CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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sexta-feira

O MAU ZUAVO - Alphonse Daudet

O forte ferreiro Lory, de Santa Maria das Minas, não estava contente naquela noite.
Habitualmente, tão logo apagada a forja, posto o sol, ele se sentava num banco diante da porta, para saborear essa boa lassidão que dá o peso do trabalho e do dia quente, e, antes de dispensar os aprendizes, bebia com eles grandes goles de cerveja fresca, olhando a saída das fábricas. Mas naquela tarde o bom homem permaneceu na forja, até o momento de se pôr à mesa; e ainda o fez a contragosto. A velha Lory, observando-o, pensava:
— Que lhe estará acontecendo?... Provavelmente recebeu do regimento alguma notícia má, que não quer me dizer... Nosso filho mais velho talvez esteja doente...
Contudo, ela nada ousava perguntar, e se ocupava apenas em fazer calar três crianças louras, da cor de espigas queimadas, que riam em torno da toalha, mastigando uma boa salada de rabanetes negros com creme.
Por fim o ferreiro pousou seu guardanapo, colérico:
— Ah! que mendigos! Ah! que canalhas!...
— Que tens tu, Lory?
Ele explodiu:
— Que tenho? É que cinco ou seis palhaços andam a rodar desde manhã pela cidade, vestidos de soldados franceses, de braço dado com os bávaros... E ainda por cima com aqueles que... como se diz isso?... optaram pela nacionalidade prussiana... E dizer que todos os dias vemos voltar esses falsos alsacianos!...
A mãe tentou defendê-los:
— Que queres, meu pobre homem? Não é totalmente culpa desses moços... É tão longe essa Argélia da África, para onde os mandam!... Eles sofrem do “mal do país distante”; e a tentação de voltar, de não serem mais soldados, é bem forte entre eles...
Lory deu um grande murro na mesa:
— Cala-te, mãe!... Vocês, mulheres, não entendem nada. À força de viver sempre com as crianças e exclusivamente para elas, reduzem tudo à medida da criançada... Pois bem, digo-te que aqueles homens são ordinários, renegados, os últimos dos covardes. Se por infelicidade nosso Cristiano fosse capaz de semelhante infâmia, tão verdade como me chamo Georges Lory e servi sete anos nos caçadores da França, eu o atravessaria com o meu sabre.
E terrível, meio erguido, o ferreiro mostrava o longo sabre de caçador pendurado à parede, por baixo do retrato do filho, um retrato de zuavo, tirado longe, na África; mas, ao ver essa honesta feição de alsaciano, toda negra e curtida de sol, nessas alvuras, nesse diluir-se das cores vivas à luz intensa, isto o acalmou subitamente, e ele se pôs a rir:
— Sou tolo de perder a cabeça... Como se nosso Cristiano pudesse pensar em se tornar prussiano, ele que sofreu tanto durante a guerra!...
Reposto no bom humor por essa idéia, o bom homem acabou de jantar alegremente e se foi, logo depois, esvaziar um par de chopes no “Cidade Strasbourg”.
Agora a velha Lory está sozinha. Depois de ter deitado os três lourinhos que chilreiam no quarto do lado, como um ninho que adormece, ela retoma seu trabalho diante da porta, do lado dos jardins. De vez em quando, suspira e pensa: “Sim, concordo. São covardes, renegados... mas não importa! Suas mães são bem felizes de os reaverem”.
Ela se lembra do tempo em que seu filho, antes de partir para se engajar no exército, estava ali, nessa mesma hora do dia, começando a cuidar do jardinzinho. Ela olha para o poço onde ele vinha encher os regadores, de blusa, os cabelos longos, os belos cabelos que lhe tinham cortado ao entrar para os zuavos...
De súbito, ela estremece. A portinhola do fundo, aquela que dá para os campos, está aberta. Os cães não latiram; entretanto, aquele que acaba de entrar renteia os muros, como um ladrão, insinua-se entre as colméias...
— Bom-dia, mamãe!
Seu Cristiano está de pé diante dela, com o uniforme em desordem, envergonhado, confuso, a língua presa. O infeliz voltara ao país com os outros; há uma hora, perambula em torno da casa, esperando a saída do pai, para entrar. Ela queria censurá-lo, mas não tem coragem. Há tanto tempo não o vê, que nem o abraça! Em seguida ele lhe dá tão boas razões: que se aborrecia distante da região, da forja, de viver sempre longe deles; e com isso a disciplina tornada mais dura, ao lado de companheiros que o chamavam “prussiano”, por causa do seu acento da Alsácia. Em tudo que ele diz, ela crê. Não precisa senão olhar, para crer.
