CONTOS BEM CONTADOS

Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.

Leon Beaugeste

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quarta-feira

NICOLAUZINHO MENTIRA - Ion Alexandru Bratescu-Voinesti

Nicolauzinho Gropescu, filho do tio Andrei Gropescu, da aldeia de Manga, Concelho de Magureni, é um rapaz ajuizado, calmo nos seus propósitos, comedido nos seus movimentos, e... — como direi? — mas tímido, ou por conseguinte tímido.
Em todas as classes da escola primária de Magureni, sempre ganhou os primeiros prêmios, para grande alegria e satisfação de seus pais. Pois quê! Não era pouca coisa ouvir dizer, no dia de São Pedro, na aula enfeitada com flores, “primeiro prêmio com coroa de honra: Nicolae Gropescu!”; ver o mestre-escola colocar sobre os seus cabelinhos negros a coroa de buxo; ver o senhor Administrador do Concelho dar-lhe uma braçada de livros, acariciando-o; e depois partir pela estrada da aldeia, a mãe de um lado, o pai do outro, e entre eles o filho, diante de todos os aldeãos que dizem com afeto: “Que Deus lhe dê vida e o faça um homem!”
No fim da escola, o Prof. Irimescu disse que era uma pena um rapaz tão aplicado não continuar os estudos; e o tio Andrei Gropescu, desde o São Pedro até setembro, pensou e tornou a pensar, de todas as maneiras, aconselhando-se com um ou outro.
O mestre-escola disse-lhe o que vocês ouviram; e era isto o que ele repetia a si mesmo, durante as horas da faina e as de abatimento, vendo que os seus esforços e os de Stana, sua mulher, eram insuficientes para o seu lar, sobrecarregado com quatro crianças: Nicolauzinho, com onze anos; duas gêmeas com três anos; e um de peito, ainda nos braços de Stana.
O rendeiro, Sr. Epaminondas, disse-lhe que “a minha xabedoria envenena a alma, ejige grandes e afasta o homem do travalho da terra”. E deu-lhe como exemplo o Jorginho, filho do pope, que freqüentara seis classes liceais e, com grande espanto da aldeia, saíra um estouvado e um vagabundo; e isto mesmo dizia consigo o tio Andrei, quando pensava na sua penúria e na ajuda que os braços de Nicolauzinho lhe podiam prestar de futuro; porque, sem ser muito forte, tinha grande habilidade manual e herdara do avô, o pai Sandu Gropescu, o jeito de carpinteiro.
Depois da morte do velho, as suas ferramentas foram levadas para o sótão, e “Nicolauzinho, o explorador”, nessa altura um garotinho de quatro anos apenas, um dia descobriu-as lá; e, apesar das ameaças maternas — “desce daí, diabo, antes que teu pai te descubra e te parta os ossos!” — o rapaz (que se lembrava, como em sonho, do velhote que tinha entalhado as pilastras da porta do pátio) refugiava-se de tempos a tempos nas águas-furtadas, a contas com as ferramentas do avô. E a pouco e pouco, por gracejo, brincando, hoje fazia uma cadeira, amanhã um espantalho para os pardais que lhe devastavam a cerejeira do outeiro, até que um dia, em que seu pai perdera o taipal do carro, lhe disse: “Eu faço outro igual, pai”. Nicolauzinho pôs mão à obra e, com velhas tábuas do pátio, fez primeiro o corpo, depois as barras, e quando as juntou lindamente, saiu um taipal que causou admiração, tanto ao pai como à mãe e aos vizinhos. Sim, a penúria, o jeito do rapaz para carpinteiro, e o medo do pai de perder esta ajuda de tanto valor, deram todo o peso aos conselhos do Sr. Epaminondas, e foi assim que Nicolauzinho ficou em casa, entregue aos trabalhos do campo.
O Nicolauzinho não o lastimou, porque gostava dos trabalhos do campo, especialmente da carpintaria. No campo, quando guardava os bois com os demais rapazes da sua idade, brincava com eles; mas preferia isolar-se e contemplar com atenção as ervas e os bichinhos. Era ele quem ensinava aos companheiros a maneira de retirar as aranhas ou os ratos dos seus abrigos, com a ajuda de um bocadinho de cera atada a um fio.
Os outros rapazes quedavam-se durante algum tempo a seu lado, depois abalavam para outros jogos; e ele ficava só, a observar os esforços das formigas para transportar cargas quatro ou cinco vezes maiores do que elas; ou, então, a andar de gatinhas para ver como os gafanhotos produzem estalidos.
Assim passaram anos após anos, ao todo seis, tornando-se ele um rapazote de dezessete anos, bonito e sossegado, mas tímido.
É agora um hábil carpinteiro. Os barrotes, amontoados sob o alpendre para a vedação fronteira — que espera reparar, se Deus quiser, no próximo ano — foram feitos por ele; o suporte da varanda, que num extremo estava apodrecido, foi ele quem o substituiu; a forquilha da mãe, foi ele quem a entalhou; e Salomia, a filha do vizinho Pârvu Miu, pode mostrar-vos o balde comprado na feira de Santo Elias, que Nicolauzinho decorou com um ferro em brasa... uma verdadeira maravilha!
Seria, como vedes, um rapaz modelarmente feliz, se até aos nossos dias o homem tivesse encontrado o meio de alcançar toda a felicidade que lhe é devida, e se o Nicolauzinho não tivesse a sua parte de amarguras, resultante da má organização atual das coisas.
Contudo, a amargura do Nicolauzinho provinha também do seu espírito curioso, explorador, diferente do dos outros. Já no tempo da sua infância, isso lhe tinha causado dissabores. Quantas vezes seu pai lhe havia puxado as orelhas, por perder metade do dia vendo comer ou construir casulos os bichos-da-seda que sua mãe criava? Muitas vezes era tosado porque, enquanto perseguia um inseto qualquer, os bois que devia guardar abandonavam o restolho ou a pastagem e invadiam outra seara. Algumas vezes foi despertado pela queimadura de uma vara, acompanhada de censuras: “Andas na lua? Não vês que os teus bois foram atrás do meu milho?”
