CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

quarta-feira

A CAMISA DE MARGARIDA - Ricardo Palma

É provável que alguns dos meus leitores tenham ouvido dizer às velhas de Lima, quando querem aludir ao elevado preço de um artigo: “0 quê! É mais caro do que a camisa de Margarida Pareja”.
Ainda estaria curioso de saber quem foi essa Margarida, cuja camisa anda na boca do povo, se não houvesse encontrado um artigo assinado por D. Ildefonso Antonio Barmejo (autor de notável obra sobre o Paraguai), o qual, embora muito à ligeira, fala da moça e da sua camisa, o que me encaminhou a desenredar a trama, conseguindo tirar a limpo a história que ides ler.

Era Margarida Pareja (pelas alturas de 1765) a filha mais mimada de D. Raimundo Pareja, cavaleiro de Santiago e coletor-geral de Calhau.
A moça era uma dessas limenhazinhas que, pela sua beleza, cativam o próprio diabo e o fazem persignar-se e atirar pedras. Brilhava-lhe um par de olhos negros, que eram como dois torpedos carregados de dinamite, e que explodiam no íntimo da alma dos galãs limenhos.
Chegou da Espanha, por aquela época, um arrogante mancebo, filho da coroada vila do urso e do medronho,1 chamado D. Luís Alcázar. Tinha este em Lima um tio solteirão e apatacado, aragonês rançoso e com fumaças de fidalgo, mais cheio de orgulho que os filhos do Rei Fruela.
Enquanto lhe chegava a ocasião de herdar do tio, vivia o nosso Luís tão pelado como um rato de igreja e comendo o pão que o diabo amassou. Basta dizer que até as suas compras miúdas eram a crédito, e para pagar quando melhorasse de sorte.
Na procissão de Santa Rosa, conheceu Alcázar à linda Margarida. A rapariga encheu-lhe os olhos e flechou-lhe o coração. Fez-lhe a corte, e, embora ela não lhe dissesse nem sim, nem não, deu a entender, com sorrisinhos e outras armas do arsenal feminino, que o galã era prato muito de seu gosto. A verdade — como se eu estivesse falando ao confessor — é que eles se enamoraram até à raiz dos cabelos.
Como os namorados esquecem que existe a aritmética, acreditou D. Luís que sua pobreza atual não seria obstáculo aos seus namoros. Foi ter com o pai de Margarida, e, sem muitos rodeios, pediu-lhe a mão da filha.
A D. Raimundo não agradou o pedido, e delicadamente despediu o suplicante, dizendo-lhe ser Margarida muito nova para tomar estado, pois, apesar dos seus dezoito janeiros, ainda brincava com bonecas.
Não era esse, porém, o verdadeiro xis do problema. A recusa provinha de que D. Raimundo não queria ser sogro de um pobretão; e assim o disse em confiança a amigos seus, um dos quais foi mexericar junto a D. Honorato, que assim se chamava o tio aragonês. Este, que era mais altivo que o Cid,2 encheu-se de cólera e bradou:
— Desaforo! Desconsiderar meu sobrinho! Muitos levantariam as mãos ao Céu por se aparentarem com o rapaz, que não há mais galhardo que ele em toda Lima. Ora, dá-se tamanha insolência! Mas há de se ver comigo esse coletorzinho de má morte!
Margarida, que se antecipava ao seu século, pois era nervosa como uma senhorita de hoje, choramingou, arrancou os cabelos e teve chilique; e se não ameaçou envenenar-se, foi porque ainda não se haviam inventado os fósforos.
Perdia cores e carnes, enlanguescia a olhos vistos, falava em tornar-se monja e fazia tolices a torto e a direito.
— Ou de Luís ou de Deus! — gritava ela, cada vez que se lhe amotinavam os nervos, o que sucedia a toda hora.
Alarmou-se o cavaleiro santiaguês, fez vir médicos e curandeiras, e todos declararam que a menina estava às portas da tísica, e que a única meizinha salvadora não se vendia na botica.
— Ou casá-la com o varão do seu agrado ou metê-la no caixão com palmas e coroa — tal foi o ultimato médico.
D. Raimundo (pai, afinal de contas!), esquecendo-se de tomar a capa e a bengala, dirigiu-se, que nem um doido, à casa de D. Honorato, e disse-lhe:
— Venho pedir o seu consentimento para que amanhã mesmo se case seu sobrinho com Margarida, senão a menina se acaba num abrir e fechar de olhos.
— Não pode ser — respondeu o tio desabridamente. — Meu sobrinho é um pobretão, e o que Vossa Mercê deve procurar para sua filha é um homem que tenha dinheiro a dar com um pau.
Borrascoso foi o diálogo. Quanto mais rogava D. Raimundo, tanto mais o aragonês ia às nuvens; e já estava aquele a retirar-se, desenganado, quando D. Luís, atravessando-se na contenda, disse:
— Mas, tio, não é próprio de cristão matar a quem não tem culpa.
— Tu te dás por satisfeito?
— De todo o coração, tio e senhor.
— Pois bem, mancebo, consinto em atender-te; mas com uma condição. E é a seguinte: D. Raimundo me há de jurar perante a Hóstia consagrada que não oferecerá um oitavo à sua filha nem lhe deixará um real como herança.
E assim principiou nova e mais acesa disputa.
— Mas, homem de Deus — ponderou D. Raimundo —, minha filha tem vinte mil duros de dote.
— Renunciemos ao dote. A menina virá para casa de seu marido unicamente com a roupa do corpo.
— Permita-me então oferecer-lhe os móveis e o enxoval de noiva.
— Nem um alfinete. Se não se conforma, deixa-o, e que morra a menina.
— Seja razoável, D. Honorato. Minha filha necessita levar ao menos uma camisa, para mudar aquela com que vai vestida.
— Bem, vá lá, para que não me acuse de obstinado. Consinto em que lhe dê de presente a camisa de noiva, e ponto final.
No dia seguinte, D. Raimundo e D. Honorato se dirigiram, de manhãzinha, à igreja de São Francisco, ajoelhando-se para ouvir missa. Conforme o ajuste, no momento em que o sacerdote elevava a Hóstia divina, disse o pai de Margarida:
— Juro não dar à minha filha mais do que a camisa de noivado. Assim me castigue Deus se quebrar a jura.

E D. Raimundo Pareja cumpriu ad pedem litterae3 o seu juramento; porque nem com vida nem por morte deu depois à sua filha coisa que valesse um maravedi.
As rendas de Flandres que adornavam a camisa da noiva custaram dois mil e setecentos duros, segundo afirma Barmejo, que, parece, colheu este dado nos Relatos Secretos de Ulloa e D. Jorge Juan. O cordãozinho que a ajustava ao pescoço era uma cadeiazinha de brilhantes, avaliada em trinta mil pesos.
Os recém-casados fizeram crer ao tio aragonês que a camisa valeria, quando muito, uma onça, porque D. Honorato era tão cabeçudo que, se soubesse a verdade, forçaria o sobrinho a divorciar-se.
Convenhamos que é muito merecida a fama que alcançou a camisa nupcial de Margarida Pareja.


NOTAS:

1 - Alusão às figuras que se vêem no brasão de Madri.
2 - Cid: Rodrigo Díaz de Bivar (1043-1099), famoso capitão espanhol, que se distinguiu em combater os mouros; é o protagonista de grande número de obras literárias.
3 - Ao pé-da-letra.

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai — Mar de histórias — Nova Fronteira, vol.5, p. 23)

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