia o vigia, todo alvoroçado.<br />— Para que você nunca deixe entrar ninguém com realejo no quintal. Entendeu?<br />— Entendi, Excelência.<br /><br />O apartamento do Sr. Tomás compunha‑se de duas partes. Quatro grandes cômodos tinham janelas para a rua; dois menores, para o quintal. A parte mais elegante do apartamento destinava‑se aos convidados. Aí se realizavam os banquetes, aí eram recebidos os clientes, aí se hospedavam parentes e conhecidos do advogado, vindos da roça. Raramente o Sr. Tomás aparecia nessa parte — apenas para ver se o parquete estava bem encerado, se os móveis não se estragavam e se lhes tinham tirado a poeira.<br /><br />Quando ficava em casa, levava dias inteiros no gabinete, do lado do quintal; lia, escrevia cartas ou examinava documentos dos conhecidos que lhe pediam conselho. Se queria descansar a vista, sentava‑se numa poltrona ao pé de uma das janelas e, acendendo um charuto, abismava‑se em meditações. Sabia que o pensa­mento constituía função muito importante da vida, função que um homem cuidoso da saúde não devia desprezar.<br /><br />Do outro lado do quintal, em frente das janelas do Sr. Tomás, havia um apartamento alugado a pessoas de menores recursos. Muito tempo morou ali um velho funcionário do tribunal, que, tendo perdido o seu posto, se mudou para Praga. Depois, um alfaiate alugou o pequeno apartamento; mas, como gostava de embriagar‑se de vez em quando, e então fazia barulho, foi despeja­do. Veio em seguida a viúva de um funcionário, a qual passava o tempo a brigar com a empregada. Mas no dia de S. João uns pa­rentes da província vieram buscar a velha, já muito decrépita (aliás, relativamente rica), e levaram‑na consigo, apesar do seu gênio altercador. O apartamento foi ocupado por duas senhoras e uma menina de uns oito anos.<br /><br />As senhoras viviam do seu trabalho: uma cosia, a outra fazia meias e coletes numa máquina de tricotar. A menina chamava mãe à mais jovem e bonita das mulheres, e tratava a outra por "senhora".<br /><br />Tanto as janelas do Sr. Tomás como as das novas moradoras ficavam abertas o dia inteiro. Assim, sentado na sua poltrona, podia o advogado ver perfeitamente o que se passava no apartamento das vizinhas, cujos móveis eram modestos para aquele local. Nas mesas e nas cadeiras, no sofá e na camiseira viam‑se panos para costurar e novelos de algodão para meias.<br /><br />De manhã as moças varriam, elas mesmas, o apartamento; ao meio‑dia, mais ou menos, uma criada lhes trazia o almoço parco.<br /><br />Durante o resto do dia, as duas mulheres quase não deixavam as sussurrantes máquinas.<br /><br />A criança ficava, em geral, sentada à janela. Tinha cabelos pretos e um lindo rostinho, mas era singularmente pálida e de uma calma excessiva. Às vezes, com duas agulhas de tricô, fazia uma cinta com um pouco de linho ou de algodão. Outras vezes, brincava com uma boneca, vestindo‑a e despindo‑a repetidamente, a cus­to. Em outras ocasiões, não fazia nada; permanecia sentada à janela, à escuta.<br /><br />Nunca o Sr. Tomás a ouviu cantar nem a viu correr pelo quarto, nem lhe enxergou nunca um sorriso nos lábios exangues e no rosto impassível.<br />— "Que menina esquisita!" — dizia consigo.<br />E entrou a observá‑la mais atentamente.<br /><br />Certo dia — um domingo — notou que a mãe dera à criança um pequeno ramozinho de flores. A menina animou‑se, separou e juntou as flores, beijou‑as. Finalmente fez delas outro ramo e o pôs num copo de água, sentou‑se à janela a disse:<br />— Mamãe, está muito triste aqui, não é?<br />O advogado espantou‑se. Como? Triste aquela casa onde ele vivera de bom humor tantos anos?<br /><br />Outro dia, por volta das quatro horas, o advogado encontrava‑se de novo no seu gabinete. A essa hora o Sol batia na janela das vizinhas, aclarando‑a e aquecendo‑a bastante. O Sr. Tomás olhava para o outro lado do quintal. De repente botou os óculos, como se houvesse algo extraordinário. Eis o que era: A pálida menina, apoiando a cabeça no braço, quase se deitara de costas para a janela, e com os olhos escancarados fitava o Sol. No seu rosto, de ordinário tão impassível, refletiam‑se agora alguns sentimentos, um pouco de alegria, um pouco de tristeza.<br />— "Ela não vê" — disse consigo o Sr. Tomás, baixando os óculos.<br /><br />E só de pensar como se podia fitar assim o Sol, que parecia lançar fogo, sentia doerem‑lhe os olhos.<br /><br />De fato, a menina era cega havia dois anos. Aos seis, adoecera de estranha moléstia, que a deixou desacordada algumas semanas, e depois a tornou tão débil que ela ficava estendida na cama, sem se mover, sem falar, como se estivesse morta. Davam‑lhe vinho e canja, a assim se refazia aos poucos. Mas no primeiro dia em que se pôde sentar na cama, perguntou à mãe:<br />— Mamãe, agora é noite?<br />— Não, minha filha... Por que é que você pergunta?<br />A criança não respondeu; tinha sono. Só no dia seguinte, ao chegar o médico, perguntou de novo:<br />— Ainda é noite?<br />Então compreenderam que estava cega. O médico examinou-­lhe os olhos e disse que era preciso aguardar.<br /><br />Mas a doente, à medida que recuperava as forças, preocupava­-se cada vez mais com aquela enfermidade:<br />— Mamãe, por que não posso ver a senhora?<br />— Porque você tem os olhos tapados. Mas isso há de passar.<br />— Quando?<br />— Daqui a algum tempo.<br />— Amanhã, talvez?<br />— Dentro de alguns dias, minha filha.<br />— Então, quando isto passar, mamãe, me avise imediatamente, porque, assim como estou, fico muito triste, por não ver nada.<br /><br />Dias e semanas decorreram em expectativa. A menina principiou a levantar‑se. Aprendeu a andar no quarto às cegas, vestia‑se e despia‑se sozinha, mas com vagar e cautela. A vista, porém, não voltava.<br /><br />Um dia, ela disse:<br />— Mamãe, o meu vestido é azul, não é?<br />— Não, minha filha, é cinzento.<br />— Você o vê?<br />— Vejo‑o, sim, querida.<br />— Como se fosse dia?<br />— Sim.<br />— E eu, eu também voltarei a ver tudo daqui a poucos dias? Dentro de um mês, por exemplo?<br />Como não obtivesse resposta, continuou:<br />— Mamãe, na rua é sempre dia, não é? O jardim tem árvores, como dantes? E aquele gatinho branco de patas pretas vem sempre visitar a gente? Não é verdade, mamãe, que eu já me tenho visto num espelho? Você não tem um?<br />A mãe deu‑lhe um espelho.<br />— A gente deve olhar aqui, onde o espelho é liso — disse a pequena, aproximando‑o do rosto —, mas não vejo nada. Ma­mãe, você também não me vê no espelho?<br />— Vejo‑a, meu bem.<br />— Como pode ser? — exclamou a menina, aflita. — Se eu não me posso ver, não deveria haver ninguém no espelho... E essa menina que você vê no espelho, ela me vê ou não?<br />A mãe saiu às pressas, chorando.<br /><br />O passatempo preferido da menina era tocar diferentes objetos pequenos com as mãos e reconhecê‑los.<br /><br />Um dia a mãe deu‑lhe uma boneca de porcelana, bem‑vestida, que custara um rublo. A criança não largava a boneca, fazia‑lhe carinhos. Deitou‑se muito tarde, pensando sempre no brinquedo, que guardou numa caixa estofada de algodão.<br /><br />À noite a mãe foi despertada por um ruído; saltou da cama, acendeu uma vela e viu num canto a sua filha, já vestida, a brincar com a boneca.<br />— Que é que está fazendo? — exclamou. — Por que não dorme?<br />— Para que dormir, se já é dia? — respondeu a ceguinha.<br />Para ela, dia e noite fundiam‑se, e duravam sempre...<br /><br />Obliterava‑se‑lhe gradualmente a memória das sensações vi­suais. Uma cereja vermelha tornava‑se uma frutinha lisa, redonda e macia; uma moeda reluzente fazia‑se um pequeno disco duro e tininte, com figurinhas em baixo‑relevo. Ela sabia que o quarto era maior do que ela mesma, a casa maior do que o quarto, a rua maior do que a casa. Mas tudo isto se foi de certa maneira resumindo, na sua imaginação.<br /><br />Concentrava‑se‑lhe a atenção no tato, no olfato a no ouvido. O rosto a as mãos adquiriram sensibilidade tal que, ao aproximar‑se algumas polegadas de uma parede, sentia um leve frio. Acontecimentos mais afastados penetravam nela pelo ouvido; ficava escutando dias inteiros.<br /><br />Reconhecia os passos vagarosos do vigia de voz aguda que var­ria o quintal. Distinguia se o veículo que passava diante da casa era um carro de camponês carregando madeira, um fiacre ou um caminhão de lixo. Não lhe escapava o menor ruído, o cheiro mais leve, um resfriamento ou um aquecimento imperceptível do ar. Com incrível sagacidade, percebia os menores fatos e deles tirava conclusões.<br /><br />Um dia, ouvindo a mãe chamar a empregada:<br />— Ela saiu — disse a cega, sentada, como sempre, no seu canto. — Foi buscar água.<br />— Como é que você sabe? — perguntou a mãe, assombrada.<br />— Como? Sei que apanhou o regador na cozinha e foi ao ou­tro quintal tirar água com a bomba. Agora está conversando com o vigia.<br /><br />Com efeito, do outro lado da cerca vinha o som da conversa de duas pessoas, mas tão abafado que dificilmente se podia entender.<br /><br />Por maior que fosse o aperfeiçoamento dos outros sentidos, não substituía a vista, e a menina começou a ressentir‑se da escas­sez de impressões e a experimentar saudades.<br /><br />Permitiam‑lhe andar por toda a casa, o que a serenava um pouco. Conhecia cada pedra do quintal, tocava em todos os alge­rozes, em todos os barris. Mas o maior prazer advinha‑lhe de excursões a dois mundos inteiramente diversos: o celeiro e a adega.<br /><br />Na adega o ar era fresco, as paredes úmidas. O bulício da rua chegava de cima, amortecido; os outros sons desapareciam. Para a cega, isso era a noite. No celeiro, sobretudo perto da janelinha, tudo se passava de maneira completamente diversa. Havia mais barulho que no quarto. A menina percebia o ruído dos carros de algumas ruas. De mais a mais, lá se concentravam os rumores da casa inteira. Um vento quente lhe afagava o rosto. Ouvia o gorjeio das aves, o latido dos cães e o sussurro das árvores num jardim vizinho. Era o dia.<br /><br />Não só isto: no celeiro o Sol brilhava com maior freqüência que no quarto, e, ao volver para o Sol os seus olhos extintos, a pequena tinha a impressão de ver alguma coisa. Na sua imaginação apontavam sombras de formas e cores, mas tão confusas e fugidias que não podia lembrar‑se de nada.<br /><br />Foi nesse tempo que a mãe, tendo‑se reunido à amiga, se mu­dou para a casa onde residia o Sr. Tomás. Estavam ambas as senhoras muito contentes da nova morada, mas para a ceguinha a mudança foi um verdadeiro desastre. Era obrigada a ficar no quarto, não lhe sendo permitido ir à adega nem ao celeiro. Não ouvia aves nem árvores. Reinava no quintal um silêncio horrível. Lá nunca entravam belchiores para quebrá‑lo. Era proibida a entra­da de velhas mendigas que entoavam cânticos religiosos, assim como de velhos tocadores de clarineta ou de realejo.<br /><br />A única distração da menina era olhar para o Sol; mas nem sempre este luzia da mesma forma, e não tardava a esconder‑se atrás das casas.<br /><br />A criança principiou novamente a sentir saudades, emagreceu em poucos dias, e apareceu‑lhe no rosto aquela expressão de desalento e desânimo que tanto espantou o Sr. Tomás.<br /><br />Não podendo ver, a ceguinha queria ao menos ouvir os rumores mais diferentes; mas a casa era toda silenciosa...<br />— "Coitada da pequena!" — resmungava por vezes o Sr. To­más, observando a triste menina. — "E se eu pudesse fazer alguma coisa por ela?" — perguntava, vendo‑a cada vez mais pálida a magra.<br /><br />Por esse tempo, um amigo do advogado teve um processo e, como de praxe, trouxe‑lhe os autos, pedindo que os examinasse e desse alguns conselhos. Embora já não pleiteasse no tribunal, o Sr. Tomás, como bom profissional que era, sabia sempre indicar o caminho adequado e fornecia ao colega, por ele mesmo escolhido, muitas explicações úteis.<br /><br />A causa que o Sr. Tomás agora estava examinando era com­plicada. Quanto mais atentamente a estudava, tanto mais se enchia de paixão. No ancião aposentado acordava o causídico. Já não saía do apartamento, já não verificava se fora tirada a poeira dos móveis. Encerrado no seu gabinete, lia os documentos e tomava notas.<br /><br />À noite chegou, como de costume, o velho lacaio do advoga­do, com um relatório dos acontecimentos do dia. Informou que a esposa do doutor partira com os filhos em férias; que não estava sendo feito o fornecimento da água; que o vigia Casimiro, tendo brigado com um policial, fora preso por uma semana. Por fim, perguntou se o senhor advogado não queria falar com o novo vigia. O amo, inclinado sobre os papéis, fumava o seu charuto, lançava anéis de fumaça, e nem volveu os olhos para o fiel criado.<br /><br />No dia seguinte o Sr. Tomás ainda estudava os autos. Por volta das duas almoçou, e depois tornou ao trabalho. O rosto vermelho e as suíças grisalhas, em combinação com o fundo azul da parede, assemelhavam‑se a uma natureza‑morta. A mãe da menina cega e a sua companheira, que fazia meias à máquina, observavam o advogado, a quem julgavam um viúvo robusto que habitualmente dormia da manhã até à noite, sentado à mesa do trabalho.<br /><br />No entanto, o Sr. Tomás, bem que estivesse de olhos fechados, não dormia. Meditava sobre o caso.<br /><br />Em 1872 o cidadão X legou ao sobrinho A uma fazenda, e em 1875, ao sobrinho B, um edifício. B pretendia que em 1872 X era louco, ao passo que A queria provar que ele só enlouquecera em 1875. Porém o marido da irmã do falecido Sr. X apresentou documentos autênticos que provavam que, tanto em 1872 como em 1875, X agia como um doido, pois havia legado a fortuna à irmã já em 1869, tempo em que ainda se achava de posse de todas as suas faculdades.<br /><br />O Sr. Tomás fora convidado a resolver quando X enlouquece­ra, e depois a reconciliar as três partes, nenhuma das quais estava disposta a fazer a menor concessão.<br /><br />Enquanto o Sr. Tomás procurava dirimir todas essas complicações, aconteceu um incidente incompreensível e estranho: No quintal, justamente sob a sua janela, um realejo pôs‑se a berrar.<br /><br />Se o falecido Sr. X se tivesse levantado do túmulo, houvesse recuperado os sentidos e entrado no gabinete para ajudar o advogado a encontrar a solução, decerto o Sr. Tomás não teria sentido espanto igual ao que experimentou ouvindo o realejo.<br /><br />E se pelo menos fosse um realejo italiano, de acordes agradáveis como os de uma flauta, de boa fabricação, tocando belas melodias! Mas não! Como para irritá‑lo de modo especial, o instrumento estava quebrado, tocava desafinadamente valsas a polcas ordinárias, a tão alto que as vidraças tremiam. Para cúmulo de desgraça, a tuba do realejo bramia de vez em quando, que nem uma fera raivosa.<br /><br />Sob a tremenda impressão, o advogado ficou atônito. Não sabia que fazer nem que pensar. Por um instante cismou até que, lendo o testamento do louco Sr. X, ele mesmo houvesse perdido a razão e estivesse sujeito a alucinações. Mas qual! não eram alucinações. Era um verdadeiro realejo de pífanos quebrados e de tubo extra-forte.<br /><br />No coração do Sr. Tomás, homem tão indulgente, tão afável, levantaram‑se instintos selvagens. Lamentava que a natureza não o tivesse feito rei de Daomei, com o direito de matar os seus súditos, e imaginava o prazer com que, naquele momento, tiraria a vida ao tocador.<br /><br />Como os homens do gênio do Sr. Tomás, quando violenta­mente encolerizados, passam com facilidade de projetos audaciosos a realizações terríveis, o advogado saltou à janela como um tigre, decidido a ralhar contra o homem do realejo com palavras as mais ásperas. Já se debruçara no peitoril para gritar "seu vagabundo!", quando ouviu uma voz infantil. Olhou para o apartamento fronteiro.<br /><br />A menina cega dançava no quarto, batendo palmas. O rostinho pálido estava corado, a boca ria, e, contudo, corriam lágrimas dos olhos extintos. Havia muito tempo a coitadinha não conhecia tamanhas impressões naquela casa tranqüila! Que bela aparição constituíam para ela os acordes falhos do realejo! Que soberbo o rugido da tuba, que por um triz não causou uma apoplexia ao advogado!<br /><br />Vendo o júbilo da criança, pôs‑se o tocador a marcar o ritmo com o grande salto do sapato e a assobiar feito uma locomotiva ao cruzar‑se com outra.<br />— Meu Deus! Que beleza, este assobio!<br /><br />No gabinete do advogado surgiu o seu criado fiel, fora de si, empurrando para a frente o vigia, a exclamar:<br />— Eu disse a este patife, Excelência, que pusesse logo no olho da rua esse tocador. Expliquei‑lhe que ia receber uma gratificação de V. Exa., e que nós tínhamos um contrato. Mas o malandro chegou da roça há uma semana, e não conhece os nossos costumes. Agora você vai ouvir — gritou, aferrando o braço do vigia. — Escute o que S. Exa. em pessoa lhe vai dizer.<br /><br />O realejo tocava já a terceira melodia, sempre no mesmo tom desafinado e barulhento das duas primeiras. A menina estava em delírio.<br /><br />O advogado voltou‑se para o vigia, com a sua calma habitual, embora estivesse um pouco pálido:<br />— Escute, amigo... Como se chama você?<br />— Paulo, Excelência.<br />— Então, Paulo, eu lhe pagarei dez zlotych por mês, mas sabe para quê?<br />— Para que eu nunca deixe tocarem realejo no quintal — interveio o criado.<br />— Não — disse o Sr. Tomás. — Para que, por algum tempo, você deixe todos os dias tocarem realejo no quintal. Entendeu?<br />— Que é que o senhor está dizendo? — exclamou o criado, a quem a ordem incompreensível tornara muito atrevido.<br />— Digo que ele deve, até ordem em contrário, deixar diariamente tocarem realejo no quintal — repetiu o advogado, pondo as mãos nos bolsos.<br />— Não estou compreendendo o senhor — disse o criado, com sinais insolentes de surpresa.<br />— Você é bobo, meu velho amigo — replicou‑lhe bondosa­mente o Sr. Tomás.<br />E acrescentou:<br />— Está bem, voltem ao serviço.