Mas nem as severas reprimendas paternas nem as sovas apanhadas por causa dos prejuízos o conseguiram curar. Nicolauzinho, porém, sofreu tudo isto sem grande custo. O que lhe custava mais a suportar era a troça; porque, aos poucos, se tornara o escárnio de todos.
Por duas vezes lhe sucedera ver nos campos como um zangão preto-amarelo lutava com uma aranha muito maior, como ele a tinha vencido, a pegara com as patas e voara com ela. Esta luta, que lhe pareceu de uma dureza terrível, impressionou-o tanto, que a contou aos outros. “Pode ser!...” — responderam-lhe uns. Seu pai respondeu-lhe com uma repreensão: “É com patetices destas que perdes o tempo, estouvado, e eu que pague os estragos”. E os mais novos: “A mosca apanhar aranhas!? Como sabes inventar petas!”
Certa vez, saltou como mordido por uma serpente, e pôs-se a chamar os outros rapazes que estavam mais longe. Quando estes chegaram e lhe perguntaram por que os chamara, ele contou-lhes, espantado, ter visto um gafanhoto, daqueles chamados freires, todo eriçado, prender nas patas um gafanhoto maior e começar a comê-lo.
— Onde? Dize lá!
— Mesmo ali.
— Onde?
— Ali, perto daquela silva... mais à esquerda...
Os rapazes curvaram-se todos, ele também se curvou. Olharam, mas não encontraram o freire. E um deles disse:
— Vamo-nos embora; Marin vai acabar de nos contar a história de Frusina. Não conheceis o Nicolauzinho?... Eh, tu, vai pedir ao pope Alecu que reze por ti!
— Mas juro por...
— Deixa-te de jurar em vão.
Um dia, como estava sentado sobre um escabelo, a entalhar uma vara a canivete, viu no canteiro de funcho, perto de si, o seu gato agachado, espiando um bando de pardais que, a quatro ou cinco passos dele, debicavam, chilreando, o milho espalhado na terra. Olhando atento para o gato, viu-o abrir um pouco a boca e ouviu-o claramente fazer com a garganta como os pardais. Parecia querer enganá-los, para os atrair ao lugar onde estava escondido. E, efetivamente, os pardais foram para o pé dele à procura de milho. Viu que o gato estendia os jarretes e, quando julgou os pardais bastante perto — zás! — precipitou-se de repente sobre eles, apanhando um nas garras. À noite, contou à porta do pátio o que vira e ouvira. Estavam presentes também Pârvu Miu, sua filha Salomia e Manda, mãe de Salomia, bem como um outro vizinho, o pai Grigore.
— Como é que és só tu a ver e ouvir todas estas coisas, Nicolauzinho? — perguntou o pai Grigore, sorrindo. — Eu, que caminho para os setenta e quatro anos, nunca ouvi um gato chilrear como os pardais!
— Pai Grigore, não sei o que fazem os outros gatos; mas o nosso, sei. Ouvi eu como vossemecê me está ouvindo agora.
— Olha, ainda te hão de pôr uma alcunha. Um dia começam a chamar-te “Nicolauzinho Mentira”, e assim ficarás!
Salomia pôs-se a rir às gargalhadas, dizendo várias vezes, como de propósito, para nunca mais se esquecer: “Nicolauzinho Mentira, Nicolauzinho Mentira...”
E não foi preciso que aparecesse outro para inventar a alcunha prevista pelo pai Grigore, em conselho paternal. Daí em diante, ficou sendo “Nicolauzinho Mentira” para toda a aldeia. Certamente lhe desagrada ouvir os rapazes chamar-lhe assim. E quando o Jorginho do pope lhe perguntar, em ar de troça, “que mais viste tu, Nicolauzinho?”, e lhe disser, com gáudio dos outros, que ele também vira um grilo apanhar e devorar uma gralha, o Nicolauzinho ver-se-á embaraçado e começará a duvidar, ele próprio, se teria realmente visto e ouvido o que sabe; pois aquele homem inteligente, com seis anos de liceu, não acreditava nele.
E assim decorreram os dias. Censuras paternais pelo tempo perdido inutilmente “com patetices e insetos”, a desconfiança de uns e a troça de outros fecharam o coração do rapaz, tornaram-no silencioso e tímido. Só um homem o compreendia: o pobre Isaia, o pastor, mas esse mesmo morreu.A amargura de Nicolauzinho provinha também do sorriso desconfiado dos belos olhos de Salomia. Os rapazes, ainda podia evitá-los. Na estalagem, quanto aos rapazes, podia ver dançar a roda sem tomar parte nela; e no trabalho de campo ou na carpintaria encontrava remédio contra aquele veneno da troça, como se lhe passasse uma esponja por cima. Porém esse remédio era ineficaz para a dor causada pelo sorriso irônico da rapariga, para o qual não precisava de correr uma vez por semana à estalagem, porque a tinha ali, detrás da paliçada, a qualquer hora do dia; e no domingo, na estalagem, além desse sorriso ainda havia os gracejos e piadas de Petrica, o filho de Stan Pachalan, que perseguia insistentemente a Salomia.
Alguns tempos depois do incidente com o velho Grigore, uma tarde, Nicolauzinho encaminhou-se para a casa do mestre-escola. Encontrava-se este no pomar, colhendo ameixas. Primeiro hesitou em dizer-lhe o motivo daquela visita, e pôs-se a colher frutos com os outros. Mas depois, receando que se fizesse tarde e aproveitando um instante em que ficou só com o professor, um pouco à parte, ousou perguntar-lhe:
— Senhor, desculpe. O senhor sabe muita coisa...