Sempre conversando, eles entraram na sala baixa. Os pequenos, despertados, acorrem, pés nus, em camisa, para abraçar o irmão grande. Querem fazê-lo comer, mas ele não tem fome. Somente sede, sempre sede, e bebe grandes goles d’água, em cima de todas as rodadas de cerveja e vinho branco de que se serviu desde manhã no botequim.
Mas alguém caminha no pátio. É o ferreiro que volta.
— Cristiano, teu pai está chegando. Depressa, esconde-te, para que eu tenha tempo de lhe falar, de explicar-lhe...
Ela o empurra para trás do grande fogão de faiança, depois se põe a coser, com as mãos trêmulas. Por infelicidade, a túnica vermelha do zuavo ficou em cima da mesa, e é a primeira coisa que Lory vê ao entrar. A palidez da mãe, seu embaraço... Ele compreende tudo.
— Cristiano está aqui!... — diz, com voz terrível.
Arranca o sabre com um gesto louco, e se precipita para o fogão onde o zuavo está enfurnado, lívido, dissipada a bebedeira, apoiando-se à parede, de medo de cair. A mãe se lança entre eles:
— Lory, Lory, não o mates... Fui eu que lhe escrevi, que voltasse, que tu tinhas necessidade dele na forja...
Ela se aferra ao seu braço, se arrasta, soluça. No escuro do quarto, as crianças gritam ao ouvir essas vozes encolerizadas e lacrimosas, tão alteradas que não as reconhecem mais... O ferreiro se detém, e olhando para a mulher:
— Ah! foste tu que o fizeste voltar... Então, está bem; que ele se vá deitar. Verei amanhã o que tenho de fazer.
No dia seguinte, despertando de um pesado sono cheio de pesadelos e de terrores sem causa, Cristiano encontrou-se em seu quarto de criança. Através das pequenas vidraças enquadradas de chumbo, entrançadas de florida trepadeira, o sol já estava quente e alto. Embaixo os malhos soavam na bigorna. A mãe está à sua cabeceira. Ela não o deixara durante a noite, tanto a amedrontava a cólera de seu marido. O velho, igualmente, não se deitara. Até pela manhã caminhara pela casa, chorando, suspirando, abrindo e fechando armários. No momento, eis que entra no quarto do filho, gravemente, vestido como que para uma viagem, com altas perneiras, o largo chapéu e o bastão de montanha, sólido e ferrado na ponta.
Avança direito para a cama:
— Vamos, de pé!.. Levanta-te!
O rapaz, um tanto confuso, quer apanhar suas roupas de zuavo.
— Não, isto não... — diz o pai severamente.
E a mãe, toda temerosa:
— Mas, meu amigo, ele não tem outras.
— Dá-lhe as minhas... Não tenho mais necessidade delas.
Enquanto o filho se veste, Lory dobra cuidadosamente o uniforme, o colete, as grandes calças vermelhas. Feito o pacote, passa em torno do pescoço o estojo de estanho onde está o roteiro...
— Agora, desçamos!
E os três descem à forja, sem falar. O fole ronca; toda a gente está no trabalho. Revendo o amplo galpão aberto, no qual pensava tanto quando estava longe, o zuavo se lembra da infância e de quanto ali brincou, entre o calor da estrada e as faíscas da forja, muito brilhantes na poeira negra. Toma-o um acesso de ternura, um grande desejo de obter o perdão do pai; mas, levantando os olhos, encontra sempre um olhar inexorável.
Enfim, o ferreiro se decide a falar:
— Rapaz, eis a bigorna, as ferramentas... Tudo isto é teu... E tudo isso também! — e mostra-lhe o jardinzinho que se abre lá embaixo no fundo, cheio de sol e de abelhas, no quadro enfumaçado da porta. — As colméias, a vinha, a casa, tudo te pertence. Uma vez que sacrificaste tua honra a estas coisas, é bom que pelo menos as conserves. És o dono aqui... Quanto a mim, vou-me embora... Deves cinco anos à França; vou pagá-los por ti.
— Lory, Lory, aonde vais? — grita a pobre velha.
— Pai!... — suplica o filho.
Mas o ferreiro já partiu, em largas passadas, sem se voltar.
Em Sidi-bel-Abbés, na sede do 3º de zuavos, encontra-se desde alguns dias um engajado voluntário de cinqüenta e cinco anos de idade.


(Alphonse Daudet, Contos – Cultrix, SP, 1993)

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