<br />O criado e o vigia saíram. O advogado notou que o seu fiel criado murmurou alguma coisa ao ouvido do companheiro, pondo um dedo na testa.<br /><br />O Sr. Tomás sorriu‑se e, como para confirmar as sinistras suposições do criado, lançou uma moeda ao tocador do realejo.<br /><br />Depois, tomando de um calendário, procurou a lista dos médicos e anotou numa folha os endereços de alguns oftalmologistas. Como o tocador, animado pela moeda, se virou agora para a sua janela e entrou a bater com os pés e assobiar ainda com mais força, o que não deixou de irritá‑lo, agarrou a folha e saiu resmungando:<br />— Coitada da menina! Eu devia ter tomado conta dela há muito tempo...<br /><br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai — Mar de histórias — Nova Fronteira, Rio, vol.7)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-72575210506786691752008-06-22T16:00:00.000-03:002008-06-22T16:02:03.795-03:00O PROBLEMA DAS OITO CAIXAS - Malba TahanSegundo uma lenda muito antiga, o célebre Califa Al Motacém Billah, rei dos árabes, chamou certa manhã o astucioso Sabag, seu vizir-tesoureiro, e disse-lhe em tom grave, como se ditasse uma sentença irrevogável:<br /> — Dentro de poucas horas, meu caro vizir, receberei a visita do jovem Beremisz Samir, apelidado “o homem que calculava”. Não ignoras, certamente, que o talentoso Beremiz tem deslumbrado esta nossa gloriosa Bagdá com inequívocas demonstrações de seu incomparável engenho e de sua agudíssima inteligência. Os enigmas mais intrincados, os cálculos mais difíceis são, pelo exímio matemático, explicados e resolvidos em rápidos momentos. É meu desejo presentear o ilustre Beremiz com avultada quantia. Gostaria, entretanto, de experimentar também a tão elogiada argúcia do calculista, propondo-lhe durante a nossa entrevista um problema que seja relacionado, de certo modo, com o prêmio que lhe darei em moedas de ouro. Um problema que deixasse o nosso visitante encantado, é verdade, mas também perplexo e confuso.<br /> O vizir Sabag não era homem que se deixasse entibiar diante dos caprichos e fantasias do poderoso emir. Depois de ouvir, cabisbaixo e pensativo, as palavras do rei, ergueu o rosto bronzeado, fitou serenamente o glorioso califa, e assim falou:<br /> — Escuto e obedeço, ó Príncipe dos Crentes! Pelo tom de vossas palavras, adivinho perfeitamente o rumo seguido pela caravana de vossas intenções. É vosso desejo premiar um sábio geômetra com valiosa quantia. Ressalta, dessa intenção, a generosidade sem par de vosso coração. Quereis, entretanto, que este prêmio seja exornado com um problema original e inédito, capaz de surpreender o mais engenhoso dos matemáticos e de encantar o mais delicado dos filósofos. Essa lembrança põe em relevo a elegância de vossas atitudes, pois o visitante, ao ser argüído diante da corte, poderá mais uma vez demonstrar a pujança de seu engenho e o poderio de sua cultura.<br /> Proferidas tais palavras, retirou-se o vizir para a sua sala de trabalho. Decorrido algum tempo, voltou à presença do rei, precedido de dois escravos núbios que conduziam pesada bandeja de prata. Repousavam sobre a bandeja oito caixas de madeira, todas do mesmo tamanho, numeradas de um até oito.<br /> Não pequeno foi o espanto do califa de Bagdá ao ver aquele singular aparato. Qual seria a razão de ser daquelas caixas numeradas de um até oito? Que mistério, no domínio das contas e dos cálculos, poderiam elas envolver? Cheiques e nobres, que se achavam ao lado do rei, entreolhavam-se espantados.<br /> Cabia ao honrado Sabag, ministro da corte, explicar o porquê daquela estranha preparação. Ouçamos, pois, o relato feito pelo digno vizir:<br /> — Cada uma dessas caixas contém um certo número de moedas. O total contido nas caixas é o prêmio que será oferecido ao calculista. As caixas, como podeis observar, estão numeradas de um até oito, e dispostas segundo o número de moedas que cada uma contém. Para esse arranjo das caixas, adotei a ordem crescente. Assim, a caixa designada pelo número 1 encerra o menor número de moedas; vem depois a que é indicada pelo número 2; a seguir aparece a de número 3, e assim por diante até a última, que encerra o maior número de moedas. Para evitar qualquer dúvida, direi desde logo que não é possível encontrar duas caixas com o mesmo número de moedas.<br /> O califa, seriamente intrigado, interpelou o vizir:<br /> — Não percebo, ó eloqüente Sabag, que problema seria possível formular com esses dinares distribuídos por oito caixinhas. Por Allah! Não percebo!<br /> O vizir Sabag, quando moço, fora professor primário e havia aprendido, diante das classes, a ensinar os iletrados, a esclarecer as dúvidas dos menos atilados e dirimir as questões sugeridas pelos mais espertos. Firmemente resolvido a elucidar o glorioso soberano, o velho mestre-escola assim falou:<br /> — Cumpre-me dizer, ó Rei do Tempo, que os dinares não foram distribuídos ao acaso pelas oito caixas. Cada caixa encerra um certo número de moedas. São ao todo, portanto, oito quantias em dinares. Com as quantias distribuídas pelas oito caixas, podemos fazer qualquer pagamento, desde um dinar até o número total contido nas oito caixas, sem precisar abrir nenhuma caixa ou tocar em moeda alguma. Basta separar, da coleção que se acha sobre a bandeja, uma, duas, três, quatro ou mais caixas, e será obtido o total desejado.<br /> — Iallah! É curioso! — comentou maravilhado o emir. — Segundo posso inferir de tua explicação, o arranjo dos dinares, distribuídos pelas oito caixas, permite que se possa retirar do total a quantia que se quiser, sem violar nenhuma das caixas, sem remover moeda alguma?<br /> — Isso mesmo! — confirmou pressuroso o vizir. — Digamos que fosse vosso desejo retirar, por exemplo, do total a quantia de 212 dinares. Nada mais simples. No grupo das oito caixas há algumas cujas porções nelas contidas perfazem a soma de 212. Consistirá a dificuldade do problema, para cada caso, em determinar as caixas que devem ser separadas, a fim de que se obtenha uma determinada quantia, pois o que se fez para 212 poder-se-á fazer para 200, 49, 157, ou qualquer número inteiro até o total de moedas.<br /> Feita breve pausa, a fim de permitir que o rei pudesse fixar idéias e refletir sobre o caso, o inteligente vizir rematou:<br /> — Eis, ó Comendador dos Crentes, em resumo, o problema que poderia ser proposto, diante da corte, ao genial calculista: “Sabendo que estas caixas, numeradas de um até oito, contêm dinares em números que não se repetem; sabendo-se também que é possível efetuar qualquer pagamento até o número total de moedas, sem abrir nenhuma caixa, pergunta-se:<br /> 1º - Quantas moedas contém, respectivamente, cada uma das caixas?<br /> 2º - Como determinar, por meio do raciocínio, matematicamente certo, a quantia contida em cada uma?<br /> 3º - Qual o número total de moedas?<br /> 4º - Será possível resolver o mesmo problema distribuindo-se as moedas por um número menor de caixas?”<br /> O divã do califado, isto é, o salão real das audiências, achava-se repleto de nobres e convidados quando, pelo soar surdo e solene do gongo, foi anunciada a visita de Beremiz Samir, “o homem que calculava”. No centro do suntuoso recinto, sobre luxuoso tapete, foi colocada a bandeja com as oito caixas que iriam servir de base para o problema.<br /> Al-Motacém Billah, Príncipe dos Crentes, que se achava em seu trono de ouro e púrpura, rodeado de seus vizires e cádis, dirigiu ao matemático amistosa saudação:<br /> — Sê bem-vindo, ó Beremiz! Sê bem-vindo sob a inspiração de Allah! Que a tua presença neste divã seja motivo de júbilo para todos os nossos amigos, e que de tuas palavras possamos colher as tâmaras deliciosas da sabedoria que eleva as almas e purifica os corações.<br /> Decorreu um momento de impressionante silêncio. Competia ao visitante agradecer aquela honrosa saudação. Inclinando-se Beremiz diante do rei, assim falou:<br /> — Allah badique, ia Sidi! — Deus vos conduza, ó Chefe! Admiro, estimo e exalto aqueles que governam com justiça, bondade e sabedoria. É esse o vosso caso, ó Emir dos Árabes, e todos os vossos súditos proclamam essa verdade. A vossa justiça assegura o poderio do Estado; a vossa bondade cria preciosas dedicações; e a vossa sabedoria fortalece e perpetua a confiança do povo. Ai daqueles cujos governantes são sábios mas regem a vida pela injustiça das ações que praticam! Ai daqueles cujos chefes e dirigentes são justos mas desconhecem a bondade! E Allah, o Clemente, se compadeça daqueles que se acham sob o jugo de homens ignorantes, pérfidos e iníquos.<br /> — As tuas palavras, ó calculista — respondeu o rei mansamente — são para mim como brincos de ouro e rubis. Servem-me de estímulo e enchem-me de orgulho. Vou, mais uma vez, abusar de tua gentileza. Será um encanto, não só para mim, como para todos os nobres, vizires e cheiques que aqui se acham, ouvir a tua palavra, a tua doutíssima opinião, sempre original e brilhante, sobre um problema aritmético que parece desafiar o engenho dos mais insignes matemáticos. Esse problema, formulado pelo vizir Sabag, poderia ser enunciado nos seguintes termos: “Sobre aquela bandeja estão oito caixas. Cada caixa contém um certo número de moedas, e não há duas caixas com o mesmo número de moedas. Afirma o vizir Sabag que a distribuição de moedas pelas oito caixas foi feita de modo a permitir que se possa, do total, destacar qualquer quantia, desde um dinar, sem abrir nenhuma caixa, isto é, sem tocar nas moedas. Resta agora determinar quantas moedas contém cada caixa e qual o total de moedas. Para facilitar a exposição, as caixas estão numeradas de um até oito, segundo a ordem crescente das quantias que encerram”.<br /> E o califa rematou, depois de breve pausa:<br /> — Como orientarias, ó calculista, a solução desse engenhoso problema?<br /> Beremiz Samir, “o homem que calculava”, como bom súdito, não se fez de rogado. Cruzou lentamente os braços, baixou o rosto e pôs-se a meditar. Depois de coordenar as idéias, iniciou a preleção sobre o caso, nos seguintes termos:<br /> — Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso! Esse problema é, realmente, um dos mais interessantes que tenho ouvido, e a sua solução, por ser simples e suave, põe em relevo a beleza e a simplicidade sem par da Matemática. Vejamos. A distribuição dos dinares pelas oito caixas foi feita de modo a permitir que separemos uma quantia qualquer, a partir de um dinar, destacando-se da coleção uma, duas, três ou mais caixas. Resta determinar o conteúdo de cada caixa. É evidente que a primeira caixa deve conter um dinar, pois do contrário não poderíamos destacar a unidade do total. Eis a conclusão algemada pela evidência: a caixa designada pelo número 1 contém um dinar.<br /> A segunda caixa deverá conter, forçosamente, dois dinares, pois a quantia de um dinar não pode ser repetida, e se a segunda caixa tivesse três, quatro ou mais dinares não seria possível separar dois dinares do total. Conclusão: já conhecemos os conteúdos respectivos das duas primeiras caixas. Com auxílio dessas duas caixas podemos obter um, dois ou três dinares.<br /> Passemos agora à terceira caixa. Quanto deveria conter? A resposta impõe-se imediatamente: quatro dinares. Com efeito, se a terceira caixa encerrasse mais de quatro dinares, não seria possível, conservando intactas as caixas, separar quatro dinares do total. Para as três primeiras, temos, portanto:<br /> 1ª caixa: 1 dinar;<br /> 2ª caixa: 2 dinares;<br /> 3ª caixa: 4 dinares.<br /> Com auxílio dessas três caixas, podemos formar todas as quantias desde um até sete dinares. Sete representaria o total das três primeiras caixas, isto é, um mais dois mais quatro.<br /> Repetindo o mesmo raciocínio, somos levados a afirmar que a caixa seguinte, isto é, a quarta, deverá conter oito dinares. A inclusão desta caixa com oito dinares permitirá separar do total todas as quantias desde um até quinze. O quinze é formado pelo conteúdo das quatro primeiras caixas.<br /> E a quinta caixa? Não oferece o cálculo de seu conteúdo a menor dificuldade. Uma vez demonstrado que as quatro primeiras caixas totalizam quinze, é evidente que a quinta caixa deverá encerrar dezesseis dinares. A inclusão da quinta caixa ao grupo das quatro primeiras permite que formemos qualquer número desde um até trinta e um, inclusive. O total trinta e um é obtido pela soma das cinco primeiras.<br /> Neste ponto fez o calculista uma pausa rapidíssima, e logo prosseguiu:<br /> — Vejamos, pelo encadeamento natural de nosso raciocínio, se é possível descobrir uma lei, ou regra, que permita calcular os conteúdos respectivos das outras caixas restantes. Para isso convém recapitular:<br /> 1ª caixa: 1 moeda;<br /> 2ª caixa: 2 moedas;<br /> 3ª caixa: 4 moedas;<br /> 4ª caixa: 8 moedas;<br /> 5ª caixa: 16 moedas.<br /> Observemos que cada caixa, a partir da segunda, contém sempre o dobro do número de moedas da caixa precedente. Dizem os matemáticos que os números 1, 2, 4, 8 e 16 formam uma progressão geométrica crescente, cuja razão é dois — um sistema binário, portanto. Dada a natureza do problema, é fácil provar que se mantém a mesma progressão fixando os conteúdos das quatro caixas seguintes. Temos então:<br /> 6ª caixa: 32 moedas;<br /> 7ª caixa: 64 moedas;<br /> 8ª caixa: 128 moedas;<br /> E o total de moedas em todas as caixas, portanto, é 255.<br /> — Uassalã!<br /><br /><br />(Adaptado de Malba Tahan, O homem que calculava – Conquista, Rio, 1965)<br /><br /><br />(Este é o sistema binário, base de funcionamento dos computadores. Bit é a menor informação, correspondendo ao conteúdo de uma caixa, qualquer delas; byte é a informação (número) obtida com uma ou mais caixas escolhidas dentre essas oito. O sistema de oito bits (ou oito caixas, conforme a descrição) permite computar de 0 até 255. Os dez algarismos do sistema decimal ocupam apenas dez possibilidades, e as 245 restantes são usadas pelos programadores para corresponder a letras, sinais gráficos, comandos, etc).<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-79087710382136397622008-06-22T15:57:00.000-03:002008-06-22T16:00:12.580-03:00O PRIMEIRO IMPULSO - Autor persa anônimoTooriri era um cidadão rico de Bagdá, universalmente famoso por suas virtudes. Não se limitava a assistir aos pobres a ponto de, em vez de levar uma existência das mais luxuosas, viver apenas confortavelmente; escutava com a mais delicada paciência as queixas de todos os sofredores que o procuravam, consolava‑os com palavras carinhosas e ajudava‑os de todas as maneiras possíveis.<br /><br />Suportava com resignação as mil e uma pequenas misérias que constituem a maior parte da vida humana. Tolerante em alto grau, não se aborrecia se os outros não lhe partilhavam as opiniões — virtude difícil e rara, pois o desejo secreto de cada homem é que o resto da humanidade lhe seja inferior e, ao mesmo tempo, semelhante.<br /><br />Casado com uma megera, mantinha‑se‑lhe fiel, perdoava‑lhe o mau gênio, e jamais a fazia sentir que não era nem moça nem bonita. Prosador e poeta, regozijava‑se com o êxito dos rivais e manifestava‑lhes benevolência e amizade em expressões corteses e sinceras.<br /><br />Numa palavra, sua vida era toda caridade, gentileza, lealdade e altruísmo, e consideravam‑no, ao mesmo tempo, um santo e um perfeito cavalheiro.<br /><br />Ao seu semblante, porém, faltava a serenidade que por via de regra caracteriza as feições de um santo. Parecia o de uma pessoa agitada por paixões violentas ou roída de secreta angústia. Não raro o viam estacar e baixar os olhos para recobrar o domínio de si mesmo e impedir que lhe adivinhassem os pensamentos. Mas ninguém prestava a isso a menor atenção.<br /><br />Não longe de Bagdá vivia um eremita por nome Maitreya, autor de numerosos milagres, cuja morada era objeto da veneração de muitos peregrinos. Tendo‑se posto acima das contingências do comum da humanidade, Maitreya conservava‑se em tamanha imobilidade que as andorinhas vinham a construíam ninhos em seus ombros. A barba, espessa como a cauda das vacas sagradas, chegava‑lhe à cintura, e o seu corpo semelhava um tronco de árvore. Vivia assim desde uns noventa anos, pois era este o seu ideal.<br /><br />Certo dia um peregrino disse na sua presença:<br />— Tooriri, de tão bom, parece uma encarnação de Ormuzd. Sem dúvida todo o sofrimento desapareceria da face da Terra se um homem destes pudesse fazer tudo quanto quisesse.<br /><br />Ainda mais rígida se fez a imobilidade de Maitreya. Evidentemente o santo homem entrara em comunicação direta com o próprio Ormuzd. Depois de pensar uns instantes, respondeu ao peregrino:<br />— Não me é possível alcançar que Ormuzd conceda a Tooriri o poder de realizar todos os seus desejos, pois assim ele se tornaria um deus. No entanto, Ormuzd, em sua bondade, permite que, de amanhã por diante, o primeiro impulso deste santo homem, em todas as circunstâncias de sua vida, se transforme em realidade.<br />— É quase a mesma coisa! — exclamou o peregrino. — O primeiro impulso de Tooriri, como todos os seus desejos, será generoso e caridoso. Venerável Maitreya, acabais de me anunciar uma nova que há de trazer a ventura a muita gente, e eu vos agradeço.<br /><br />Se a barba de Maitreya fosse menos impenetrável, poderia o peregrino ter vislumbrado a sombra de um sorriso em seus lábios empedernidos. Mas logo depois ele voltou a abismar‑se nas suas eternas cismas.<br /><br />Tornou à cidade o peregrino, regozijando‑se de antemão com os muitos atos de caridade em que se havia de patentear no dia seguinte o poder do sábio Tooriri.<br /><br />No dia seguinte, Tooriri despertou antes da mulher e fitou‑a por um momento. Movida por força misteriosa, ela se levantou, dirigiu‑se à janela, galgou o peitoril a precipitou‑se, rachando a cabeça no pavimento da rua.