— E depois? — perguntou Irimescu, vendo que o rapaz se calava.
— Ora, é isto. O senhor sabe muita coisa, porque tem estudado muito. Não é verdade que o gato imita os pardais?
— Como é que os imita?
— Tirando da goela um som parecido com o chiar dos pardais.
O professor olhou-o atentamente, e o Nicolauzinho prosseguiu:
— Eu pensava que o senhor professor talvez tivesse algum livro onde esteja escrito que o gato imita os pardais. E eu, em troca, consertava-lhe a paliçada ou qualquer outra coisa.
— Eu não tenho nenhum livro onde estejam escritos tais disparates, Nicolauzinho.
Regressou a casa muito pesaroso, muitíssimo. Ah! se ao menos o professor tivesse um livro desses... se pudesse levá-lo a Salomia, para ela o ler com os seus próprios olhos... talvez ela não voltasse a rir como naquele dia, junto do portão, quando o pai Grigore lhe pusera a alcunha. Lindo riso, que dentro do peito dele se transformara em dor.
No dia seguinte, depois de ter espalhado a fruta ao sol, deitou milho miúdo no local onde vira os pardais. E depois de ter afastado as outras irmãzinhas, trouxe o gato, segurou o irmão Ilie a seu lado, para que não se mexesse, e pôs-se a observar, encostado a um pau. Pouco depois acudiram alguns pardais, e o gato começou a imitá-los com a garganta.
Então o Nicolauzinho, com um assobio, chamou Salomia, que estava no terraço, a sacudir tapetes.
— Salomia! Salomia!
A rapariga voltou a cabeça, e ele, sem se mexer, murmurou-lhe em voz baixa:
— Aproxima-te devagarinho da paliçada... devagarinho...
Mas, sem dúvida, Salomia aproximou-se depressa demais, porque de repente os pardais levantaram vôo.
— Assustaste-os. Mas se não estás com muita pressa, vem um pouco até aqui, pelo portão. Vês ali o gato, no fundo? Repara nos sons que lhe saem da goela.
Salomia tinha curiosidade de ouvir, e por isso veio. Ele ofereceu-lhe um escabelo e sentou-se ao lado dela, com um joelho no chão, conservando junto de si o seu irmão Ilie. Ficaram assim, lado a lado, esperando. Vieram dois ou três pardais, mas o gato dormitava, indiferente.
Enquanto ali estavam lado a lado, sem se mexer, Nicolauzinho sentiu de súbito o perfume de rosmaninho e de trevo, dos cabelos de ouro e dos seios virginais daquela rapariga de dezesseis anos, que se espalhava no ar, mais tentador e mais doce que todas as flores entalhadas por ele, que todos os insetos que tanto gostava de observar. Embriagado de felicidade, estendeu a mão direita e cingiu-lhe o busto. Porém Salomia, que olhava ainda para o gato, e que pensava na inteligência e na força de Petrica, o filho de Stan Pachalan, voltou a cara, surpreendida, e pôs-se a rir, agastando-se:
— Olha lá, Nicolauzinho Mentira, foi para isto que me chamaste?
E, ladina, fugiu para casa.
Foi depois deste dia que ele lhe entalhou a bilha de leite, decorando-a com um ferro em brasa, tão incandescente como o seu sorriso incrédulo e trocista. Salomia também lhe deu um cinto muito comum, mas para o Nicolauzinho não havia no mundo outro igual.
Nicolauzinho partiu para a cidade com uma carrada de lenha, porque o pai Andrei queria dar trabalho aos bois, que naquele princípio de outubro nada tinham a fazer. O pouco milho que colhera, já havia transportado; as ameixas também; era impossível lavrar a terra enquanto o bom Deus não mandasse uma boa chuva, “porque a terra estava como uma pedra”.
O homem comprou ao Sr. Frim três toesas de lenha da floresta, que ele cortava; vez por outra fazia uma carrada que os bois pudessem transportar, e, ou ele ou o Nicolauzinho ia vendê-la à cidade com algum lucro. Na noite anterior tinham eles carregado mais de um quarto de toesa, que fora amarrada cuidadosamente para não cair; duas horas antes de nascer o sol, Nicolauzinho vestia a peliça, e sua mãe gritava-lhe do átrio: “Aconchega bem o capote ao peito, porque está frio”; e o pai lembrava-lhe pela quarta vez: “Não a vendas por menos de onze lei, nem um ban a menos. Abre-me bem esses olhos para não te enganarem, meu grande burro!”
Era noite fechada, mas o Nicolauzinho não conhecia nem o medo nem o mau-olhado. Por todo o caminho, ao todo treze quilômetros, sentado no carro, foi assobiando suavemente e olhando para as estrelas, que cintilavam intensamente naquela noite clara e fresca de outono. Gostava das estrelas, e o falecido pastor Isaia ensinara-lhe o nome de cada uma delas. Como seguia em direção ao oriente, viu aparecer e subir no horizonte, primeiro a lua, depois a estrela-d’alva; em seguida surgiu uma faixa vermelha, o céu abriu-se, abriu-se mais, e as estrelas desapareceram uma a uma até à última, a estrela-da-manhã, o crescente da lua, e finalmente à direita, na parte onde surgiu a faixa vermelha, começaram a aparecer flechas de ouro como os cabelos de Salomia. Quando ele chegou à cidade, já o sol ia alto. O estalajadeiro das portas da cidade perguntou-lhe quanto queria pela lenha.
— Onze lei — respondeu Nicolauzinho.
O comerciante, porém, que não precisava dela porque tinha lenha, depois de olhar atentamente para a mercadoria, disse-lhe:
— Vale, porque é boa lenha, carvalho puro.
Depois de fitar o rapaz nos olhos, aconselhou-o:
— Ouve, rapazinho: tu vais pedir quinze lei, para poderes baixar o preço.
Se Nicolauzinho tivesse vindo com a lenha ao mercado três dias antes, tê-la-ia vendido logo, pois, embora pouco esperto em negócios, o vento soprara rijo até à manhã do dia anterior, circunstância que teria vindo em seu auxílio; mas hoje o sol quente, que o obrigava já a tirar a peliça, baixara o valor da mercadoria. Um dava-lhe oito lei, outro dez, outro ainda dez e seis bani; mas ele não quis vendê-la, e circulou na cidade até ao meio-dia.
— Apre! és teimoso como um turco! não baixas um ban ao preço que pedes? — gritou-lhe um padeiro. — Entra aqui com o carro no pátio!
— Está bem, patrão, mas são onze lei.
Depois de o Nicolauzinho ter descarregado e empilhado os toros, um por um, um quarto de toesa, o padeiro entregou-lhe, em pequenas moedas, dez lei e meio.
— Olhe que são onze lei, patrão, foi quanto combinamos.
— Pois quê! tu és turco? Se te convém, muito bem; se não, carrega outra vez a lenha e vai-te embora.
O rapaz devolveu-lhe o dinheiro e, sem se zangar, carregou de novo a lenha com o vagar e o cuidado com que na véspera, à noite, a carregara na floresta. Provavelmente a calma do rapaz agradou ao padeiro, porque, pondo-se a rir, contou onze lei certos e deu-lhos, resmungando ainda:
— Não há dúvida que este diabo é manhoso.
Nicolauzinho meteu o dinheiro na bolsa, atrelou os bois e partiu. Pensou que teria sido melhor receber o dinheiro em rolos. Assim, podia acontecer que no regresso, por causa da fadiga da noite, adormecesse no carro e o dinheiro se espalhasse. Foi por isso que seguiu pela rua olhando para o chão, à procura de um pedacinho de papel onde enrolar o dinheiro. E não foi em vão que procurou: em frente do tribunal, viu meia folha de papel. Apanhou-a, guardou-a dentro da camisa; quando fora da cidade subiu ao carro, rasgou o papel ao meio; depois rasgou um dos pedaços em duas partes; tirando o dinheiro da bolsa, fez dois rolos — um com cinco lei, o outro com seis —, meteu-os na bolsa com cuidado, fechou-a bem e disse:
— À esquerda, Malhado!
Mais tarde, quando o céu ficou nublado e começou o vento a soprar, vestiu a peliça e sentiu qualquer coisa fria sob a camisa. Era a outra metade do papel, que não utilizara e não tinha jogado fora. Tirou-a e olhou para ela. Era um manuscrito. Como sabia ler, leu: “... aplicando o art. 327, cujo conteúdo é o seguinte: ‘Quem encontrar na via pública ou nas estradas objetos que lhe não pertençam, e, interrogado a esse respeito, negar o fato, é considerado como praticando um abuso de confiança, e sofrerá a pena de prisão de 15 dias a 3 meses’”.
— Então — pensou Nicolauzinho — se eu encontrar no caminho, digamos, um ducado em ouro, não ficará meu, já que o encontrei?... Mas se não foi roubado... Não o encontrei? Por que devo dá-lo a outrem?
E leu mais uma vez. Quando chegou à passagem “interrogado a esse respeito”, passou de repente a mão pela bolsa. Os rolos lá estavam; mas agora começou a fazer-se luz no espírito de Nicolauzinho: E se quem perdeu o dinheiro o tivesse ganho? Se tivesse ido à floresta como ele e o pai, lhe caísse nos pés um tronco, como caiu no pé do pai? E se depois fosse de longada à vila, como ele agora? E se trocasse o seu dinheiro por um ducado de ouro, para meter num colar de uma rapariga como Salomia?
Lembrou-se então de que seu pai várias vezes lhe dissera: “O dinheiro que se obtém sem trabalho transforma-se em pó”. E antes de adormecer no carro, resolveu que, se lhe acontecesse encontrar uma carteira cheia de dinheiro, a entregaria logo ao Administrador do Concelho ou ao cabo de Polícia, mesmo sem lhe pedirem.
Quem ouviria o seu pensamento, para o realizar tão depressa?
Quatro dias depois, sucedeu isso mesmo. Toda a gente estava no milharal, ocupada a ceifar o milho. Em dado momento, o pai disse-lhe:
— Nicolauzinho, já devias ter consertado a porta do palheiro, e ainda não o fizeste. Dentro de quatro horas, até à noite, queria que fizesses uma nova.
— Faço.
— Vai, que os nossos braços chegam para acabar tudo e carregar até à noite.
— Lá isso é verdade.
E o Nicolauzinho partiu. Mas, para chegar mais depressa à casa, atalhou pelas ameixoeiras do boiardo, saltou a sebe em frente do Calvário — uma alta cruz de pedra ao lado da calçada — e desceu pela esquerda. Quando seguia pela berma da estrada, viu no chão, diante dele, uma carteira de couro negro. Apanhou-a e viu dentro, nos compartimentos da direita e da esquerda, muito dinheiro em notas, como os seus antepassados todos juntos nunca tinham visto. Olhou em volta: ninguém. Não hesitou muito, e pôs-se em marcha; porém, em vez de tomar o caminho de casa, saltou outra sebe e foi direto ao posto da Polícia. Vai andando e sorrindo ao pensar: “Se não tivesse o dinheiro aqui na minha mão, e se dissesse aos outros que tinha achado uma carteira recheada, todos diriam que era mentira”.
Estavam todos ocupados nos trabalhos agrícolas. Nicolauzinho só encontrou garotos, não tendo assim com quem falar. Chegado à residência do cabo da Polícia, abriu a porta. O cabo estava só, no quarto da direita. Estendido num divã, lia o jornal. Ao fundo ouvia-se uma voz de mulher, cantarolando. É a voz da Sra. Stelutza, a amante do cabo. Devia estar a fazer qualquer coisa, e cantava: “Suspiros cruéis me torturam o peito...”