<br /><br />Ao sair de casa, aproximou‑se dele um grupo de mendigos a pedir esmola. Não lhes disse nenhuma palavra dura, e automati­camente a sua mão se encaminhou à bolsa; mas, antes de alcançá-­la, todos os mendigos lhe caíram mortos aos pés.<br /><br />Adiante, encontrou a linda Mandaniki, e ele, o sábio, o virtuoso Tooriri, inclinou‑se diante dela e acompanhou‑a a casa. Ali, a mulher, enquanto lhe contava a história da própria vida e ele a apertava com ternura ao próprio coração, expirou‑lhe nos braços.<br /><br />Mal deixou a residência de Mandaniki, ficou detido numa encruzilhada por certo número de veículos que obstruíam a passagem, e começou a perder a paciência. Nisto, todos os cocheiros caíram das respectivas boléias e todos os cavalos tiveram os tendões cortados como por invisível foice.<br /><br />À noite foi ele ao teatro, e pôs‑se a discutir com o erudito Sarvilaka acerca de um verso atribuído por este a Nizami, e que Tooriri julgava escrito por Saadi, o poeta das rosas. De súbito, o letrado deixou‑se cair na sua poltrona e vomitou uma golfada de sangue negro. A comédia representada naquela noite obteve grande êxito, sendo os atores unanimemente aplaudidos. Porém, poucos minutos antes que Tooriri resolvesse aderir ao reconhecimento do mérito do autor, este rendeu a alma ao Criador de maneira total­mente inesperada.<br /><br />Tooriri voltou para casa horrorizado daquela mortandade geral. Desesperado, incapaz de compreender a razão de tudo aquilo, matou‑se, atravessando o coração com um punhal.<br /><br />Na mesma noite morreu também o santo eremita Maitreya.<br /><br />Compareceram os dois ao mesmo tempo perante o sábio Ormuzd. O eremita pensava: "Não me seria nada desagradável assistir ao merecido castigo desse falso santo, cuja virtude foi por tanto tempo admirada pelos persas, mas que, num único dia em que pôde mostrar‑se tal qual era na realidade, se cobriu de inúmeros pecados e crimes".<br /><br />Porém o sábio Ormuzd falou assim:<br />— Virtuoso Tooriri, homem realmente generoso e bom, meu leal e fiel servidor, vem, entra na paz eterna.<br />— Boa bola! — exclamou o eremita.<br />— Em momento algum de minha vida falei mais sério — replicou Ormuzd. — Tooriri, desejaste o aniquilamento de tua esposa porque não era bondosa e já não tinha beleza; quiseste a morte dos mendigos porque te importunaram, e seu aspecto era hediondo; a de tua amante, porque era uma tola; o fim dos cocheiros e o extermínio dos cavalos, porque te forçaram a esperar quando tinhas pressa; o desaparecimento do letrado Sarvilaka, porque professava opinião diferente da tua; a do autor da comédia, porque obtivera aplausos maiores que os alcançados por ti. Todos esses desejos eram perfeitamente naturais. Os assassínios de que Maitreya te acusa foram, à tua revelia, efeitos do teu primeiro impulso, porquanto ninguém pode conter o seu primeiro impulso e desejo. Um homem odeia inevitavelmente o que o tolhe, e não menos inevitavelmente deseja o aniquilamento da­quilo que odeia. A natureza é egoísta, e o nome do egoísmo é destruição. O mais virtuoso dos homens é, antes de tudo, no íntimo da alma, um patife; e se lhe fosse concedido transformar em realidade o seu primeiro desejo, impulsivo e involuntário, dentro em pouco a Terra se transformaria num deserto, sem nenhum ser humano a habitá‑la. Foi o que eu pretendi mostrar, Tooriri, com o teu exemplo: o homem é julgado pelo seu segundo desejo, pois que este depende da sua vontade. Não fora o dom misterioso que, a teu pesar, tornou o teu último dia tão mortífero, tua vida teria continuado virtuosa e caridosa. O que devo considerar em ti não é a tua natureza, mas a tua vontade, que sempre tendeu para o bem e procurou sempre corrigir a tua natureza e aperfeiçoar a minha obra imperfeita. Eis por que, meu colaborador querido, eu hoje escancaro diante de ti a porta do meu paraíso.<br />— Essa é boa! — exclamou Maitreya. — Que fareis, então, por mim? Que recompensa me reservastes?<br />— A mesma — replicou Ormuzd —, embora só a tenhas merecido imperfeitamente. Foste um santo, mas, se em tudo deixaste de ser humano, humano foste no teu orgulho. Conseguiste a supressão do primeiro impulso; mas, se todos os homens fossem viver como tu, a humanidade desapareceria da face da Terra ainda mais depressa do que se cada homem possuísse o poder maravilhoso que por um dia infligi a este meu fiel servo. Ora, a mim me convém que a humanidade continue, porque isto me diverte e porque o espetáculo que me oferece chega a ser, às vezes, sublime. O teu esforço, mísero asceta, não era de todo desprovido de certa espécie de beleza, e por isso te perdôo o teu erro crasso. Numa palavra: a Tooriri abro as portas do Paraíso e o acolho em meu seio, porque sou justo; a ti, Maitreya, permito que entres, porque sou generoso.<br />— Mas... — disse Maitreya.<br />E Ormuzd, erguendo o austero semblante:<br />— Tenho dito.<br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai — Mar de Histórias — Nova Fronteira, Rio, Vol. 5)<br /> <br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-91331554684151543662008-06-22T15:56:00.000-03:002008-06-22T15:57:30.460-03:00O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO DO VOVÔ - Herman HaijermansPobres como todos da família eram, nenhum deles fora capaz de elevar-se sequer a uma moderada condição de prosperidade. Era regra invariável para eles estar constantemente alerta, à espera de alguma miraculosa reviravolta da fortuna, em virtude da qual os cofres cronicamente vazios pudessem repentinamente abarrotar-se.<br /> Jet, a filha mais velha, havia por algum tempo tido muito êxito, até o momento em que o marido fora internado no hospital. Era seu plano oferecer ao avô uma nova Bíblia com um fecho de ouro folheado, enquanto que cada um dos netos o presentearia com uma ninharia sem importância. Esse plano não exigia despesa excessiva, que pudesse ser mais tarde lamentada.<br /> Dirk tinha seis anos menos que a irmã. Três outros irmãos e irmãs haviam falecido ainda ao tempo em que a mãe deles era viva. Dirk pouco ligou à proposta da irmã; era de opinião que se o avô ia possuir uma Bíblia com um fecho de ouro, não deixaria absolutamente de usar a velha Bíblia, que havia sempre lido em companhia da mulher. Além de tudo, Dirk possuía planos próprios, e cada um tinha direito às suas convicções. Ele não entrava numa igreja havia anos, e certamente votaria contra a idéia da Bíblia. Se eles todos deviam cotizar-se para dar um presente, era preciso ter-se o assentimento de todos. Ora, Dirk havia visto uma esplêndida poltrona na vitrina de uma loja de móveis onde todos os preços haviam sofrido uma redução de vinte por cento. Oferecendo-a ao velho, algumas palavras bem escolhidas poderiam ser-lhe endereçadas com o peculiar sentido de augurar-lhe descanso nos últimos anos de sua vida. Além disso, a poltrona em que ele lia o seu jornal junto à janela era uma ruína; suas molas já cutucavam o assento.<br /> Marie era a segunda filha. Havia sido separada do marido a expensas do Estado, e agora esperava o quarto filho, antes de ser dada a sentença final. Só mesmo Dirk poderia propor uma coisa daquelas! Ninguém forçava o avô a sentar-se sobre as molas da velha poltrona; além do mais, não fora vovô quem arruinara o assento por muito usá-lo? Vovô dissera isso mil vezes. Se a família toda ia dar-lhe um presente, devia ser uma coisa útil, e não algo estúpido. Agora, um sobretudo, um gorro quentinho, um par de luvas ou uns chinelos bons e fortes, isso, sim, seria prático e quase nada dispendioso.<br /> Piet e Frans, nenhum deles havia contribuído com alguma coisa para a caixa familiar durante o ano anterior. Haviam visitado várias vezes a casa de penhores e tiveram que ser auxiliados pelo avô. Fizeram mais barulho que todos os outros e manifestaram-se irrevogavelmente contra a Bíblia, a poltrona e o sobretudo. Tinham idéias grandiosas, porém sem o cum quibus para realizá-las; falaram em decorar a sala de estar com bandeirolas e festões, enquanto vovô estivesse dormindo, e calcularam o custo de um generoso estoque de aguardente, licores e gim.<br /> Henk era o mais novo. Havia recentemente se engajado para o serviço nas Índias Orientais. Apesar de haver já há muito gasto o último vintém do prêmio do alistamento, achava que o problema da decisão acerca do presente (restavam poucos dias para a data do aniversário) deveria ser resolvido com oferecer-se ao velho uma fotografia da família inteira, filhos e netos, todos juntos num grupo. Seria uma bela coisa para todos, especialmente para o próprio Henk, quando estivesse longe, nas Índias.<br /> Depois de alguma discussão, essa proposta foi aceita. E no dia seguinte lá se dirigiram eles ao estabelecimento fotográfico e posaram. Membro algum da família faltou, e mesmo Toon, o marido de Jet, que havia saído do hospital na noite anterior, com a barba muito crescida, conseguiu estar presente. As mulheres — Marie, Truns e Jet — sentaram-se em cadeiras, no centro do grupo. Os homens — Dirk, Piet, Frans, Henk e Toon — puseram-se atrás, de pé, Piet na extremidade esquerda, com seu filho de um ano e meio, e Henk, no seu uniforme novo, na extremidade direita, com Santje, a mais nova das choramingas crianças de Jet. Os outros cinco netos ajoelharam-se no assoalho, apoiados aos joelhos das mães.<br /> Eram quatorze ao todo, um número a mais que o aziago. Disse o fotógrafo que raramente tivera o prazer de ver um grupo mais distinto no seu estúdio. Entretanto, não foi fácil para o artista executar o seu trabalho. Willy de Piet sustentou um berreiro contínuo, pois o amedrontava o barbudo sujeito que metia a cabeça sob o pano negro; e quando o fotógrafo sacudiu uma boneca sobre a câmera, a fim de atrair a atenção dos outros pequenos, Willy deu tal grito que Truns teve de levantar-se para acalmá-lo. Isso continuou por um inteiro quarto de hora, e quando finalmente conseguiram desembaraçar-se, estavam em tal tensão que se punham a rir quando alguém suspirava ou falava. As primeiras duas tentativas de pose não tiveram êxito. Na primeira, Santje espirrou — de propósito, pareceu — e justamente quando o fotógrafo acabou de contar até três, Henk berrou. Na segunda vez, Kareltje de Marie pôs-se de pé muito cedo, porque pensou que a coisa terminara, e queria acertar as contas com Jan de Jet que o havia beliscado. Cada uma das crianças recebeu o seu puxão de orelha. Depois que amainou a choradeira, e que cada um se manteve quieto, na sua melhor posição domingueira, tudo foi bem na terceira tentativa.<br /> Ninguém esperava que o fotógrafo fosse pedir um pagamento imediato; mas, conhecendo ele Dirk, que trabalhava na mercearia em frente, insistiu no recebimento. O rapaz deu-lhe por conta dois florins, e o profissional prometeu que o retrato estaria pronto na Quarta-feira de manhã, às dez horas.<br /> — Mas — perguntou prudentemente Dirk, — e se a coisa não sair bem?<br /> — Nesse caso — replicou o fotógrafo, — vocês não precisam pagar.<br /> — Muito bem, então — disse Dirk, com evidente alívio.<br /> Naturalmente tudo foi conservado em segredo para o avô. Quer dizer: sobre o caso ele foi informado, até à noitinha, por não mais que quatro membros da família. Jan de Jet havia aparecido à tarde, com sua irmã, para pedir balas e dois centavos.<br /> — Vovô — disse ele —, eu sei o que o senhor vai ganhar no seu aniversário; o senhor nem pode imaginar o que é.<br />O velho riu, e tirando o cachimbo de entre as desdentadas gengivas, perguntou:<br /> — É uma coisa muito bonita, hein, Jan?<br /> — Nós não devemos dizer, vovô.<br /> — É coisa boa de se comer?<br /> — Não. Estragaria o seu estômago — disse ele, rindo.<br /> — É coisa para ler, heim?<br /> — O senhor pode ler.<br /> — Coisa para a gente sentar-se?<br /> — O senhor pode sentar-se nela, ah, ah!<br /> — Para vestir?<br /> — Não. O senhor não pode vesti-la.<br /> — Bem, eu acho que não posso adivinhar o que é — disse ele sorrindo alegremente.<br /> Na esperança de que os dois centavos que invariavelmente recebia do avô todos os domingos pudessem ser aumentados para três, o pequeno deixou escapar um indício.<br /> — Todos nós — papai, mamãe, Marie, tia Truns, tio Dirk, tio Piet, tio Henk bem vestido com seu uniforme e os garotos — tivemos que ficar bem quietinhos por mais de meia hora, para conseguir a coisa.<br /> — Ah, sim? — e o velho meneou a cabeça. — E isso será posto numa moldura?<br /> — Não tenho licença para dizer.<br /> Uma hora mais tarde Henk entrou para tomar um gole de qualquer coisa.<br /> — Pois é, papai, o senhor terá uma surpresa na Quarta-feira. Vai haver alguma coisa que o senhor nunca viu igual antes. Jet queria lhe dar uma Bíblia nova. Dirk preferia uma poltrona, e Marie um sobretudo. Mas eu bati o pé; sei que o senhor não ligaria a coisas como essas. Assim, eu disse... Bem, o senhor vai ver. Não tem graça se souber antes.<br /> — Aposto que eu posso adivinhar o que é. Posso sentir o cheiro no ar.<br /> — Pois eu aposto com o senhor. Mesmo se o senhor ficar imaginando o dia inteiro e a noite inteira...<br /> Por um momento o velho permaneceu silencioso, a pensar, por detrás de uma nuvem azulada de fumo; e de repente disse:<br /> — É uma coisa quadrada. Tem vinte e oito olhos, vinte e oito mãos, vinte e oito orelhas e quatorze bocas. Não estou longe, estou?<br /> — Puxa vida! — exclamou Henk. — Será que já deram com a língua nos dentes? Bem, e o senhor está contente?<br /> — Eu estava mesmo para lhe dizer — continuou o avô — que você precisava tirar uma fotografia antes de partir para as Índias. Nós não nos veremos de novo tão cedo.<br /> Mais tarde, no mesmo dia, Dirk e tia Jet forneceram maiores indícios da grande surpresa, e ficaram desapontados quando verificaram que outros haviam revelado o segredo. Agora que aquilo não era mais um segredo, todos concordaram em que a fotografia era, afinal de contas, o melhor presente, bem superior ao que teria sido a Bíblia, a poltrona ou o sobretudo. Uma fotografia da família era, bem pesadas as coisas, um presente para todos e para todo o tempo. Vovô receberia uma cópia grande, numa moldura, enquanto os outros teriam cópias comuns, sem moldura. Cada um deles, tanto os pequenos quanto os adultos, encheram-se da mais aguda curiosidade, à espera de poder ver a fotografia.<br /> Terça-feira à noite, após vovô ter-se recolhido (um velho senhor de 70 anos não pode ficar acordado até tarde), Dirk, Piet e Henk enfeitaram a sala de estar em grande estilo. Bandeirolas e festões decoraram o alto das paredes e fizeram com que o aposento parecesse o local de um casamento. Acima do espelho dependuraram uma folha de cartolina, na qual letras prateadas, recortadas por Truns, diziam o seguinte: Que Deus Lhe Dê Muitos Anos Mais Para Viver Entre Seus Filhos e Netos. Ao redor dos braços e no encosto da poltrona em que morrera a Vovó, fora entretecida uma grinalda de rosas de papel.<br /> Para que o velho não suspeitasse o que eles faziam, moveram-se calçados apenas em meias. E para não acordá-lo, prenderam as decorações com grampos de cabelo, em vez de usarem martelo e pregos. Jet e Marie tiveram que voltar para casa com os cabelos soltos, pois usaram todos os seus grampos.<br /> Na manhã da grande festividade, o sol refulgiu brilhantemente nos cortinados de tule, e de tal maneira dourou as flores nas janelas, que tornou impossível a não integração num clima de dia festivo. Nessa amável manhã a sala inteira, alegrada com os festões e as bandeirolas, apresentava-se de fato extraordinariamente grandiosa. Às nove horas ofereceram ao vovô uma grande chávena de chá, acompanhada de duas fatias de pão com manteiga. Era preciso mantê-lo lá em cima até que a fotografia chegasse, às dez. O fotógrafo prometera entregá-la a Dirk, a essa hora, e naturalmente cumpriria a sua palavra.<br /> Todos se haviam vestido da melhor maneira. Jan de Jet ensaiava o poema que iria recitar para o avô quando este chegasse. Os passos dele eram agora audíveis; ele andava lá em cima de um lado para outro. Já havia chamado duas vezes, perguntando quanto tempo teria que esperar.<br /> À batida das dez, Dirk entrou pelo pequeno jardim, vindo da rua. Mas suas mãos estavam vazias e sua expressão era lastimosa.<br /> — Onde está a fotografia? — gaguejou Jet, tremendo de excitação. — Ele não a entregou a você?<br /> — Você não a trouxe consigo? — perguntou Marie. — Pelo amor de Deus, diga alguma coisa! Por que está parado desse jeito?<br /> — O velho unha-de-fome! — rosnou Dirk, cerrando os punhos. — Ele a mandou, sem dúvida, mas com a conta a ser paga à vista.<br /> — Sim, e ele que prometeu... Gostaria de rebentar-lhe os dentes! Como se eu não fosse pagá-lo!<br /> — Então, por que você não lhe deu o dinheiro? — perguntou Truns, com perfeita inocência, embora já estivesse determinada a não pagar a sua quota enquanto a fotografia não tivesse sido entregue. — Nós todos estamos prontos a entrar com a nossa parte.<br /> — Que diabo! — assanhou-se Dirk. — Você anda com tanto dinheiro sobrando no bolso? Você esperava que eu pagasse o homem com o dinheiro da caixa da mercearia?<br /> — Calma, calma! — disse Frans, tentando suavizar as coisas. — Ninguém poderia exigir isso de você. Afinal de contas, o fotógrafo não disse a nós todos que não teríamos de pagar nada se a fotografia não saísse boa? Pagamento à vista, que idéia! Não se pode pedir a ninguém que compre nabos em sacos fechados, sem examiná-los antes!<br /> — Bem, será uma surpresa para nós todos — disse Piet, que estava perfeitamente desinteressado acerca da questão do pagamento.<br /> Nesse momento entrou Henk.<br /> — Então, onde está ela? — perguntou, com o ar importante de quem havia cogitado da idéia em primeiro lugar e já pago a sua quota.<br /> — Podemos esperar sentados — respondeu Jet. — Esse sórdido fotógrafo não a entregará sem o pagamento.<br /> — Então?...<br /> — Então coisa nenhuma! — disse asperamente Dirk. — Eu não tinha o que faltava pagar, e o entregador levou a fotografia de volta.