— Que queres? — perguntou o cabo, levantando os olhos do jornal.
— É isto, senhor cabo: quando eu vinha ali pela estrada (porque meu pai me mandou à casa para consertar a porta do palheiro), passei pelo pomar das ameixas do nosso boiardo, saltei a sebe em frente do Calvário; e enquanto ia andando, vi no chão uma coisa preta. Disse então: “Que será isto?” Logo que me abaixei, apanhei o que aqui vê: esta carteira com muito dinheiro em notas de banco. E vim logo trazê-la ao senhor, porque o dono dela deve aparecer logo.
O cabo olhou repetidas vezes para o rapaz e para o dinheiro da bolsa; e depois de um longo silêncio, perguntou-lhe:
— Estava mais alguém contigo?
— Ninguém.
— Contaste isto a alguém?
— A ninguém. Vim diretamente ter consigo, pelo atalho ali de trás.
O senhor cabo calou-se; depois:
— Escuta, Nicolauzinho. Parece-me que é assim que te chamam...
— É assim, é.
— Não digas nada a ninguém, até aparecer o dono; porque, se alguém te ouve dizer como ela é, aparece logo aqui a dizer que a perdeu, sem a ter perdido. Nem mesmo à tua mãe ou ao teu pai deves dizer, até que surja o verdadeiro dono. Percebes?
— Percebo.
— Fizeste bem em tê-la trazido. Bravo! És um rapaz honesto. Fica sabendo que eu direi ao dono para te gratificar bem.
Nicolauzinho foi-se dirigindo para a porta; mas, quando se encontrava no limiar, o cabo, pensando no processo verbal que tinha de organizar, perguntou-lhe ainda:
— Como te chamas?
— Nicolae Gropescu!
— Sabes ler?
— Sei...
Mal ficou só, o cabo tirou as notas da carteira e contou-as duas ou três vezes. São ao todo cinco mil e quatrocentos lei, em notas de cem e mais nada. Depois pegou na tabaqueira, fez um cigarro, fumou-o devaneando e persignou-se espantado; antes de começar a escrever, balouçando a cadeira para trás, chamou:
— Stelutza!
Mas Stelutza cantarolava, e não ouviu.
O senhor cabo levantou-se, foi até à porta do quarto e gritou, mais forte:
— Stelutza!
— Que é? — respondeu ela, levantando os olhos da blusa onde trabalhava.
Depois de o senhor cabo lhe contar toda a história, depois de lhe mostrar o dinheiro, ficaram ambos mudos. Ela pensou em blusas de seda, em casacos, em chapéus, em tudo o que poderia comprar com tanto dinheiro, e disse a certa altura:
— Oh! Meu Deus, por que não a encontrei eu?
E de novo se calou, voando-lhe o pensamento para os ares pretensiosos da esposa do cabo e da Sra. Irimescu, que a costumavam olhar altivamente. Daí a momentos, perguntou:
— Foi aquele rapaz chamado Nicolauzinho Mentira?
E após um novo silêncio:
— E dizes tu que ninguém o viu?
O cabo olhou-a nos olhos, e não respondeu.
Entretanto Nicolauzinho havia já encetado o seu trabalho. E enquanto arrancava com a torquês os pregos da porta velha, pensava que, pelo menos à mãe e ao pai, devia contar o seu achado; não podia deixar de ser.
— Que estás tu a fazer, ó Nicolauzinho?
O rapaz erguera os olhos, onde já pairava um sorriso de ventura desde os primeiros sons da voz que o interrogava, e viu Salomia. Ela estava sentada num tronco, com os braços sobre a paliçada. O vento agita o ouro dos seus cabelos, e os seus olhos verdes, como límpidas e profundas águas à sombra, têm um sorriso trocista.
— Estou a consertar a porta do palheiro — respondeu Nicolauzinho. — E pensava: “Não, a ela não lhe digo, porque não me acredita e vai logo dizê-lo aos outros, troçando de mim. É melhor que o saiba por outros, quando aparecer o dono”.
Apareceu o dono da carteira. Ei-lo na rua da aldeia, entre uma multidão de mulheres e crianças que se comprimiam à sua volta. O cavaleiro que ainda há pouco tinha passado a cavalo era o dono da carteira. Salomia, que do alto do tronco onde tinha subido vira os rapazes a correr em direção ao grupo, desce e avança para a porta do pátio, dizendo:
— Que teria sucedido na rua, para os rapazes correrem para o outeiro?
Nicolauzinho abandonou a sua tarefa, e foi também para a porta. Uma mulher que vinha de lá explicou-lhe:
— É um mercador, que diz ter perdido uma carteira cheia de dinheiro, e pergunta se alguém a encontrou.
Nicolauzinho correu naquela direção e furou por entre os rapazes. Quando chegou junto ao mercador, tocou-lhe num braço e perguntou-lhe:
— Como era a sua carteira?
— Era uma carteira de couro preto, com uma arranhadura num canto. Uma carteira de foles, com duas divisões.
Nicolauzinho disse com simplicidade:
— Encontrei-a eu há pouco, perto do Calvário, e levei-a ao senhor cabo da Polícia.
O mercador ficou doido de alegria, não sabendo o que dizer. Enquanto as mulheres se benziam de espanto, ele seguiu com o rapaz para o posto da Polícia, com um bando de crianças atrás.
Movimento desusado em Magureni. O povo reunido no posto da Polícia. Espera-se a chegada do senhor procurador, que vinha proceder a um inquérito. E a chegada da autoridade é aguardada com impaciência, a fim de esclarecer de vez este caso confuso, que mantém o povo na incerteza. Curiosa ocorrência! Antes de ontem, terça-feira, pela tarde, chegara ao concelho o Sr. Nitza Andreescu, que andava a cortar a floresta de Colfescu, perguntando a uns e outros se tinham encontrado a sua carteira com 5.400 lei, que dizia ter perdido de manhã quando ia pelo vale. Enquanto interrogava umas mulheres da aldeia de Manga, aparecera-lhe o Nicolauzinho, filho de Gropescu, conhecido por “Nicolauzinho Mentira”, que lhe disse tê-la encontrado junto ao Calvário, que a levara ao posto de Polícia e a entregara ao cabo; mas o cabo afirmava não saber de nada. O queixoso, não sabendo como decidir-se entre as explicações do rapaz e as negativas do chefe, queixou-se ao procurador, que devia chegar em breve.
Eis que ele chega, acompanhado somente pelo escrivão. O capitão da guarda, que o devia acompanhar, faltara, pois partira para Bucareste. Desceu à porta da Câmara, onde o esperava o queixoso. Zangado por não estarem presentes nem o comandante de polícia nem o rapaz que dizia ter encontrado o dinheiro, ordenou que os procurassem imediatamente. Enquanto isso, foi ouvindo o chefe de administração municipal, o notário e o recebedor.
— Hum, senhor procurador! — diz o administrador. — Que lhe posso eu dizer? Tem sido o assunto da conversa entre nós, desde anteontem. Teria mentido o cabo? Hum!... Grande quantia... Cinco mil e quatrocentos lei. O dinheiro é o olho do diabo... Podia muito bem ser... Mas, pensando bem: mandar um homem para a prisão assim, só pelo testemunho de um pateta...
— Pateta, por quê? — inquiriu o procurador.
— Ora, senhor procurador, este rapaz é assim um pouco... como dizer?...
— Como se chama ele?
— Nicolauzinho Gropescu, mas todos lhe chamam “Nicolauzinho Mentira”.
— Por quê?
— Porque lhe puseram essa alcunha.
O procurador, cada vez mais intrigado e impaciente, pergunta:
— Por quem os mandou chamar?
— Mandei um guarda. Aí vem o cabo. Deseja ouvi-lo?
O senhor procurador diz que sim.
A porta abre-se e o cabo entra, tira o boné, fica com ele na mão, desajeitado, agarrado ao sabre; e batendo os calcanhares, olhando fixamente nos olhos o procurador, cumprimenta-o:
— Bom dia, Sr. Procurador!
O superior examina-o de cima a baixo. Verifica que é um homem robusto, moreno, elegante no seu uniforme com três galões. Conhece-o de há muito, e pergunta-lhe:
— Que se passa, Albescu, com essa questão do dinheiro?
O cabo sorri comedidamente (Ah! Sra. Stelutza, que astuta inspiradora tu és!) e responde:
— Ora, senhor procurador, se V. Exa. me julga capaz de semelhante coisa, não é preciso...
Mas o senhor procurador viera proceder a um inquérito; e quando S. Exa. procede a um inquérito, não gosta de palavreado. Se o homem a quem faz uma pergunta lhe não responde concisamente e se põe com rodeios, interrompe-o. A sua experiência de dois anos levava-o a considerar este o melhor sistema. “De outro modo, nunca mais se acaba”. Foi por isso que interrompeu o cabo, advertindo-o:
— Peço-lhe que me responda claramente. Onde estava quando o queixoso chegou ao posto de Polícia?
— Estava lá.
— Chamem Andreescu.
O queixoso Andreescu entra. O procurador pergunta-lhe:
— Onde encontrou o cabo, quando foi ao posto de Polícia?
— Vai ouvir, senhor procurador. Depois de o rapaz me perguntar como era a minha carteira, e de eu lhe dizer que era preta, com uma arranhadura num canto...
— Ah! perdão, perdão! Mas ontem declarou-me no tribunal que foi o rapaz o primeiro a dizer-lhe como era a carteira. Agora diz-me que foi o senhor quem lhe disse... Aqui no processo verbal...
— Eu lhe explico, senhor procurador...
— Explica o quê? Peço-lhe que me responda concisamente: foi ele quem lhe disse primeiro como era a carteira, ou foi o senhor?
— Fui eu.
O notário comunica ao senhor procurador que o rapaz acabava de chegar. E o senhor procurador, que estava com muita curiosidade de o ver, disse ao queixoso e ao guarda que esperassem lá fora, e mandou vir o rapaz. O rapaz entrou. O seu rosto é magro, com uma larga testa sob a qual brilham dois olhos negros, que parecem febris. Aliás, muito limpo.
O guarda explica o seu atraso:
— Ele não queria vir, senhor procurador. Custou-me trazê-lo.
— Por que não querias tu vir, rapaz?
Nicolauzinho encolheu os ombros. Ah! Desde o meio-dia da terça-feira, muitas coisas se passaram, que Nicolauzinho não poderia contar ordenadamente. Sobretudo o que se passara no seu íntimo. Tudo se lhe baralha, as idéias cintilam e apagam-se como relâmpagos.