<br /> — Bom Deus! — disse Henk. — Eu pensei que você conhecesse o sujeito. Você combinou as coisas.<br /> — Eu posso obrigar o sujeito a entregá-la? — disse Dirk. — Fui procurá-lo, mas ele não estava; não voltará até a tarde. Se você tivesse pago a sua parte, eu não teria ficado com cara de idiota.<br /> — Não me diga que, se tivesse tentado...<br /> — Você é assim tão liberal? — replicou Dirk com calor. — Se em vez disso tivéssemos comprado a poltrona, não teríamos que receber coisa que não tivéssemos visto.<br /> Em meio a essa discussão, a porta rangeu e vovô apareceu. Já havia chamado três ou quatro vezes do topo da escada; queria saber quando poderia descer, e estava curioso por conhecer a razão da contenda.<br /> — Uma vez que parece que vocês me esqueceram — disse ele, radiante, — pensei que seria melhor eu mesmo dar uma olhadela, sim senhores.<br /> Estava cuidadosamente barbeado e usava uma imaculada gravata branca. Fumava o novo cachimbo, dado por Jan como seu primeiro presente, quando lhe levara o chá, lá em cima. Olhava para a decoração com a vista turvada.<br /> — Parabéns, papai! — gritou Jet, beijando as pergamináceas faces do velho. — Muitas outras felizes vezes!<br /> Chegaram-se então os outros, cada um por sua vez, dirigindo-lhe as suas saudações de aniversário, enquanto ele se sentava na poltrona enfeitada e lia a inscrição na cartolina acima do espelho. Agradeceu em voz trêmula as suas atenções, meneando a cabeça. Depois que acabou, lançou o olhar em derredor, expectante, em busca do grande presente. E de seis bocas ouviu simultaneamente a história do trágico acontecimento e da inominável torpeza do fotógrafo.<br /> Mas já antes da noitinha a felicidade estava restaurada: a fim de não desapontar seus numerosos filhos, filhas e netos, e turvar a glória do pretendido presente, o próprio avô completou a importância devida.<br /><br /><br />(Herman Haijermans, in Maravilhas do conto universal – Cultrix, SP, 1958)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-85258041733465516082008-06-22T15:54:00.000-03:002008-06-22T15:55:38.242-03:00O OVO EMPRESTADO - Conto tradicional hebreuNum dia em que os pajens do rei David tomavam refeição juntos, foram-lhes servidos ovos cozidos. Um dos pajens estava mais faminto do que os outros, e consumiu antes a sua parte. Quando os demais começaram a comer, ele ficou com vergonha de estar com o prato vazio, e abordou o colega mais próximo:<br /> — Empreste-me um dos seus ovos.<br /> — Com prazer. Mas desde que você me prometa devolvê-lo, quando eu o solicitar, com todos os rendimentos que ele me teria proporcionado.<br /> O pajem não viu inconveniente em assumir esse compromisso, e aceitou. Pôde então adornar com um ovo a desolada solidão do seu prato.<br /> Muito tempo depois, o que havia feito o empréstimo veio cobrá-lo.<br /> — Muito bem — concordou o pajem. — Então eu vou lhe dar um ovo, pois foi este o empréstimo que você me fez.<br /> — Nada disso! Você tem de acrescentar os rendimentos que o meu ovo me daria durante todo esse tempo.<br /> Discutiram, mas não havia meio de chegar a um acordo, pois os cálculos de rendimentos geraram números estratosféricos. Decidiram então apelar para o julgamento do rei David.<br /> Quando entravam no palácio, encontraram Salomão, filho do rei, que tinha por costume perguntar sempre o objetivo da visita. Fez a pergunta habitual aos dois jovens, que lhe deram todas as explicações. Salomão então lhes disse:<br /> — Submetam então a vossa querela a meu pai, e depois digam-me qual terá sido a sentença.<br /> Os jovens se apresentaram a David e lhe expuseram o compromisso que havia entre os dois, de devolução do ovo com os rendimentos que teria proporcionado. O compromisso havia sido assumido diante de testemunhas, e foi fácil comprová-lo. Então David sentenciou:<br /> — Assim sendo, a sua obrigação é pagar.<br /> — Nunca me neguei a pagar. O que não concordo é com o volume da dívida que ele me está cobrando.<br /> Dirigindo-se ao credor, David perguntou:<br /> — Quais são as contas que você está fazendo?<br /> — Senhor, no prazo de um ano um ovo produz uma galinha. Essa galinha põe no mínimo vinte ovos, que no fim de um ano se transformam em vinte galinhas. Cada uma delas, por sua vez, põe vinte ovos que geram vinte galinhas, perfazendo quatrocentas. O cálculo se estende a cinco anos, que é o tempo decorrido desde o empréstimo.<br /> — Acho o cálculo bem feito. Neste caso, é isso o que você tem que pagar — disse o rei, dirigindo-se ao devedor.<br /> Saiu dali o pajem decepcionado, vendo que de acordo com esses cálculos os rendimentos se transformaram numa dívida absurda. Na saída, Salomão lhe perguntou:<br /> — Qual foi a sentença do rei?<br /> — Ele disse que tenho de pagar tudo o que o meu companheiro sustenta que lhe devo. Mas nem vejo como o conseguirei, pois a quantia é altíssima.<br /> — Não se desespere por isso. Vou lhe dar um bom conselho, que resolverá o problema.<br /> — Deus o recompense por isso!<br /> — Faça então o seguinte — e deu-lhe então Salomão as orientações sobre como deveria proceder.<br /> No dia seguinte o pajem se pôs à margem de uma estrada muito movimentada, com um prato de favas cozidas na mão. Quando se aproximava um grupo de soldados ou pessoas de importância, ele se punha a escavar a terra, como se estivesse plantando algo. Estranhando essa atitude, muitos perguntavam:<br /> — O que está fazendo aí?<br /> — Quero ver se estas favas cozidas conseguem germinar.<br /> — Você deve estar louco! Onde já se viu favas cozidas germinarem!?<br /> — Nada mais natural. Seria mais assombroso alguém conseguir obter uma galinha de um ovo cozido.<br /> O pajem passou todo o dia dando a mesma resposta a todos que o abordavam. Como era de esperar, logo o fato chegou ao conhecimento do rei David, que entendeu a mensagem e ordenou o comparecimento do pajem à sua presença.<br /> — Quem te sugeriu o que andas fazendo, de semear favas cozidas?<br /> — Por Deus, senhor! Foi o vosso filho Salomão.<br /> David mandou chamar o príncipe, e lhe perguntou:<br /> — Como te ocorreu dar ao pajem esse conselho, que resolve tão bem o problema?<br /> — Como poderia o jovem responder por coisas que se baseiam apenas num disparatado pressuposto? Depois que um ovo é colocado em água fervendo, já não pode ser considerado uma galinha em potencial. Um ovo cozido é tão apto para germinar como uma fava cozida. Então...<br /> David não poderia negar a evidência. Chamou à sua presença os dois contendores, e ordenou ao devedor:<br /> — Devolva ao credor somente um ovo, e tua dívida estará quitada.<br /> Por isso deve-se sempre seguir o provérbio: “Deixa a sentença nas mãos do rei, e a justiça nas mãos do filho”.<br /><br /><br />(Conto tradicional hebreu, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-90142467232172142622008-06-20T09:34:00.000-03:002008-06-20T09:36:13.078-03:00O NATAL DO OFICIAL DE JUSTIÇA - Dimitr Ivanov— Chegaremos em tempo, meu senhor. Não se preocupe, que chegaremos ainda com a luz do dia. Veja... lá está a aldeia, ao pé da colina. Não é longe. Assim que galgarmos aquela encosta, poderemos nos considerar lá.<br /> E o jovem cocheiro, fazendo estalar o chicote por cima das costas dos magros cavalos, gritou vigorosamente para os animar:<br /> — Eia! Eia, meus patrões!<br /> As quatro rodas do coche leve chapinhavam pior que nunca, na lama pastosa da estrada campestre. O velho esqueleto desconjuntado da viatura gemia lastimosamente, através da enervante monotonia da planície encharcada pelas últimas chuvas de dezembro.<br /> O moço camponês gritou mais uma vez para os cavalos, instalou-se menos confortavelmente na boléia, bateu o boné molhado na capa espessa que o envolvia, e com a mais perfeita despreocupação pôs-se a cantar uma toada alegre.<br /> — Como é o seu nome, rapaz? — perguntou o homem gordo, abafado num capotão de pele de lobo, que ia dentro do coche. O rapaz continuou a cantar.<br /> — Oh, rapaz! — gritou o homem com voz áspera.<br /> — Que é?<br /> — Seu nome! Como se chama?<br /> — Ondra.<br /> — Ah, Ah, Ondra! É um rapaz muito esperto, sem dúvida! Todos aqui ficaram espertos. Uns grandes velhacos, esses camponeses. Só sabem mentir e enganar. Mas mentem e enganam muitíssimo bem. Pude observá-los no tribunal. Tão inocentes como cordeirinhos... mas na verdade uns lobos. Eles zombam dos juízes.<br /> — Somos uma gente simples, meu senhor. E também uma gente caluniada. O senhor pode pensar o contrário, mas de fato não somos ruins. Nós, os camponeses, só enganamos por ignorância. Ignorância e miséria.<br /> — Ah~! Então é isso! Por causa da miséria! Que finórios! Queixam-se de miséria, mas bebem como peixes!<br /> — Pensa então que sofremos de prosperidade, senhor? Não! Não é prosperidade. Que os camponeses bebem? Sim, eles todos bebem. Para sentir-se um pouco mais felizes, não porque estejam bem de vida. Isto é uma verdade que um homem como o senhor devia escrever no seu caderno de notas.<br /> — Ah! Está me parecendo que também você costuma virar o seu copo, amigo. Pois ainda é moço demais para isto. Ainda não tem nem um fio de barba na cara. Os camponeses são todos uns perdidos. Anote o que eu estou dizendo: uns perdidos, eis aí!<br /> — Anote o senhor mesmo. Nós não sabemos escrever — disse o rapaz; e dirigindo-se aos seus esquálidos cavalos, gritou: — Eia! Eia, meus patrões!<br /> Depois, pareceu mergulhar em profundos pensamentos. Os cavalos hesitaram um momento, como se também eles estivessem pensando. O homem levantou a vasta gola do seu capote de pele de lobo, desapareceu dentro dela, e por sua vez entregou-se à meditação.<br /> Um corvo de asas arrepiadas pousou numa árvore solitária junto da estrada, e balançando-se num galho seco, grasnou lastimosamente, também ele ruminando alguma idéia. Até a melancólica atmosfera invernal parecia num estado de humor cinzento e reflexivo. Nuvens errantes de tempestade revoluteavam e fendiam-se dramaticamente sob o frio céu azul. A terra estava submersa em lama e umidade. O aspecto das aldeias, arroios, florestas e montanhas distantes obscurecia-se, deformado e sem vida, diante deles. Na planura, aqui e ali, brilhavam grandes poças de água, turvas, frias e vítreas como olhos de cadáveres.<br /> O pequeno coche avançava lentamente através da lama compacta, escorregando, oscilando, sacolejando. Uma tábua solta, a um lado, batia constante, seca e indiferentemente, martirizando sem piedade os nervos do corpulento cavalheiro envolto em sua peliça. Afinal, perdendo a paciência, ele reabriu a gola, crispou a cara balofa e reclamou:<br /> — Que barulho irritante é este? Diabo de coisa!<br /> — É apenas uma tábua que soltou. Fica aí matraqueando como um sujeito instruído: só palavrório e mais nada...<br /> — Você é mesmo esperto, Ondra, muitíssimo esperto! Sabe até enganar as mocinhas, aposto. Mas é dos que casam cedo e têm mulher bonita...<br /> O cavalheiro baixou a gola do imenso capote, disposto a prosseguir em sua tentativa de jocosidade. O jovem retrucou:<br /> — O senhor, pelo que posso concluir, veio fazer uma diligência na nossa aldeia.<br /> — Sou oficial de justiça.<br /> — E está a serviço?<br /> — Sim, a serviço, naturalmente. Um dos seus excelentes amigos pregou-me uma peça, mas desta vez está bem arranjado. Tenho um papelzinho aqui no bolso, que facilita extraordinariamente as coisas. Fui informado de que o tal está nos empulhando. Vou investigá-lo esta noite. Pode você ficar certo de que ele terá boas razões para lembrar-se de mim e deste Natal. Vou confiscar-lhe toda a cevada... até o último grão! Não só para ele aprender a andar direito, mas também como advertência ao resto da canalha, que assim não tentará mais enganar as autoridades. Vocês trapaceiam com os mercadores, lesam os habitantes das cidades, vendem-lhes ovos podres e manteiga rançosa. Mas não perderão por esperar, pois iludir a justiça é mais difícil. Nós sabemos como aplicar o castigo. Vocês precisam é de chicote, de um knut russo bem comprido, que é o único modo de ensinar-lhes alguma coisa. Todos vocês se tornaram beberrões, sem-vergonhas, uma verdadeira escória humana. Negam-se a pagar os seus impostos, são ladrões do fisco. Os interesses do Estado sofrem por causa de vocês. Ah, eu gostaria de ser o Czar, ao menos por dois dias, para corrigir vocês à minha moda! Tornaria vocês todos uns perfeitos anjinhos. Sim, senhor, uns anjinhos! Pena que eu não seja o Czar!<br /> O oficial de justiça desabotoou o capote dentro do qual se agitava, como um pinto querendo sair da casca. Ondra respondeu, com fingida simplicidade:<br /> — Oh! Mas senhor Oficial, o Bom Deus criou o mundo e previu que as mulheres não iam precisar de barba; assim, não lhes deu barba. Calculou que os burros iam precisar de orelhas grandes; assim, deu a cada um deles um bonito par de orelhas.<br /> — Pare de dizer bobagens e trate de tocar para frente. Está começando a escurecer, e eu tenho que voltar, para passar o Natal com a minha família. Você está cobrando um preço exorbitante, para andar só vinte quilômetros. Sabe como esfolar um incauto passageiro. Mais depressa, que senão esses matungos pegam no sono!<br /> — Eia! Eia, meus patrões!<br /> — Patrões, heim! Por que não os chama de irmãos? — perguntou, sarcástico, o oficial de justiça.<br /> — Eles não gostariam disso, senhor Oficial. Eu os insultaria se os chamasse de irmãos. Pois não são mesmo uns perfeitos cavalheiros? E o serviço deles é oficial, correm sempre dentro da tabela. De manhã, levantam-se. Numa hora determinada, comem e bebem. São depois atrelados e vão, pode-se dizer, para os escritórios deles, e puxam até o anoitecer. Comem sua ceia na hora certa, bebem água, “lêem os jornais”, por assim dizer, e vão dormir. O tipo da vida oficial!<br /> — Onde você arranja a sua cachaça, rapaz? Deixe de baboseiras e vamos tocando. Não quero chegar tarde. Você tem cara de maroto, rapaz, de refinado maroto, é o que lhe digo.<br /> — Não há lobos nas redondezas, senhor Oficial, se é por isso que está com receio — esclareceu o jovem cocheiro, num tom que fez o digno representante da justiça lançar ao redor de si olhares apreensivos.<br /> — Não tenho medo de lobos, amigo, mas do frio. Não disponho de tempo para curar um resfriado.<br /> Permaneceram em silêncio por um momento.<br /> — Então o senhor vem em missão oficial? Quem vai ser a vítima desta vez? — indagou Ondra, olhando seriamente o rosto do passageiro.<br /> — Ora, por que não dizer a você? — disse o oficial de justiça, depois de pensar alguns instantes. — É um tal de Stanoycho, homenzinho magro de pescoço grosso.<br /> — Eu o conheço. Então o senhor vai confiscar a cevada dele? Mas é um homem pobre, senhor Oficial. Perdoe-o por esta vez. Estamos no Natal, como sabe, e tudo o mais.<br /> — Pobre, talvez, mas canalha, com certeza!<br /> O agente da justiça caiu em silêncio. Anoitecia. Os cavalos pareciam mal poder arrastar-se até o topo da colina, depois da qual ficava a aldeia. Ondra não mais os animava com a voz, nem sacudia o seu longo chicote sobre eles. Parou de falar, esqueceu-se de cantar e perdeu-se em meditação.<br /> Quando atingiram o alto da colina e começaram a descer pelo outro lado, a noite caíra, mas ainda não havia sinal da aldeia. Um vento frio e penetrante soprava sobre a terra encharcada. Nuvens dispersas fugiam para as montanhas. A abóbada azul do céu gelado clareou, ampliou-se e elevou-se a maiores alturas. Logo apareceram, frias e cintilantes, as primeiras estrelas. O ar estava perceptivelmente mais frígido. Os cavalos, já agora em terreno plano, marchavam lenta, preguiçosamente.<br /> — Toque esses bichos! Meta o chicote neles! Grande palerma! Acabamos é morrendo de frio — vociferou o furioso passageiro.<br /> Ondra gritou com indiferença para os cavalos, e molemente agitou o chicote sobre suas cabeças, mas as pobres bestas extenuadas, quase inertes, continuaram a puxar o coche como se nada tivessem ouvido.<br /> Ondra estava pensando no mísero Stanoycho, cuja cevada o oficial de justiça ia confiscar na manhã seguinte. “Foi você quem me trouxe esta desgraça, Ondra!” — diria Stanoycho, e quando terminasse de lançar a culpa sobre ele, convidaria Ondra para comer à sua mesa, junto com toda a família, e então choraria. Sim, ele certamente choraria. O coração de Stanoycho era mole. Ondra sabia disto. Ele precisava ajudar o pobre homem, arranjar meio de dizer-lhe para esconder a sua cevada durante a noite e deixar o paiol vazio, que do contrário ele e sua família curtiriam um ano de fome. Sim, ele precisava fazer alguma coisa.<br /> Lama por toda parte. Lama grossa, profunda, e nada mais que lama. A própria estrada afundara na lama e não levava já a parte alguma, senão a mais lama. Ondra puxou as rédeas e deteve os cavalos.<br /> — Estamos em perigo de nos perder, senhor Oficial.<br /> E os olhos de Ondra perscrutavam a escuridão. O oficial olhou muito sério para o rosto do cocheiro, no qual não era visível qualquer traço de mistificação.<br /> — Abra esses olhos, rapaz, senão terá que ajustar contas comigo. Fique sabendo que eu tenho a mão pesada.<br /> Ondra sacudiu as rédeas, estalou o chicote e gritou:<br /> — Segure-se bem, senhor Oficial!<br /> Muito ao longe, diante deles, as luzes da aldeia brilhavam fracamente. O eco distante do latir de cães. Alguns pés à direita, luzia a superfície perlácea de uma grande poça de água imóvel. O coche virou naquela direção.<br /> — Que é isto? — perguntou o passageiro.<br /> — Um charco, meu senhor. A estrada passa através dele. Não é profundo, esteja tranqüilo. Apenas alguns buracos aqui e ali. Eu geralmente evito cair neles, a pé ou de carro. Eia, meus patrões! Segure firme, senhor Oficial.<br /> Os cavalos chapinharam na água glacial, que refletia o céu estrelado. Prosseguiram com progressiva cautela, mas sempre aos solavancos, à proporção que afundavam cada vez mais no charco. A superfície morta da água esverdeada parecia adquirir vida.<br /> — Pare, seu estúpido! — berrou o oficial de justiça, aterrorizado, ajustando bem o capote em torno do corpo. — Você acabará me afogando, bandido! Não vê que o carro está se enchendo de água? Pare! Pare!<br /> Ondra puxou as rédeas. O coche afundou mais na água, parando no meio do charco, cujas margens se perdiam na escuridão impenetrável.<br /> — Eia! Toca pra frente! — gritou Ondra aos seus cavalos.<br /> Sua voz jovem e poderosa ecoou através da noite. Perto, alguns patos selvagens sacudiram excitadamente as asas e perderam-se na sombra.<br /> — Acho que também nós teremos que virar patos para sair daqui — disse Ondra, pensativamente — do contrário...<br /> — Animal! Espere até que eu me veja livre disto! Quebrarei todos os ossos do seu esqueleto! Vamos nos afogar aqui como ratos! Miserável! Cretino!<br /> — Não, não morreremos afogados, meu senhor, esteja tranqüilo. No escuro, qualquer um pode perder o caminho. Sossegue — disse calmamente Ondra, e começou a examinar os arreios. Pôs-se a afivelar e desafivelar várias correias, praguejando alto, atando, desatando, reclamando sempre. Finalmente endireitou-se no seu lugar sobre a boléia, estalou o chicote e bradou:<br /> — Eia! Eia, meus patrões!<br /> Os cavalos puxaram, o coche deslocou-se um pouco. Subitamente um dos animais desprendeu-se do varal e avançou pelo charco, livre das correias. O outro cavalo continuou preso ao coche.<br /> — Energúmeno! Como foi isto? — berrou o passageiro.<br /> — Pára, Dorcha! Dorcha! — gritou Ondra. E continuou a chamar o animal solto, para que retornasse ao coche.<br /> Mas o cavalo, amedrontado pela água, logo afastou-se em direção à margem do charco, onde pouco a pouco foi desaparecendo, indiferente aos apelos do seu dono. O oficial de justiça levantou-se, no auge da excitação, o terror estampado em cada um dos seus traços. No mesmo instante Ondra pulou sobre o outro cavalo, e lá se foi atrás de Dorcha, continuando a chamar insistentemente:<br /> — Dorcha! Dorcha, espera! Volta... Dorcha, Dorcha!<br /> — Aonde vai você? Pare aí! Que pretende fazer, bandido? Miserável! Você não sairá vivo das minhas mãos.<br /> Na escuridão, uma gargalhada alegre soou, como única resposta.<br /> — Ah! Quer me deixar aqui, não é? Para morrer! Para que os lobos me devorem!... Ondra, não faça isto, eu lhe peço! — implorou o coitado com voz trêmula.<br /> — Não tenha medo, meu senhor. Não existem lobos no pantanal. Só precisa é de se agasalhar, para não sentir muito frio. Amanhã de manhã... bem cedinho... virei buscar o senhor. Há cevada no coche. Pode fazer com ela uma cama, e eu não lhe cobrarei a dormida.<br /> — Ondra, deixe de brincadeiras! Não me abandone! Volte! Leve-me embora daqui!<br /> — Está muito escuro, meu senhor. Não estou enxergando nem a ponta do meu nariz. E o outro cavalo fugiu. Nada posso fazer pelo senhor. Sinto muito, acredite...<br /> O oficial de justiça ouviu a voz zombeteira que se afastava na escuridão. Apavorado ante a iminência de ficar sozinho no meio do charco sinistro, rompeu em lacrimosos clamores:<br /> — Ondra, volte! Por favor... por favor! Eu pago o que você quiser... pago qualquer preço! Ajude-me a sair deste maldito pântano! Não me abandone! Eu tenho filhos! Eles estão me esperando... Estamos no Natal! Você não tem coração?...<br /> A voz do passageiro partiu-se num soluço de desespero. Prestou atenção. Nenhum som. Então, como se abandonado também pelo próprio entendimento, invectivou a escuridão muda:<br /> — Hei, amigo! Animal! Estúpido! Volte! Bandido! Tire-me daqui! Tenha pena de mim! Meus filhos! O Natal! Cocheiro do inferno! Cão imundo!...<br /> E tornando a cair sobre o assento do coche, como que mergulhou dentro da gola do capote e pôs-se a chorar como uma criança.<br /> Mas a noite negra não lhe deu resposta.<br /><br /><br />(Dimitr Ivanov, in Maravilhas do conto universal – Cultrix, SP, 1958)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-84785596731168199462008-06-20T09:33:00.000-03:002008-06-20T09:34:29.446-03:00O MEDO - Guy de MaupassantDepois de jantarmos, retornamos ao convés do navio. Diante de nós, a superfície lisa do Mediterrâneo refletia uma lua tranqüila. O enorme navio sulcava as águas sob um céu semeado de estrelas, e a esteira branca que deixava para trás brincava em espumas, parecendo retorcer-se em claridades tão buliçosas, que se poderia dizer que a luz da lua estava fervendo.<br /> Seis ou sete homens permanecíamos ali, em silenciosa admiração, enquanto viajávamos para a África distante. O capitão retomou a conversa que havíamos tido durante o jantar:<br /> — Sim, naquele dia eu tive medo. Meu navio permaneceu seis horas açoitado pelas ondas, com um penhasco encravado no ventre. Por sorte, à noite passou um navio mercante inglês, que nos viu e nos recolheu.<br /> Então um dos presentes resolveu contestar a expressão usada pelo capitão. Era um homem alto, de cara bronzeada pelo sol, com aspecto grave; um desses homens que à primeira vista nos dão a impressão de haver percorrido vastos países desconhecidos em meio a incessantes perigos, e cujo olhar sereno parecia guardar, na sua profundidade, algo das estranhas paisagens que vira; um desses homens que adivinhamos dotado de têmpera extraordinária.<br /> — Capitão, o Sr. diz que teve medo, mas não o creio. O Sr. parece enganar-se sobre a palavra e sobre a sensação que teve. Um homem enérgico como o senhor nunca sente medo diante do perigo. Sente emoção, nervosismo, ansiedade, mas medo é outra coisa.<br /> — Discordo! Asseguro-vos que tive medo!<br /> — Permita-me que lhe explique. Até os homens mais intrépidos podem ter medo. Mas o medo é algo espantoso, uma sensação atroz, como uma desintegração da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, cuja simples recordação dá estremecimentos de angústia. Mas quando se é valente, isso não ocorre nem diante de uma batalha, nem diante da morte inevitável nem diante de nenhuma das formas conhecidas do perigo. Acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e diante de riscos indefinidos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos fantásticos terrores primitivos. Um homem que acredita em fantasmas, e que imagina ver um espectro na noite, deve experimentar o medo em todo seu espantoso horror.<br /> Eu descobri o que de fato é o medo há uns dez anos, em pleno dia. E pude experimentá-lo também no último inverno, numa noite de dezembro. Na verdade, passei já por muitas situações, muitos reveses, muitas aventuras que pareciam mortais: em certa ocasião, uns ladrões me deixaram como morto; na América, fui condenado à forca por motivo de rebelião; na China, fui jogado ao mar, da proa de um navio. Cada vez que me julguei perdido, tomei minhas decisões imediatamente, sem vacilar, e até mesmo sem pensar. Mas isso não é o medo.<br /> Observem, senhores, que entre os orientais a vida não conta para nada. Logo se resignam. As noites são claras, órfãs das sombrias inquietudes que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas se ignora o medo. Vou narrar-lhes o que me aconteceu na África.<br /> Percorria eu as grande planícies ao sul de Ouargla. É um dos mais estranhos países do mundo. Os senhores conhecem a areia fina, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Imaginem agora o próprio oceano convertido em areia, em meio a um furacão. Imaginem uma tempestade silenciosa das ondas imóveis de pó amarelo. Essas ondas desiguais são altas como montanhas, encrespadas como torrentes desencadeadas, mas maiores ainda, e estriadas como a ágata. Sobre esse mar furioso, mudo e sem movimento, o sol devorador do Sul lança sua chama implacável e direta. Tem-se que subir nessas ondas de cinza dourada, subir mais uma vez, mais outra, subir sem cessar, sem descanso e sem proteção. Os animais se atolam até os joelhos, e resvalam ao descer pela outra vertente das surpreendentes colinas.<br /> Éramos dois amigos, escoltados por oito spahis seguidos de quatro camelos com seus cameleiros. Íamos por aquele deserto ardente sem falar, assolados pelo calor, pelo cansaço e pela sede. Subitamente um dos homens deu um grito, e todos paramos e permanecemos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenômeno que os viajantes dessas regiões perdidas conhecem bem. Em algum lugar, perto de nós, numa direção indeterminada, soava um misterioso tambor, o misterioso tambor das dunas. Soava claramente, ora mais vibrante ora menos, cessando e logo recomeçando seu som fantástico. Os árabes, espantados, olhavam-se uns aos outros. Um deles disse:<br /> — A morte vem para cima de nós.<br /> De repente meu companheiro, meu amigo quase como um irmão, caiu do cavalo, de bruços, mortalmente atingido pela insolação. Durante duas horas, enquanto eu procurava em vão salvá-lo, aquele tambor, sempre impossível de localizar, me aturdia os ouvidos com seu ruído monótono, intermitente, inexplicável. Então senti que o medo, o verdadeiro medo, o horrível medo, me penetrava até à medula dos ossos, diante daquele cadáver querido, naquela depressão vergastada pelo sol entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas do povoado francês mais próximo, o dobre rápido de um inatingível tambor. Naquele dia eu compreendi o que é ter medo. Mas houve uma outra vez em que compreendi melhor ainda...<br /> — Perdão, senhor, mas o que era esse tambor? — interrompeu o capitão.<br /> — Não sei. Ninguém sabe. Os oficiais que depararam com esse surpreendente ruído geralmente o atribuem ao eco aumentado, multiplicado, desmesuradamente insuflado pelas ondulações das dunas, de um granizo de areia que o vento lança contra uma mata de ervas secas, pois já se notou que o fenômeno sempre se produz nas proximidades de pequenas plantas queimadas pelo sol, duras como o pergaminho. Segundo essa teoria, aquele tambor nada mais seria do que uma espécie de reflexo ampliado desse som. Mas eu só vim a saber disso mais tarde.<br /> Agora vou lhes contar minha segunda sensação de medo. Aconteceu no inverno passado, num bosque do Noroeste da França. O céu estava tão sombrio naquele dia, que a noite caiu duas horas mais cedo. Era meu guia um camponês, que caminhava ao meu lado por uma trilha estreita numa floresta de abetos. O vento arrancava dessas árvores uma espécie de alarido. Por entre as copas das árvores eu via as nuvens que corriam, como que fugindo de um cataclismo. Às vezes, ante uma forte lufada de vento, todo o bosque se inclinava no mesmo sentido, com um gemido de sofrimento, e o frio me invadia, apesar do meu passo rápido e da minha grossa roupa de lã.<br /> Tínhamos que chegar à casa de um guarda florestal, para jantar e dormir. Não estava muito distante, e eu me encontrava ali como caçador. Meu guia às vezes levantava os olhos e murmurava: “Que tempo triste!” Falou-me sobre as pessoas para cuja casa nos dirigíamos. O pai havia matado um caçador furtivo, dois anos antes, e desde então andava preocupado, como que atormentado por uma lembrança. Seus filhos, já casados, moravam com ele.<br /> A escuridão era profunda, e eu não via nada ao redor de mim. As ramagens de todas as árvores, ao agitar-se, enchiam a noite de um rumor incessante. Afinal vi uma luz, e meu guia chamou a uma porta. Ouvimos gritos de mulheres lá dentro. Logo depois, uma voz de homem, como que estrangulada, perguntou: “Quem está aí?” Meu guia se identificou, a porta se abriu e entramos.<br /> A cena que vimos é impossível de esquecer. Um homem velho, de cabelos brancos e com olhar arregalado e fixo, como de louco, nos aguardava de pé no meio da cozinha, tendo na mão uma espingarda carregada. Dois rapazes com pedaços de pau guardavam a porta. Na obscuridade, percebemos duas mulheres ajoelhadas, com os rostos voltados para a parede. Identificamo-nos, explicamos o motivo de nossa presença ali, e então o velho largou a arma e deu ordens para que nos preparassem acomodações. As duas mulheres continuavam imóveis, então ele me explicou: “Há exatamente dois anos, numa noite como esta, eu matei um homem. Quando se completou um ano, ele veio chamar-me, e esta noite eu estou certo de que voltará novamente. Por isso estamos todos intranqüilos”.<br /> Procurei tranqüilizá-los o melhor que pude, mas intimamente estava satisfeito por ter chegado exatamente naquela noite e presenciar aquele espetáculo de terror supersticioso. Contei algumas histórias, e acabei por acalmá-los quase por completo.<br /> Perto da lareira, um cachorro velho e quase cego — um desses cães que nos lembram alguma pessoa conhecida — dormia com o focinho entre as patas. Fora, a tormenta açoitava a choupana. Por uma estreita vidraça eu via passar, projetadas por grandes relâmpagos, as sombras de árvores agitadas pelo vento. Apesar dos meus esforços, aquela gente estava dominada por um terror profundo. Cada vez que eu parava de falar, todos os ouvidos estavam atentos ao menor ruído. Cansado desses temores imbecis, eu já ia recolher-me quando o velho pulou da cadeira e pegou de novo a espingarda, balbuciando com voz trêmula: “Aí está! Aí está! Já o estou ouvindo!”<br /> As duas mulheres voltaram a cair de joelhos, cobrindo os rostos, e os filhos pegaram de novo os seus paus. Já ia eu tentar novamente tranqüilizá-los, quando o cachorro despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, olhando para a lareira com seu olhar quase apagado, e lançou um desses ganidos lúgubres, que fazem estremecer os caminhantes quando cruzam de noite locais ermos. Todos os olhos se voltaram para o animal, que permanecia agora imóvel sobre as patas, como obcecado por uma visão. O cão se pôs a ganir frente a algo invisível, desconhecido, espantoso sem dúvida, pois todo seu pelo estava eriçado. Lívido, o guarda gritou: “Ele o está farejando! Está farejando! Ele estava exatamente aí, quando o matei!”<br /> As mulheres, como loucas, fizeram coro aos ganidos do cachorro. Um grande calafrio me percorreu a espinha. A visão do animal naquele lugar, naquela hora, em meio a pessoas apavoradas, era algo horrível. Durante uma meia hora o cão ganiu sem mover-se. Um medo espantoso me ia penetrando. Medo de quê? Lá sei eu. Era medo, pura e simplesmente.<br /> Permanecemos imóveis, lívidos, à espera de um acontecimento horrendo, com o ouvido atento, o coração agitado, transtornados ao menor ruído. O cachorro se pôs a dar voltas ao redor da cozinha, farejando as paredes, sem cessar de gemer. O animal nos punha loucos. Então o meu guia se lançou sobre ele, numa espécie de paroxismo de terror furioso, agarrou-o, abriu uma porta de trás, que dava para uma espécie de cercado, e o lançou para fora da casa.<br /> O cachorro se calou logo, e permanecemos algum tempo envoltos num silêncio ainda mais terrível. De repente, todos tivemos uma espécie de sobressalto: algo deslizava contra a parede externa, em direção ao bosque. Depois passou junto à porta, que pareceu apalpar com mãos trêmulas. Novo silêncio durante uns dois minutos, que nos deixou aterrorizados. Depois voltou, roçando sempre a parede, como uma criança com suas unhas. Subitamente apareceu junto à vidraça uma cabeça branca, com dois olhos luminosos como os das feras, e emitiu um gemido — um murmúrio como de quem se lamenta.<br /> Nesse momento se ouviu um ruído formidável. O velho havia disparado sua arma, e em seguida os filhos se precipitaram para a vidraça, cobrindo-a com o tampo de uma grande mesa que reviraram. Com o estrépito do inesperado disparo, senti tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me imaginei prestes a perder os sentidos, disposto a morrer de medo. Continuamos ali até o amanhecer, incapazes de mover-nos, de dizer uma palavra, crispados, desvairados. Ninguém se atreveu a abrir a porta antes de entrever alguma claridade fora, pelas frestas das madeiras.<br /> Ao lado do muro, junto à porta, jazia o corpo do velho cachorro, com o focinho desfeito por uma bala. Havia saído do cercado, e procurara abrir alguma passagem junto à porta.<br /> Naquela noite eu não corri nenhum perigo. Mas preferiria voltar a enfrentar todos os riscos mais terríveis que já enfrentei, para não ter de viver aquele único minuto em que o tiro foi disparado na cabeça que surgiu na vidraça.<br /><br /><br />(Guy de Maupassant, in R. Menéndes Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-8530192720457997572008-06-20T09:31:00.000-03:002008-06-20T09:32:52.192-03:00O MAU ZUAVO - Alphonse DaudetO forte ferreiro Lory, de Santa Maria das Minas, não estava contente naquela noite.<br /> Habitualmente, tão logo apagada a forja, posto o sol, ele se sentava num banco diante da porta, para saborear essa boa lassidão que dá o peso do trabalho e do dia quente, e, antes de dispensar os aprendizes, bebia com eles grandes goles de cerveja fresca, olhando a saída das fábricas. Mas naquela tarde o bom homem permaneceu na forja, até o momento de se pôr à mesa; e ainda o fez a contragosto. A velha Lory, observando-o, pensava:<br /> — Que lhe estará acontecendo?... Provavelmente recebeu do regimento alguma notícia má, que não quer me dizer... Nosso filho mais velho talvez esteja doente...<br /> Contudo, ela nada ousava perguntar, e se ocupava apenas em fazer calar três crianças louras, da cor de espigas queimadas, que riam em torno da toalha, mastigando uma boa salada de rabanetes negros com creme.<br /> Por fim o ferreiro pousou seu guardanapo, colérico:<br /> — Ah! que mendigos! Ah! que canalhas!...<br /> — Que tens tu, Lory?<br /> Ele explodiu:<br /> — Que tenho? É que cinco ou seis palhaços andam a rodar desde manhã pela cidade, vestidos de soldados franceses, de braço dado com os bávaros... E ainda por cima com aqueles que... como se diz isso?... optaram pela nacionalidade prussiana... E dizer que todos os dias vemos voltar esses falsos alsacianos!...