Tinha ido ao posto de Polícia, com o queixoso e outros homens atrás, entre os quais lhe parecera ver também o administrador. E sorrindo, dissera: “Apareceu o dono da carteira, senhor cabo!” E o cabo exclamara, espantado: “Dono de quê?!” Ele olhara bem, para ver se falava com o cabo, e dissera: “O dono da carteira que eu encontrei ao pé do Calvário... Que eu lhe trouxe há pouco...” E o cabo respondera: “Quê! tu estás a sonhar?”. Voltara-se para a assistência, apalpando-se, e dissera mais: “Há pouco, quando a Sra. Stelutza cantava no terraço”. E o senhor cabo gritara: “Estás doido, heim!?”. Sentiu então que qualquer coisa se lhe quebrava na cabeça, lá dentro, e docemente exclamara, como no limiar de um grande perigo: “Senhor cabo, proceda como fala, ou fale como proc...”. E o cabo dera-lhe um soco tão violento na cara, que sangrou. Não se lembrava de mais nada, até que chegara sua mãe com a tia Parasckiva, que lhe fizera um sortilégio e lhe dera água a beber num púcaro novo. Estavam já no terraço da casa. Ao lado, parecera-lhe ver Pârvu Miu e o tio Grigore, falando a seu pai. O tio Grigore perguntava-lhe: “Mas então ele não te disse nada? Nem à mãe? Como se ele não lhe viesse contar logo tudo!”. Pârvu dissera: “Não os encontrou, percebes? Mas à minha filha é que eu não sei por que nada lhe disse, pois lhe falou depois disso”. E Pârvu voltara-se para a paliçada e perguntara: “Não é verdade, Salomia?”. E Salomia, empoleirada no tronco ao lado da paliçada, com um olhar medroso, respondera: “É, sim, é!”. Ele então levantara-se e gritara alto: “Foi aqui que eu tive a carteira, nestas minhas mãos. Que estas mãos sequem como a madeira!”. E ficara de novo com o espírito perturbado. Parecia-lhe que o administrador viera com o notário, e que tinha ido mostrar-lhes onde achara a carteira, o lugar onde saltara a sebe, por onde caminhara, por onde voltara.
De tudo isto ainda Nicolauzinho se lembrava um pouco, pois eram coisas vividas, vistas e ouvidas. Mas o que não podia compreender era a perda gradual do seu sentido da realidade, produzida pela dúvida, pela desconfiança de todos e pela indignação do cabo, que não conseguira dominar-se. Há algumas horas já que ele nem sequer está certo de ter encontrado realmente o dinheiro. Enquanto vinha com o guarda, tentou coordenar as suas idéias e dizer como tudo se tinha passado, desde o princípio.
— Não ouves, rapaz? — pergunta, pela segunda vez, o senhor procurador. — Por que é que não querias vir?
— Sei lá!...
— Como “sei lá”?! Tu acusas um homem; eu, procurador, chego para fazer um inquérito sobre o caso; mando-te procurar e não queres vir? Que significa isto?
— Sei lá!...
— Como te chamas?
— Nicolae Gropescu.
— Mas não te chamam “Nicolauzinho Mentira”?
Nicolauzinho nunca mais tinha pensado nisso. É assim! Chamam-lhe “Nicolauzinho Mentira”. Vêem!?
— Não ouviste a minha pergunta? Não te chamam todos “Nicolauzinho Mentira”?
— Pode muito bem ser.
— Como é que “pode muito bem ser”? Chamam-te assim; todos o dizem. Por quê?
— Sei lá!...
— Outra vez “sei lá”! Mas enfim... Dize-me o que há sobre a questão do dinheiro.
O rapaz hesita, faz esforços para coordenar as suas idéias dispersas. Quer contar tudo desde o princípio, conforme o plano que elaborou enquanto vinha com o guarda. Passa a mão pela testa, engole em seco. O procurador espera.
— Ora, senhor... Quando o padeiro me deu...
— Qual padeiro?
— Aquele a quem vendi lenha por onze lei, faz hoje uma semana...
— Para que falas do padeiro? Que tem ele que ver com isto?
— Eu lhe digo.
Nicolauzinho cala-se e tenta de novo reunir as idéias, que tanto se lhe baralham. O senhor procurador olha atentamente para as suas mãos trêmulas, para os seus olhos espantados; como tem um coração compassivo e bom, e principiou a compreender depois de olhar para o administrador e para o notário, disse com brandura:
— Vá, continua.
— Mal o padeiro me deu o dinheiro — daquela vez que o meu pai me mandou à cidade com a lenha... e eu vi as estrelas...
Nicolauzinho cala-se.
— Vá, continua.
— ... que, primeiro, ele somente me queria dar dez lei e meio, mas depois... O Jorginho do pope me pôs aquela alcunha, por não acreditar que o zangão apanhasse aranhas...
No espírito do senhor procurador fez-se inteira luz. Não há dúvida! É evidente! E então, para não perder tempo, interrompeu a narrativa e mandou o rapaz esperar lá fora. Depois de ele ter saído, disse para as pessoas presentes:
— Pobre rapaz!
— Que lhe disse eu, senhor procurador? — lembrou o notário.
O procurador reflete. Pensa seriamente. Ontem à noite, no clube, onde se falara do caso, Mitica Ionescu, o advogado, dissera: “Pode até muito bem ser que o queixoso não tenha perdido nem um real, e que esteja a preparar qualquer falência”. E o senhor procurador conhecia bastantes casos semelhantes. Ainda há poucos dias, aquele caso de Daradan. Mas então o rapaz... Mas era assim... Tinha sido uma mulher que falara num homem que perdera uma carteira e andava à procura dela. Fora o que o queixoso confessara ontem. Quanto ao objeto, foi o próprio que há pouco confessou ter sido ele que o descreveu ao Nicolauzinho...
Assim, depois de madura reflexão, o procurador fez “Hum!”; e perguntou ao administrador:
— Que distância é daqui ao hospital de Dalgeni?
— Quatro quilômetros.
— O cocheiro que atrele os cavalos, e um guarda vá entregar ao médico uma carta que eu vou escrever agora. Ele que lhe diga também de viva voz que o espero aqui, e que venha sem falta.
E o senhor procurador escreveu rapidamente: “Caro doutor, meta-se no carro e venha imediatamente até aqui. Um caso curioso de auto-sugestão, de telepatia, de mitomania. Como, porém, não quero sozinho tomar toda a responsabilidade, é-me absolutamente necessária a opinião de uma pessoa tão competente como o meu caro doutor. Até já. Não falte, pois também lhe quero contar uma coisa engraçada acerca de Ninette”.