<br /> A mãe tentou defendê-los:<br /> — Que queres, meu pobre homem? Não é totalmente culpa desses moços... É tão longe essa Argélia da África, para onde os mandam!... Eles sofrem do “mal do país distante”; e a tentação de voltar, de não serem mais soldados, é bem forte entre eles...<br /> Lory deu um grande murro na mesa:<br /> — Cala-te, mãe!... Vocês, mulheres, não entendem nada. À força de viver sempre com as crianças e exclusivamente para elas, reduzem tudo à medida da criançada... Pois bem, digo-te que aqueles homens são ordinários, renegados, os últimos dos covardes. Se por infelicidade nosso Cristiano fosse capaz de semelhante infâmia, tão verdade como me chamo Georges Lory e servi sete anos nos caçadores da França, eu o atravessaria com o meu sabre.<br /> E terrível, meio erguido, o ferreiro mostrava o longo sabre de caçador pendurado à parede, por baixo do retrato do filho, um retrato de zuavo, tirado longe, na África; mas, ao ver essa honesta feição de alsaciano, toda negra e curtida de sol, nessas alvuras, nesse diluir-se das cores vivas à luz intensa, isto o acalmou subitamente, e ele se pôs a rir:<br /> — Sou tolo de perder a cabeça... Como se nosso Cristiano pudesse pensar em se tornar prussiano, ele que sofreu tanto durante a guerra!...<br /> Reposto no bom humor por essa idéia, o bom homem acabou de jantar alegremente e se foi, logo depois, esvaziar um par de chopes no “Cidade Strasbourg”.<br /> Agora a velha Lory está sozinha. Depois de ter deitado os três lourinhos que chilreiam no quarto do lado, como um ninho que adormece, ela retoma seu trabalho diante da porta, do lado dos jardins. De vez em quando, suspira e pensa: “Sim, concordo. São covardes, renegados... mas não importa! Suas mães são bem felizes de os reaverem”.<br /> Ela se lembra do tempo em que seu filho, antes de partir para se engajar no exército, estava ali, nessa mesma hora do dia, começando a cuidar do jardinzinho. Ela olha para o poço onde ele vinha encher os regadores, de blusa, os cabelos longos, os belos cabelos que lhe tinham cortado ao entrar para os zuavos...<br /> De súbito, ela estremece. A portinhola do fundo, aquela que dá para os campos, está aberta. Os cães não latiram; entretanto, aquele que acaba de entrar renteia os muros, como um ladrão, insinua-se entre as colméias...<br /> — Bom-dia, mamãe!<br /> Seu Cristiano está de pé diante dela, com o uniforme em desordem, envergonhado, confuso, a língua presa. O infeliz voltara ao país com os outros; há uma hora, perambula em torno da casa, esperando a saída do pai, para entrar. Ela queria censurá-lo, mas não tem coragem. Há tanto tempo não o vê, que nem o abraça! Em seguida ele lhe dá tão boas razões: que se aborrecia distante da região, da forja, de viver sempre longe deles; e com isso a disciplina tornada mais dura, ao lado de companheiros que o chamavam “prussiano”, por causa do seu acento da Alsácia. Em tudo que ele diz, ela crê. Não precisa senão olhar, para crer.<br /> Sempre conversando, eles entraram na sala baixa. Os pequenos, despertados, acorrem, pés nus, em camisa, para abraçar o irmão grande. Querem fazê-lo comer, mas ele não tem fome. Somente sede, sempre sede, e bebe grandes goles d’água, em cima de todas as rodadas de cerveja e vinho branco de que se serviu desde manhã no botequim.<br /> Mas alguém caminha no pátio. É o ferreiro que volta.<br /> — Cristiano, teu pai está chegando. Depressa, esconde-te, para que eu tenha tempo de lhe falar, de explicar-lhe...<br /> Ela o empurra para trás do grande fogão de faiança, depois se põe a coser, com as mãos trêmulas. Por infelicidade, a túnica vermelha do zuavo ficou em cima da mesa, e é a primeira coisa que Lory vê ao entrar. A palidez da mãe, seu embaraço... Ele compreende tudo.<br /> — Cristiano está aqui!... — diz, com voz terrível.<br /> Arranca o sabre com um gesto louco, e se precipita para o fogão onde o zuavo está enfurnado, lívido, dissipada a bebedeira, apoiando-se à parede, de medo de cair. A mãe se lança entre eles:<br /> — Lory, Lory, não o mates... Fui eu que lhe escrevi, que voltasse, que tu tinhas necessidade dele na forja...<br /> Ela se aferra ao seu braço, se arrasta, soluça. No escuro do quarto, as crianças gritam ao ouvir essas vozes encolerizadas e lacrimosas, tão alteradas que não as reconhecem mais... O ferreiro se detém, e olhando para a mulher:<br /> — Ah! foste tu que o fizeste voltar... Então, está bem; que ele se vá deitar. Verei amanhã o que tenho de fazer.<br /> No dia seguinte, despertando de um pesado sono cheio de pesadelos e de terrores sem causa, Cristiano encontrou-se em seu quarto de criança. Através das pequenas vidraças enquadradas de chumbo, entrançadas de florida trepadeira, o sol já estava quente e alto. Embaixo os malhos soavam na bigorna. A mãe está à sua cabeceira. Ela não o deixara durante a noite, tanto a amedrontava a cólera de seu marido. O velho, igualmente, não se deitara. Até pela manhã caminhara pela casa, chorando, suspirando, abrindo e fechando armários. No momento, eis que entra no quarto do filho, gravemente, vestido como que para uma viagem, com altas perneiras, o largo chapéu e o bastão de montanha, sólido e ferrado na ponta.<br /> Avança direito para a cama:<br /> — Vamos, de pé!.. Levanta-te!<br /> O rapaz, um tanto confuso, quer apanhar suas roupas de zuavo.<br /> — Não, isto não... — diz o pai severamente.<br /> E a mãe, toda temerosa:<br /> — Mas, meu amigo, ele não tem outras.<br /> — Dá-lhe as minhas... Não tenho mais necessidade delas.<br /> Enquanto o filho se veste, Lory dobra cuidadosamente o uniforme, o colete, as grandes calças vermelhas. Feito o pacote, passa em torno do pescoço o estojo de estanho onde está o roteiro...<br /> — Agora, desçamos!<br /> E os três descem à forja, sem falar. O fole ronca; toda a gente está no trabalho. Revendo o amplo galpão aberto, no qual pensava tanto quando estava longe, o zuavo se lembra da infância e de quanto ali brincou, entre o calor da estrada e as faíscas da forja, muito brilhantes na poeira negra. Toma-o um acesso de ternura, um grande desejo de obter o perdão do pai; mas, levantando os olhos, encontra sempre um olhar inexorável.<br /> Enfim, o ferreiro se decide a falar:<br /> — Rapaz, eis a bigorna, as ferramentas... Tudo isto é teu... E tudo isso também! — e mostra-lhe o jardinzinho que se abre lá embaixo no fundo, cheio de sol e de abelhas, no quadro enfumaçado da porta. — As colméias, a vinha, a casa, tudo te pertence. Uma vez que sacrificaste tua honra a estas coisas, é bom que pelo menos as conserves. És o dono aqui... Quanto a mim, vou-me embora... Deves cinco anos à França; vou pagá-los por ti.<br /> — Lory, Lory, aonde vais? — grita a pobre velha.<br /> — Pai!... — suplica o filho.<br /> Mas o ferreiro já partiu, em largas passadas, sem se voltar.<br /> Em Sidi-bel-Abbés, na sede do 3º de zuavos, encontra-se desde alguns dias um engajado voluntário de cinqüenta e cinco anos de idade.<br /><br /><br />(Alphonse Daudet, Contos – Cultrix, SP, 1993)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-87016117690034434852008-06-20T09:30:00.000-03:002008-06-20T09:31:23.597-03:00O LEPROSO DA CIDADE DE AOSTA - Xavier de MaistreA parte meridional da cidade de Aosta é quase deserta, e parece nunca ter sido muito habitada. Vêem-se ali campos agricultados e planícies que têm por limites, de um lado, as antigas trincheiras erguidas pelos romanos para lhe servirem de muralha, e de outro, os muros dos jardins. Esta região solitária pode, contudo, interessar aos viajantes. Junto à porta da cidade estão as ruínas de um antigo castelo, onde, a crer na tradição popular, o Conde René de Chalans, impelido pelos furores do ciúme, deixou morrer de fome, no século XV, a princesa Maria de Bragança, sua esposa. Daí o nome de Bramafan (isto é, grito da fome), dado a esse castelo pela gente da terra. A anedota, de autenticidade contestável, torna esse pardieiro interessante para as pessoas sensíveis que a julgam verdadeira.<br />Além, a algumas centenas de passos, há uma torre quadrangular, arrimada ao muro antigo e construída com o mármore de que ele era outrora revestido: chamam-lhe a Torre do Terror, porque o povo durante muito tempo a imaginou habitada por espectros. As velhas da cidade de Aosta recordam-se perfeitamente de ter visto sair dali, pelas noites sombrias, uma grande mulher branca, com uma lâmpada na mão.<br />Faz cerca de quinze anos essa torre foi restaurada por ordem do governo e cercada de uma muralha, para dar abrigo a um leproso e separá-lo assim da sociedade, proporcionando-lhe todos os prazeres que poderia desfrutar em sua triste situação. O Hospital de São Maurício foi incumbido de prover-lhe à subsistência, e forneceram-lhe alguns móveis, bem como os instrumentos necessários ao cultivo de um jardim. Ali vivia ele desde muito, entregue a si mesmo, sem jamais ver ninguém, a não ser o padre que de tempo a tempo ia levar-lhe os socorros da religião e o homem que todas as semanas lhe conduzia as provisões do hospital.<br />Quando da guerra dos Alpes, no ano de 1797, um militar, encontrando-se na cidade de Aosta, certo dia passou por acaso perto do jardim do leproso, cuja porta se achava entreaberta, e teve a curiosidade de entrar. Lá encontrou um homem vestido com simplicidade, encostado a uma árvore e imerso em funda meditação. Ao rumor produzido pela entrada do oficial, o solitário, sem se voltar e sem volver os olhos, exclamou em voz triste:<br />— Quem é, e que deseja?<br />O militar respondeu:<br />— Perdoe, senhor, a um estrangeiro a quem o agradável aspecto de seu jardim levou talvez a cometer uma indiscrição, mas que de modo algum pretende perturbá-lo.<br />— Não se aproxime — retrucou o habitante da torre, fazendo-lhe sinal com a mão —, não se aproxime. O senhor está diante de um pobre leproso.<br />— Seja qual for o seu infortúnio, eu não me afastarei: nunca fugi dos desgraçados. Agora, se minha presença o importuna, estou pronto a retirar-me.<br />— Bem-vindo seja! — disse então o leproso, voltando-se de repente. — E fique, se for capaz depois de me haver olhado.<br />O militar permaneceu algum tempo imóvel, de espanto e terror ante o aspecto daquele infeliz, que a lepra desfigurara de todo.<br />— Ficarei de bom grado — declarou —, se o senhor aceita a visita de um<br />homem trazido aqui pelo acaso, mas que um vivo interesse aqui o retém.<br />O LEPROSO — Interesse!... Eu nunca despertei senão piedade.<br />O MILITAR — Julgar-me-ei feliz se porventura lhe puder oferecer algum consolo.<br />O LEPROSO — É para mim grande consolo ver homens, ouvir o som da voz humana, que parece fugir-me.<br />O MILITAR — Permita-me, pois, conversar alguns momentos com o senhor e percorrer sua morada.<br />O LEPROSO — De muito bom grado, se isto lhe pode dar prazer. (Dizendo isso, o leproso cobriu a cabeça com um largo chapéu de feltro, cujas abas caídas lhe ocultavam o rosto) Passe aqui ao meio-dia. Cultivo um pequeno canteiro de flores que lhe poderão agradar; encontrará, entre elas, algumas bastante raras. Obtive as sementes de todas as que brotam espontâneas nos Alpes, e tratei de dobrar o número delas e de as embelezar pela cultura.<br />O MILITAR — Com efeito, vejo aqui flores cuja aparência me é inteiramente nova.<br />O LEPROSO — Observe essa pequena moita de rosas: é a roseira sem espinhos, que só cresce nos pontos mais elevados dos Alpes; ela já perde, porém, essa peculiaridade, e rebentam-lhe espinhos, à medida que é cultivada e se multiplica.<br />O MILITAR — Ela deveria ser o emblema da ingratidão.<br />O LEPROSO — Se algumas destas flores lhe parecem belas, pode colhê-las sem receio, e não correrá nenhum risco levando-as consigo. Eu as semeei, tenho o prazer de regá-las e de as contemplar, mas nunca lhes ponho a mão.<br />O MILITAR — Mas por quê?<br />O LEPROSO — Poderia contaminá-las, e então não ousaria mais oferecê-las a ninguém.<br />O MILITAR — A quem as destina?<br />O LEPROSO — As pessoas que me trazem provisões do hospital não têm medo de fazer ramalhetes com elas. Uma vez ou outra, também os meninos da cidade chegam à porta do meu jardim. Mal os avisto, subo para a torre, receoso de amedrontá-los ou contagiá-los. Da minha janela, vejo-os brincar e furtar-me algumas flores. Quando partem, levantam os olhos para mim: “Bom dia, Leproso” — dizem-me a rir, e isto me alegra um pouco.<br />O MILITAR — O senhor conseguiu reunir aqui muitas e diversas plantas. Vejo vinhas e árvores frutíferas de várias espécies.<br />O LEPROSO — As árvores ainda estão novas. Plantei-as com as minhas mãos, assim como aquela vinha que fiz subir até além do muro antigo que ali vê, e cuja largura me oferece um pequeno lugar para passeio; é o meu recanto favorito... Suba ao longo destas pedras: é uma escada construída por mim. Agarre-se ao muro.<br />O MILITAR — Que retiro encantador! Como é propício às meditações de um solitário!<br />O LEPROSO — Eu também gosto muito dele. Daqui avisto a planície e os lavradores nos campos; vejo tudo o que se passa e não sou visto por ninguém.<br />O MILITAR — Admiro a tranqüilidade e solidão deste recanto. A gente está numa cidade e tem a impressão de achar-se num deserto.<br />O LEPROSO — Nem sempre é no meio das florestas e dos rochedos que existe a solidão. Em qualquer parte o desgraçado está só.<br />O MILITAR — Que série de acontecimentos o conduziu a este retiro? Este lugar é a sua pátria?<br />O LEPROSO — Nasci à beira-mar, no principado de Oneille, e faz apenas quinze anos que moro aqui. Quanto à minha história, não passa de uma longa e uniforme calamidade.<br />O MILITAR — Sempre viveu só?<br />O LEPROSO — Perdi meus pais quando criança, sem nunca os haver conhecido; uma irmã que me restava morreu há dois anos. Nunca tive um amigo.<br />O MILITAR — Coitado!<br />O LEPROSO — É a vontade de Deus.<br />O MILITAR — Qual o seu nome, por favor?<br />O LEPROSO — Ah! o meu nome é terrível: chamo-me o Leproso! Ninguém neste mundo sabe o nome que recebi de minha família e aquele que a religião me deu no dia de meu nascimento. Sou o Leproso: eis o único título que tenho à benevolência dos homens. Possam eles ignorar eternamente quem eu sou!<br />O MILITAR — Essa irmã que o senhor perdeu morava em sua companhia?<br />O LEPROSO — Ela viveu cinco anos comigo nesta mesma habitação onde o senhor me vê. Tão desgraçada quanto eu, compartia as minhas dores e eu procurava amenizar as suas.<br />O MILITAR — Em que se ocupa, numa solidão tão profunda?<br />O LEPROSO — A enumeração dos afazeres de um solitário como eu só poderia ser muito monótona para um homem do mundo, que encontra a ventura na atividade da vida social.<br />O MILITAR — Ah! o senhor conhece pouco este mundo, que nunca me deu a felicidade. Muitas vezes sou solitário por gosto, e há talvez entre as nossas idéias maior semelhança do que lhe parece. No entanto, confesso-lhe, a solidão eterna espanta-me; é-me difícil concebê-la.<br />O LEPROSO — Aquele que ama a sua cela, nela encontrará a paz — ensina-nos a Imitação de Jesus Cristo. Começo a experimentar a verdade destas palavras consoladoras. O sentimento de solidão abranda-se também pelo trabalho. O homem que trabalha nunca é inteiramente desgraçado, e eu sou a prova disto. Durante o verão a cultura do meu pomar e do meu cativeiro me ocupa suficientemente. Pelo inverno faço cestas e esteiras; trabalho no feitio das minhas vestes; preparo cada dia o meu alimento com as provisões que me trazem do hospital, e a prece me enche as horas de lazer. Enfim, o ano se escoa, e, depois que passou, ainda me parece ter sido muito curto.<br />O MILITAR — Deveria parecer-lhe um século.<br />O LEPROSO — Os males e os sofrimentos tornam as horas aparentemente longas; mas, em verdade, os anos voam sempre com a mesma rapidez. Aliás, ainda existe, no último extremo do infortúnio, um prazer que o comum dos homens não pode sentir, e que o senhor achará bem estranho: é o prazer de existir e de respirar. No verão, passo dias inteiros imóvel sobre esta muralha, deliciando-me com o ar e os esplendores da natureza: todas as minhas idéias, então, são vagas, indecisas; a tristeza me repousa no coração sem o oprimir; meus olhos erram por essa planície e pelos rochedos que nos cercam. Estes diferentes aspectos se acham de tal modo impressos na minha memória que, por assim dizer, fazem parte de mim mesmo; e cada um deles é um amigo que eu vejo com prazer todos os dias.<br />O MILITAR — Por várias vezes tenho sentido algo semelhante. Quando o sofrimento me abate, e não encontro no coração dos homens o que o meu deseja, a vista da natureza e das coisas inanimadas serve-me de consolo; afeiçôo-me aos rochedos e às árvores, e todos os seres da criação, para mim, são amigos que Deus me deu.<br />O LEPROSO — O senhor me anima a explicar-lhe também o que se passa comigo. Eu amo verdadeiramente os objetos que são, por assim dizer, meus companheiros de vida, e que vejo cada dia: todas as tardes, antes de recolher-me à torre, venho saudar as geleiras de Ruitorts, os bosques sombrios do monte de São Bernardo e os majestosos cumes que dominam o vale de Rhème. Conquanto o poder divino seja tão visível na criação de uma formiga como na do Universo inteiro, o grande espetáculo das montanhas maravilha mais os meus sentidos: não posso ver estas massas enormes, recobertas de gelos eternos, sem que sinta um êxtase religioso. Mas, neste vasto quadro que me cerca, há trechos favoritos, que amo de preferência: entre eles, a ermida que o senhor vê lá no alto, no cume da montanha de Charvensod. Isolada entre os bosques, ao pé de um campo deserto, ela recebe os últimos raios do poente. Embora nunca tenha estado lá, experimento grande alegria em vê-la. Ao cair da tarde, sentado em meu jardim, fixo o olhar naquela ermida solitária, e minha imaginação nela repousa. Ela se me tornou uma espécie de propriedade; parece-me que uma vaga reminiscência me diz que eu ali vivi outrora, em tempos mais felizes cuja lembrança se apagou em mim. Gosto sobretudo de contemplar as montanhas longínquas, que se confundem com o céu no horizonte. Tal como o futuro, a distância me faz nascer o sentimento da esperança; meu coração opresso acredita existir talvez uma terra muito remota, onde, em época futura, poderei provar enfim essa felicidade pela qual suspiro, e que um instinto secreto me dá sempre como possível.<br />O MILITAR — Com uma alma assim ardente, decerto lhe foi preciso muito esforço para se resignar ao seu destino e não se entregar ao desespero.<br />O LEPROSO — Enganá-lo-ia se o fizesse crer que estou sempre resignado à minha sorte; jamais atingi essa abnegação a que chegaram alguns anacoretas. Essa absoluta renúncia a todas as afeições humanas, ainda não a alcancei: minha vida se passa em lutas contínuas, e os poderosos socorros da própria fé nem sempre são capazes de me reprimir os surtos da imaginação. Muitas vezes ela me arrasta, mau grado meu, a um oceano de desejos quiméricos, que me conduzem, todos, a esse mundo de que não tenho a mínima idéia, e cuja imagem fantástica vive sempre ante os meus olhos para me atormentar.<br />O MILITAR — Se eu lhe pudesse fazer ler na minha alma, e dar-lhe do mundo a idéia que tenho, todos os seus desejos e tormentos se dissipariam num instante.<br />O LEPROSO — Debalde alguns livros me instruíram sobre a perversidade dos homens e as desgraças inerentes à humanidade: meu coração se recusa a acreditá-los. Imagino sempre sociedades de amigos sinceros e virtuosos: casais em harmonia, felizes, largamente favorecidos pela saúde, mocidade e riqueza. Creio vê-los a passear juntos em bosques mais verdes e mais frescos do que esses que me oferecem sombra, aquecidos por um sol mais brilhante do que o sol que me alumia, e a sorte deles me parece tanto mais digna de inveja quanto mais miserável é a minha sorte. No começo da primavera, quando o vento do Piemonte sopra em nosso vale, sinto-me penetrado pelo seu calor vivificante, e sem querer estremeço de alegria. Vem-me um desejo inexplicável, e o sentimento impreciso de uma felicidade imensa que eu poderia gozar e que me foi negada. Então fujo da minha cela, ponho-me a errar pela campina para respirar mais livremente. Evito ser visto por estes mesmos homens que o meu coração tanto anseia encontrar; e do alto da colina, escondido entre as urzes como um animal selvagem, o meu olhar se derrama sobre a cidade de Aosta. Vejo de longe, com olhos de inveja, os seus felizes habitantes, que mal me conhecem; estendo-lhes as mãos entre suspiros, e peço-lhes o meu quinhão de felicidade. No meu enlevo — deverei confessá-lo? —, por vezes tenho estreitado nos braços as árvores da floresta, rogando a Deus que as anime para mim, e me dê um amigo! Porém as árvores são mudas; sua fria casca me repele; nada têm de comum com o meu coração, que arde e palpita. Exausto, cansado da vida, arrasto-me de novo para o meu retiro; exponho a Deus os meus tormentos, e a prece me traz à alma um pouco de tranqüilidade.<br />O MILITAR — Pobre coitado! Sofre então, ao mesmo tempo, de todos os males da alma e do corpo?<br />O LEPROSO — Estes últimos não são os mais cruéis.<br />O MILITAR — Será que eles algumas vezes lhe dão trégua?<br />O LEPROSO — Todos os meses eles aumentam e diminuem com o curso da Lua. Quando ela começa a aparecer, ordinariamente eu sofro mais; depois a doença atenua-se, e parece mudar de natureza; minha pele seca e embranquece, e quase deixo de sentir o meu mal; mas este seria sempre suportável, se não fossem as horríveis insônias que me causa.<br />O MILITAR — O quê! Perde o sono?<br />O LEPROSO — Ah, senhor! As insônias! As insônias! Não pode imaginar quanto é longa e triste uma noite inteira que um desgraçado passa sem fechar os olhos, com a idéia fixa numa situação horrível e num futuro sem esperança. Não! ninguém o pode compreender. Minhas inquietações recrudescem à proporção que a noite avança; e quando ela está perto de chegar ao fim, tal é a minha agitação, que não sei a que ponto há de ir; baralham-se-me os pensamentos; apodera-se de mim uma sensação estranha, que nunca experimento senão nesses amargos instantes. Ora tenho a impressão de que uma força irresistível me impele a um abismo sem fundo; ora vejo ante os olhos manchas negras; mas, enquanto as examino, elas se cruzam com a rapidez do relâmpago, aproximam-se de mim, avolumando-se, e dentro em pouco são montanhas que me oprimem com seu peso. Outras vezes, vejo nuvens a sair da terra em derredor de mim, como ondas que se intumescem, se amontoam e ameaçam devorar-me; e quando quero levantar-me para distrair-me de tais idéias, sinto-me como que retido por invisíveis liames que me tiram as forças. Há de pensar, talvez, que são meros sonhos. Não, estou perfeitamente acordado. Revejo sem cessar os mesmos objetos, e é uma sensação de horror que ultrapassa todos os meus outros males.<br />O MILITAR — É possível que o senhor tenha febre durante essas cruéis insônias, e é ela sem dúvida que lhe provoca essa espécie de delírio.<br />O LEPROSO — Acredita que possa ser efeito da febre? Ah! Gostaria muito que o senhor estivesse dizendo a verdade. Até agora receava que essas visões fossem um sintoma de loucura, e confesso-lhe que isto me inquietava muito. Queira Deus seja realmente a febre!<br />O MILITAR — O senhor me interessa vivamente. Confesso que jamais teria feito idéia de uma situação semelhante à sua. Penso, porém, que ela devia ser menos triste quando sua irmã era viva.<br />O LEPROSO — Só Deus sabe o que perdi com a morte de minha irmã... Mas o senhor não tem receio de ficar tão perto de mim? Sente-se aqui, nesta pedra; eu me porei atrás da folhagem, e conversaremos sem nos vermos.<br />O MILITAR — Por quê? Não, o senhor não me deixará. Fique perto de mim. (pronunciando estas palavras, o viajante fez um movimento involuntário para apertar a mão do Leproso, que vivamente a desviou).<br />O LEPROSO — Imprudente! Ia apertar a minha mão!<br />O MILITAR — Ora! Apertá-la-ia com todo o gosto.<br />O LEPROSO — Seria a primeira vez que eu experimentaria essa felicidade. Minha mão nunca foi estreitada por ninguém.<br />O MILITAR — O quê! Afora essa irmã de quem me falou, nunca teve outra ligação, nunca teve a amizade de nenhum dos seus semelhantes?<br />O LEPROSO — Para felicidade dos homens, não me resta nenhum semelhante sobre a Terra.<br />O MILITAR — O senhor me faz tremer!<br />O LEPROSO — Perdoe, compassivo estrangeiro! Bem sabe que os desgraçados gostam de falar dos seus infortúnios.<br />O MILITAR — Fale, fale, senhor! Disse-me que uma irmã vivia outrora em sua companhia, e o ajudava a suportar os sofrimentos.<br />O LEPROSO — Era o laço que ainda me prendia ao resto dos seres humanos! Prouve a Deus rompê-lo e deixar-me isolado e só dentro do mundo. Sua alma era digna do Céu, que a possui, e seu exemplo me servia de arrimo contra o desânimo, que tantas vezes me prostra depois que ela morreu. Entretanto, nós não vivíamos nessa deliciosa intimidade que eu imagino, e que deveria unir amigos desgraçados. O gênero de nossos males nos privava de tal consolação. Mesmo quando nos aproximávamos a fim de orar a Deus, tínhamos o cuidado de não nos fitarmos um ao outro, de medo que o espetáculo dos nossos males perturbasse as nossas meditações, e nossos olhares já não ousavam encontrar-se, senão no Céu. Terminadas as preces, minha irmã ordinariamente se retirava para a sua cela ou ia repousar sob as avelaneiras que limitam o jardim, e vivíamos quase sempre separados.<br />O MILITAR — Mas por que essa dura limitação?<br />O LEPROSO — Quando minha irmã foi acometida pela moléstia contagiosa que vitimou toda a minha família, e veio compartir a minha solidão, nunca nos tínhamos visto. Extraordinário foi o seu espanto ao avistar-me pela primeira vez. O receio de afligi-la, o receio ainda maior de agravar-lhe o mal aproximando-me dela, forçaram-me a adotar esse triste gênero de vida. A lepra lhe atacara só o peito, e eu conservava ainda alguma esperança de vê-la curada. Está vendo esse resto de caniçada que deixei de tratar? Era, naquele tempo, uma cerca-viva de lúpulos que eu mantinha com cuidado, e que dividia o jardim em duas partes. Eu abrira de cada lado uma pequena trilha, ao longo da qual podíamos passear e conversar juntos sem nos vermos e sem nos aproximarmos em excesso.<br />O MILITAR — Dir-se-ia que os Céus se compraziam em envenenar os tristes prazeres que lhe deixavam.<br />O LEPROSO — Mas pelo menos eu não era só, então. A presença de minha irmã dava vida a este retiro. Ouvia-lhe o rumor dos passos, em minha solidão. Quando, ao nascer do dia, eu vinha fazer preces a Deus sob estas árvores, a porta da torre abria-se devagar e a voz de minha irmã se misturava insensivelmente à minha voz. Pela tardinha, quando eu regava o meu jardim, ela passeava, por vezes, ao pôr-do-sol, aqui, no mesmo lugar de onde lhe estou falando, e eu via a sua sombra ir e vir entre as minhas flores. Ainda que não a visse, achava por toda parte vestígios de sua presença. Agora já não me acontece encontrar no meu caminho uma flor desfolhada ou algum ramo de arbusto, que ela deixava cair ao passar; estou sozinho. Já não há movimento nem vida em torno de mim, e o caminho que levava ao seu bosque favorito desapareceu sob a relva. Sem parecer ocupar-se comigo, ela vivia a procurar todos os meios de me dar prazer. Ao entrar no meu quarto, eu por vezes me surpreendia de encontrar vasos com flores novas, ou algum belo fruto que ela tratara e colhera com as suas próprias mãos. Receava fazer-lhe idênticas amabilidades, e rogara-lhe até que nunca entrasse em meu quarto. Mas quem pode impor limites à afeição de uma irmã? Basta um caso para lhe dar idéia da ternura que ela me votava. Uma noite, caminhava eu a largos passos em minha cela, martirizado por dores horríveis. Já bem tarde, havendo-me sentado um instante para repousar, ouvi ruído à entrada do quarto. Aproximo-me, escuto. Imagine o meu espanto: era minha irmã, que orava a Deus da parte de fora da soleira da porta. Ela ouvira os meus lamentos. Sua ternura dera-lhe o receio de inquietar-me; mas achava-se ali, para mais facilmente me socorrer em caso de necessidade. Ouvi-a recitar em voz baixa o Miserere. Ajoelhei-me junto à porta e, sem a interromper, acompanhei-lhe mentalmente as palavras. Meus olhos estavam rasos de lágrimas. Quem não se comoveria com semelhante afeto? Quando julguei terminada sua oração, disse-lhe em voz baixa: “Adeus, minha irmã, adeus. Retira-te, eu me sinto um pouco melhor. Deus te abençoe e recompense a tua piedade!” Ela se foi, em silêncio, e decerto sua prece foi ouvida, pois dormi, afinal, durante algumas horas, um sono tranqüilo.<br />O MILITAR — Como lhe devem ter sido tristes os primeiros dias depois da morte dessa irmã querida!<br />O LEPROSO — Levei muito tempo numa espécie de estupor, que me privava da faculdade de sentir em toda a extensão o meu infortúnio. Quando finalmente voltei a mim, e me tornei capaz de julgar a minha situação, estive a ponto de enlouquecer. Esse período me será sempre duplamente triste; ele me faz lembrar a maior das minhas desgraças e o crime que por um triz ela não trouxe como conseqüência.<br />O MILITAR — Crime! Não posso imaginá-lo capaz disso.<br />O LEPROSO — É a pura verdade. Contando-lhe essa época de minha vida, bem sinto que perderei muito em sua estima; mas não me posso pintar melhor do que sou; e o senhor, condenando-me, talvez me lamente. Já desde antes, surgira-me a idéia de deixar voluntariamente a vida. Contudo, o temor de Deus me levara a repeli-la, quando a circunstância mais simples, e aparentemente a menos própria para me inquietar, por pouco não me perdeu para a eternidade. Eu acabava de sofrer novo tormento. Desde alguns anos, vivia em nossa companhia um cãozinho. Minha irmã gostava dele, e confesso-lhe que, após a morte dela, o pobre animal era para mim verdadeiro consolo.<br />Devíamos, decerto, à sua fealdade a escolha que ele fizera da nossa morada para seu refúgio. Fora enxotado por toda gente; mas era, ainda assim, um tesouro para a casa do Leproso. Em prova da gratidão pelo favor que Deus nos concedera dando-nos esse amigo, minha irmã pusera-lhe o nome de Milagre. E este nome, contrastante com a feiúra do animal, bem como a sua contínua alegria, muitas vezes nos distraíram dos nossos padecimentos. Não obstante o cuidado que eu tinha com ele, uma vez ou outra ele fugia, e eu nunca imaginara que isto pudesse ser prejudicial a ninguém. No entanto, alguns habitantes da cidade se alarmaram, crentes de que o animal poderia espalhar entre eles o germe da minha doença; resolveram apresentar queixa à autoridade, que mandou matar imediatamente o meu cão. Não tardou que à minha casa chegassem soldados, em companhia de alguns habitantes, para executarem essa ordem cruel. Lançaram-lhe uma corda ao pescoço, em minha presença, e arrastaram-no. Quando o cãozinho chegou à porta do jardim, não pude conter o desejo de olhá-lo mais uma vez. Vi-o voltar os olhos para mim, pedindo-me um socorro que eu não poderia dar. Pretendiam afogá-lo no Doire, mas a populaça que o esperava lá fora o abateu a pedradas. Escutei-lhe os gritos, e entrei na minha torre mais morto do que vivo. Os joelhos trêmulos não podiam suster-me. Atirei-me ao leito, num estado impossível de descrever. Minha dor não me permitiu ver naquela ordem justa, mas severa, mais do que uma barbárie tão atroz quanto inútil; e, posto que hoje experimente vergonha do sentimento que me animava então, ainda não consigo pensar nisso a frio. Passei o dia inteiro na maior agitação. Era o último ser vivo que me acabavam de arrancar, e esse novo golpe viera reabrir-me todas as chagas da alma.<br />Era esse o meu estado quando, no mesmo dia, ao pôr-do-sol, vim sentar-me aqui, nessa pedra onde o senhor está sentado. Meditava desde algum tempo na minha triste sorte, quando lá longe, ali por aquelas duas bétulas que limitam a sebe, vi surgirem dois jovens recém-casados. Caminhavam ao longo da trilha, através do prado, e passaram perto de mim. Nas suas belas fisionomias lia-se a deliciosa tranqüilidade que inspira uma felicidade certa. Marchavam lento, de braços entrelaçados. De súbito, vi-os parar: a jovem deixou pender a cabeça sobre o peito do marido, que a apertou nos braços com arrebatamento. Segui-os com os olhos até o fim da planície, e já iam desaparecendo entre as árvores, quando me chegaram aos ouvidos gritos de alegria: eram as famílias do casal que, reunidas, vinham ao seu encontro. Velhos, mulheres e crianças rodeavam-nos; eu escutava o confuso murmúrio da alegria; via entre as árvores as brilhantes cores de suas vestes, e o grupo inteiro parecia envolto numa nuvem de ventura. Não pude suportar semelhante espetáculo; haviam-me invadido o coração os tormentos do inferno; desviei os olhos e precipitei-me na minha cela. Meu Deus! como me pareceu deserta, sombria, medonha! “É aqui — pensei — que a minha morada se acha estabelecida para sempre; aqui é que eu, arrastando uma vida deplorável, atingirei o tardio fim dos meus dias! O Eterno esparziu a felicidade, esparziu-a em torrentes sobre tudo o que respira; e eu, só eu! Sem amparo, sem amigos, sem companheiros... Horrível destino!”<br />Cheio de tristes pensamentos, esqueci que há um Ser consolador, esqueci-me de mim mesmo. E dizia comigo: “Por que não me foi negada a luz? Por que razão a natureza não é injusta e madrasta senão para mim? Como criança deserdada, eu tenho sob os olhos o rico patrimônio da família humana, e o Céu avaro me recusa a minha parte. Não, não! — exclamei, por fim, num acesso de cólera — Para ti não há felicidade sobre a Terra: morre, desgraçado, morre! Durante muito tempo sujaste a Terra com a tua presença; possa ela tragar-te vivo e não deixar vestígio da tua odiosa existência!”<br />Como fosse gradativamente crescendo o insensato furor, o desejo de me destruir apoderou-se de mim, e nele se concentraram todos os meus pensamentos. Concebi, afinal, a resolução de incendiar o meu abrigo e deixar-me consumir com tudo aquilo que pudesse representar alguma lembrança de mim. Agitado, furioso, saí campo fora; errei algum tempo na sombra, em torno de minha habitação. Do peito opresso brotavam-me gritos involuntários, que a mim próprio me espantavam no silêncio da noite. Tornei a casa desesperado, a gritar: “Desgraçado de ti, Leproso! desgraçado de ti!” E, como se tudo houvesse de contribuir para a minha perdição, ouvi o eco que, de entre as ruínas do castelo de Bramafan, repetiu claramente: “Desgraçado de ti!” Parei, tomado de horror, à porta da torre, e o eco esmorecido da montanha repetiu muito depois: “Desgraçado de ti!”<br />Tomei de uma lâmpada e, resolvido a atear fogo à minha habitação, desci ao quarto mais baixo, levando comigo sarmentos e ramos secos. Era o quarto que minha irmã habitara, e eu nunca tinha entrado ali depois que ela morrera; sua poltrona ainda estava na mesma posição de quando eu retirara dela o corpo pela última vez. Senti um frêmito de horror, ao ver o seu véu e algumas partes das suas vestes espalhados pelo quarto. As últimas palavras que ela pronunciara antes de sair dali estavam-me impressas no pensamento: “Morrendo, eu não te abandonarei; lembra-te de que estarei presente em tuas aflições”. Depondo a lâmpada sobre a mesa, percebi o cordão da cruz que ela trazia ao pescoço, e que pusera com as próprias mãos entre duas folhas da sua bíblia. A esta visão, recuei possuído de sagrado terror. A profundidade do abismo em que eu me ia precipitar representou-se-me de súbito ante os olhos muito abertos. Aproximei-me, trêmulo, do livro santo: “Eis aí, eis aí — exclamei — o socorro que ela me prometeu!” Tirando da bíblia a cruz, encontrei ali uma carta lacrada, que minha boa irmã me deixara. As lágrimas, até então retidas pela dor, escaparam-se em torrentes. Todos os meus projetos sinistros se desvaneceram num instante. Estreitei longamente ao peito, antes de a ler, essa carta preciosa; e, caindo de joelhos para implorar a misericórdia divina, abri-a, e li entre soluços as seguintes palavras, que ficarão eternamente gravadas em minha alma:<br />“Meu irmão:<br />Tenho de deixar-te em breve, mas não te abandonarei. Do Céu, para onde espero ir, velarei por ti. Implorarei a Deus que te dê coragem para suportar a vida com resignação, até que lhe apraza reunir-nos no outro mundo. Então eu te poderei mostrar toda a minha afeição; nada me impedirá de aproximar-me de ti, e nada nos poderá separar. Deixo-te a pequena cruz, que trouxe comigo a vida inteira; ela muitas vezes me serviu de alívio aos sofrimentos, e minhas lágrimas não conheceram jamais outra testemunha senão ela. Recorda-te, quando a vires, de que meu último desejo foi que pudesses viver ou morrer como bom cristão”.<br />Carta querida! Nunca me separarei dela, levá-la-ei comigo à sepultura; ela é que me abrirá as portas do Céu, que o meu crime deveria fechar-me para sempre. Ao terminar de lê-la, senti-me desfalecer, esgotado por tudo o que acabava de experimentar. Vi uma nuvem espalhar-se-me ante os olhos, e perdi por algum tempo a lembrança dos meus males e o sentimento da minha existência. Quando recobrei os sentidos, era alta noite. Ao passo que as minhas idéias se aclaravam, invadia-me um indefinível sentimento de paz. Tudo quanto se passara me parecia um sonho. Meu primeiro impulso foi levantar os olhos para o Céu, agradecendo-lhe o haver-me preservado da maior das desgraças. Jamais o firmamento me parecera tão sereno e tão belo. Brilhava uma estrela diante da minha janela; contemplei-a esquecidamente, com indescritível prazer, dando graças a Deus por me haver concedido ainda a alegria de vê-la, e experimentava secreto consolo em pensar que um dos seus raios era destinado à triste cela do Leproso.<br />Voltei ao meu quarto mais tranqüilo. Passei o resto da noite a ler o Livro de Jó, e o santo entusiasmo de que ele me invadiu a alma terminou dissipando por inteiro as negras idéias que me haviam atormentado. Quando minha irmã era viva, eu jamais conhecera momentos assim horríveis. Bastava-me sabê-la perto de mim, para manter-me mais calmo, e só o pensar na afeição que ela me consagrava, só isto chegava para me consolar e dar estímulo. Deus o livre, compassivo estrangeiro, de ser obrigado a viver só! Minha irmã, minha companheira, já não existe, mas os Céus me darão forças para suportar corajosamente a vida. Assim o espero, pois sempre o rogo a Deus de todo o coração.<br />O MILITAR — Que idade tinha sua irmã, quando a perdeu?<br />O LEPROSO — Tinha apenas vinte e cinco anos, mas os sofrimentos faziam-na parecer mais idosa. Apesar da moléstia que a levou, e que lhe alterara os traços, ainda seria bela se não a desfigurasse uma aterradora palidez. Era a imagem viva da morte, e eu não podia vê-la sem suspirar.<br />O MILITAR — Perdeu-a muito moça.<br />O LEPROSO — Sua compleição frágil e delicada não podia resistir a tantos males reunidos. Desde algum tempo eu notava que teria inevitavelmente de perdê-la, e tal era a sua triste sorte, que me via forçado a desejar essa perda. Vendo-a definhar e aniquilar-se dia a dia, eu observava com sinistro regozijo aproximar-se o termo do seu martírio. Já desde um mês antes sua fraqueza aumentara; desmaios freqüentes ameaçavam-lhe a vida de hora em hora. Uma noite (era pelos começos de agosto), notei-a tão abatida, que não quis deixá-la. Estava em sua poltrona, pois fazia alguns dias que não lhe era possível suportar o leito. Sentei-me junto a ela, e na escuridão mais densa tivemos a nossa última conversa. Eu não podia conter as lágrimas, agitava-me um cruel pressentimento. “Por que choras? — ela me perguntava — Por que te afliges assim? Morrendo, eu não te abandonarei; estarei presente em todas as tuas aflições”.<br />Alguns momentos depois, manifestou-me o desejo de ser levada para fora da torre e fazer suas preces no bosque de avelaneiras, onde passava a maior parte do verão. Dizia-me: “Quero morrer fitando o Céu”. Entretanto, eu não pensava que a sua hora estivesse tão próxima. Tomei-a nos braços, para conduzi-la. “Basta que me segures — pediu. — Talvez ainda me restem forças para caminhar”. Lentamente a conduzi até as avelaneiras. Formei-lhe um tapete, com folhas secas que ela mesma juntara, e tendo-a coberto com um véu, a fim de preservá-la da umidade da noite, coloquei-me perto dela. Ela, porém, desejou estar sozinha em sua última meditação. Afastei-me, sem perdê-la de vista. De quando em quando via o véu elevar-se e suas brancas mãos se dirigirem para o Céu. Como eu me aproximasse do bosquezinho, ela pediu-me água. Dei-lhe de beber em seu copo, ela molhou os lábios mas não pôde beber. “Sinto chegar o meu fim — disse-me, volvendo a cabeça. — Minha sede não tardará a ser estancada para sempre. Segura-me, meu irmão, ajuda tua irmã a transpor este caminho desejado, mas terrível. Segura-me... reza a prece dos agonizantes”. Foram as últimas palavras que me dirigiu. Reclinou a cabeça no meu peito. Rezei a prece dos agonizantes. “Passa à eternidade, minha cara irmã! — dizia-lhe eu. — Liberta-te da vida; deixa em meus braços estes despojos!” Durante três horas a sustive assim, na última luta da natureza; por fim ela se extinguiu docemente, e sua alma se desprendeu, sem esforço, da Terra.<br />Ao fim da história, o Leproso cobriu o rosto com as mãos. A dor deixava sem voz o viajante. Passado um instante de silêncio, o Leproso levantou-se:<br />— Estrangeiro, quando a aflição ou o desânimo se aproximarem de sua alma, pense no solitário da cidade de Aosta. Assim, espero não lhe haja feito uma visita inútil.<br />Encaminharam-se juntos à porta do jardim. No momento de despedir-se, o Militar falou ao Leproso, calçando com uma luva a mão direita:<br />— O senhor nunca apertou a mão de ninguém. Faça-me o favor de apertar a minha: é a mão de um amigo que se interessa vivamente pela sua sorte.<br />O Leproso recuou alguns passos, com uma espécie de terror. Erguendo os olhos e as mãos ao Céu, exclamou:<br />— Deus de bondade, cobre com tuas bênçãos essa alma caridosa!<br />— Conceda-me então outro favor — continuou o viajante. — Vou partir, e talvez por muito tempo não nos tornemos a ver. Não poderíamos, com as precauções necessárias, corresponder-nos algumas vezes? É possível que isto lhe seja uma distração, e para mim seria grande prazer.<br />E o Leproso, depois de refletir um pouco:<br />— Para que tentar iludir-me? Eu não devo ter outra sociedade senão eu mesmo, outro amigo senão Deus. Nele nos tornaremos a ver. Adeus, generoso estrangeiro. Seja feliz... Adeus para sempre!<br />O viajante se foi. O Leproso fechou a porta e passou-lhe os ferrolhos.<br /><br /><br />(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 2, p. 273)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-5602764082744792844.post-45775782952914219022008-06-20T09:28:00.000-03:002008-06-20T09:29:35.408-03:00O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - Lima BarretoEm uma confeitaria, certa vez, contava eu ao meu amigo Castro as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.<br /> Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de médico, para mais confiança obter dos clientes que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.<br /> O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:<br /> — Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!<br /> — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única — sair de casa a certas horas, voltar a outras — aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!<br /> — Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.<br /> — Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!<br /> — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?<br /> — Não, antes. Por sinal, fui nomeado cônsul por isso.<br /> — conta lá como foi. Bebes mais cerveja?<br /> — Bebo.<br /> Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:<br /> — Eu tinha chegado havia pouco ao Rio, e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no “Jornal do Comércio” o anúncio seguinte: “Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc...”. Ora — disse cá comigo — está aí uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me.<br /> Andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir, mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, decidi pedir a “Grande Enciclopédia”, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.<br /> A enciclopédia dava indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia, e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto e sua pronunciação figurada, e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.<br /> Na minha cabeça dançavam hieroglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia esses calungas na areia, para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.<br /> À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu abecê malaio, e com tanto afinco levei o propósito, que de manhã o sabia perfeitamente.<br /> Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo, e saí. Mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:<br /> — Sr. Castelo, quando salda a sua conta?<br /> — Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...<br /> — Que diabo vem a ser isso, Sr. Castelo?<br /> — É língua que se fala lá pelas bandas de Timor. Sabe onde é?<br /> Oh! Alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida, e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:<br /> — Eu cá por mim não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Sr. Castelo?<br /> Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo “Jornal do Comércio” e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia, ou se por ter-me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.<br /> Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao Dr. Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres de que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo os nomes de alguns autores, e também perguntar e responder “como está o senhor”, além de duas ou três regras de gramática, ilustrando todo esse saber com vinte palavras de léxico.<br /> Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil, podes estar certo, aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo. Com maternal carinho, as nossas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...<br /> Era uma casa enorme, que parecia deserta. Estava maltratada, mas não sei por que não me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver do que pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam, e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.<br /> Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.<br /> Na sala havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam, enquadrados em imensas molduras; e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão. Mas daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...<br /> Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com um lenço de Alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.<br /> — Eu sou — avancei — o professor de javanês que o senhor disse precisar.<br /> — Sente-se — respondeu-me o velho. — O senhor é daqui do Rio?<br /> — Não, sou de Canavieiras.<br /> — Como? Fale um pouco mais alto, que sou surdo.<br /> — Sou de Canavieiras, na Bahia — insisti eu.<br /> — Onde fez os seus estudos?<br /> — Em Salvador.<br /> — E onde aprendeu o javanês? — indagou ele, com aquela teimosia peculiar dos velhos.<br /> Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara, e com ele eu aprendera o javanês.<br /> — Ele acreditou? E o seu físico? — perguntou o meu amigo.<br /> — Estes meus cabelos corridos, duros e grossos, e a minha pele basanée, podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes que entre nós há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos, de fazer inveja ao mundo inteiro.<br /> — Bom — fez o meu amigo — continua.<br /> O velho ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio, e perguntou com doçura:<br /> — Então está disposto a ensinar-me o javanês?<br /> — Pois não — a resposta saiu-me sem querer.<br /> — O senhor há de ficar admirado que eu, nesta idade, queira aprender qualquer coisa, mas...<br /> — Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...<br /> — O que eu quero, meu caro senhor...<br /> — Castelo — adiantei eu.<br /> — O que eu quero, meu caro Sr. Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, ao qual tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer, meu avô chamou meu pai e disse-lhe: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz”. Meu pai — continuou o velho barão — não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; de uns tempos a esta parte, tenho passado por tantos desgostos, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice, que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.<br /> Calou-se, e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos, e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos e sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.<br /> Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto, e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.<br /> Logo informei disso o velho barão. Não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, o velho barão ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.<br /> Dentro em pouco dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês, e o senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria; aprendia e desaprendia.<br /> A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça, e julgaram a coisa boa para distraí-lo. Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!...”<br /> O marido de D. Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha a que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.<br /> Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do chronicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos.<br /> Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava eu, enfim, uma vida regalada.<br /> Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a causa ao meu javanês; eu estive quase a crê-lo também.<br /> Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande quando o doce barão me mandou uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo.<br /> — Qual! — retrucava ele. — Vá, menino, você sabe javanês!<br /> Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros, com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou o chefe de seção:<br /> — Vejam só, um homem que sabe javanês! Que portento!<br /> Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses, e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam:<br /> — Então sabe javanês? É difícil! Não há quem o saiba aqui.<br /> O tal amanuense que me olhou com ódio acudiu então:<br /> — É verdade, mas eu sei canaque. O Sr. sabe?<br /> Disse-lhe que não, e fui à presença do ministro. A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pincenê no nariz, e perguntou:<br /> — Então, sabe javanês?<br /> Respondi-lhe que sim; e, à pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do pai javanês.<br /> — Bem, o Sr. não deve ir para a diplomacia. O seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério, e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Muller e outros.<br /> Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.<br /> O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro, para que o fizesse chegar ao neto quando tivesse a idade conveniente, e fez-me uma deixa no testamento.<br /> Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias, mas não havia meio! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Révue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês”. Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber, e recusei uma turma de alunos sequiosos de aprender o tal javanês. A convite da redação, escrevi no “Jornal do Comércio” um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...<br /> — Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro.<br /> — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas noções de geografia, e depois citei a mais não poder.<br /> — E nunca duvidaram?<br /> — Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me a ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uff!<br /> Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani, e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no “Mensageiro de Bâle” o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção. Não conhecia os meus trabalhos, e julgara que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações, e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.<br /> Acabado o congresso, fiz publicar extratos do “Mensageiro de Bâle” em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.<br /> Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional, e ao saltar no cais Pharoux recebi uma ovação de todas as classes sociais. O presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.<br /> Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos, e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.<br /> — É fantástico! — observou Castro, agarrando o copo de cerveja.<br /> — Olha: se não fosse estar contente, sabes o que eu viria a ser?<br /> — O quê?<br /> — Bacteriologista eminente. Vamos?<br /> — Vamos.<br /><br /><br />(Lima Barreto, in O. Pimentel, Antologia de contos – Livraria Cultural Ltda, Rio, 1961)<br /><br />***<br /><br />Visite agora os meus sites:<br /><a href="http://www.fatoshistoricos.com.br/">www.fatoshistoricos.com.br</a><br /><a href="http://www.mundodanobreza.com.br/">www.mundodanobreza.com.br</a>LEON BEAUGESTEhttp://www.blogger.com/profile/06792426328430575453noreply@blogger.com