O pai faz uma meda de hastes de milho. A mãe, olhando de quando em quando para o terraço, varre o pátio para ele estar limpo quando o pope Alecu chegar. Tinham-lhe aconselhado que o chamasse, para fazer umas rezas. Os esconjuros da mãe Utza já não fazem nada, e as suas palavras suaves só produziam a cólera: “Nicolauzinho, meu filho, não penses mais naquele dinheiro, filhinho. Estava talvez enfeitiçado. Talvez fosse uma alucinação. Feitiços, sempre há nos lugares escusos”.
Nicolauzinho está sentado no terraço da casa, latejam-lhe as fontes entre as mãos. Medita, e não pode compreender por que o doutor e o senhor procurador lhe meteram o dedo na boca.
Como poderia compreender tal fato, ele, Nicolauzinho, se nem tampouco os outros o tinham compreendido?
O médico, quando recebeu a carta do procurador, pegou no volume de Medicina Legal de Vibert. Durante o caminho, leu tudo o que se referia a casos de mitomania, tão freqüentes nas crianças. Viu que essa mania era curável, se não fosse a manifestação de uma loucura progressiva. Neste caso, depois de ouvir o rapaz e outras pessoas, entre eles o tio Grigore, que também viera à Câmara, ficou inteiramente edificado. Não restava dúvida nenhuma de que se tratava dos pródromos de uma verdadeira loucura. Frases interrompidas, alguma febre, alucinações, animais, entre eles um gato que o rapaz ouvia piar, caso típico. Por isso, depois de aconselhar os pais do rapaz a tratarem-no com brandura, lembrou-se de uma prova decisiva; e, mandando abrir a boca ao rapaz, palpou-lhe o palato com o indicador, e disse ao procurador:
— Veja, meta o dedo e apalpe... Mais para a esquerda... Sente uma protuberância no palato?
— Sim — respondeu o procurador, já completamente esclarecido.
Esta última prova, vinda depois das explicações do médico, ilustrada com citações da obra que trouxera, dissipou todas as dúvidas do senhor procurador. Este, ao subir para o carro, felicitava-se a si próprio pela admirável idéia que tivera, de mandar chamar o médico. E apiedado com o visível e barulhento desespero do queixoso, ordenou ao administrador, ao notário e ao cabo em voz baixa, de modo a não ser ouvido pelo grupo que estava mais longe:
— Em todo o caso, tomem cuidado. Reparem bem se alguém faz despesas superiores às habituais.
Nicolauzinho estava no terraço, com a cabeça apoiada entre as mãos, refletindo. Súbito, num sobressalto, lembrou-se de que a metade da folha de papel, com que fizera rolos, tinha ficado na algibeira da peliça. E parecia-lhe que isto seria a prova mais forte de que achara o dinheiro. Correu depressa para o quarto, procurou e tornou a procurar nas algibeiras. Não encontrando o papel, foi para o pátio chamar pelas irmãs. Agarrou o irmão Ilie e bateu-lhe nas mãos:
— Por que rebuscaste as algibeiras da minha peliça? Por quê? Por que te metes na minha vida?
O pequeno grita. A mãe chamou em seu auxilio o marido, e ambos o agarraram, cada um por um braço. Ele, porém, pragueja com os olhos transtornados, a debater-se. Do terraço da casa ao lado, Salomia olhava aterrada, e benzia-se.
Foi nesse estado que o pope Alecu veio encontrá-lo. Já vira casos semelhantes; e conhecendo o poder curativo das preces, pôs a estola e principiou a ler: “Oremos a Deus, Deus dos deuses e Senhor dos senhores, criador das legiões infernais e que preside às forças imateriais, Senhor do Céu e da Terra, que nunca homem algum viu nem pode ver...”
Nicolauzinho suspirou profundamente e disse, com amargura:
— Deixem-me!
Os pais deixaram-no, e logo se foi sentar, em sossego, no terraço. Daí só se ouve parte das palavras que o pope lê, perdendo-se o resto num ligeiro murmúrio: “Eu te esconjuro, Satanás, espírito do mal... a ti e ao teu bando... Adonai... Eloim... eu te esconjuro... para as profundas do Inferno... eu te esconjuro... de Gomorra... e com pedra de enxofre o queimaram... eu te esconjuro, teme-me, foge, foge...”
Nicolauzinho não pode dormir; sai para o pátio. É tarde. Embora sopre um vento frio, o céu está límpido como cristal. Lá no alto a lua desce sobre as ameixoeiras do boiardo. Será o vento que faz cintilar assim as estrelas? Enquanto Nicolauzinho estava no pátio, perto da paliçada de Pârvu Miu, a porta do vizinho abriu-se docemente, e uma sombra desceu os degraus, dirigindo-se para o lado dele. É Salomia. Ainda que ele fosse cego, tê-la-ia reconhecido pelo andar. Ela atravessara entre a casa e a paliçada, em direção ao jardim. Ei-la a dois passos dele.
— Salomia! — chamou ele melodiosamente, como uma canção.
A rapariga deu um grito e colou-se à parede da casa, olhando espantada.
— Salomia, não tenhas medo... Eu... eu... não estou doido, Salomia... Eu não te quero fazer mal, Salomia.
Ela fitou-o, num olhar esgazeado, onde não havia a menor sombra de troça, mas sim de terror, e disse tremendo:
— Foge daqui, Nicolauzinho, tenho medo de ti. Tenho medo de ti.
E fugiu para o jardim.
As duas sombras, que uma hora depois se encontravam lado a lado ao fundo do jardim de Pârvu Miu, eram Salomia e Petrica, o filho de Stan Pashalan.
— Ai, fica quieto! Queres que eu me zangue? Que maçada! Apertas-me muito. Julgas que sou de ferro?
— Não, rapariga, tu não és de ferro, és de carne, e apetece-me acariciar o teu corpinho pequenino, o teu corpinho de carne. Mas quando te sinto nos meus braços, receio que alguém me venha roubar-te, e então me apetece apertar-te, fazer-te pequenina.
— Ouves?
— Que foi?
— Não ouviste?
— Parece-me ouvir alguém suspirar.
Ambos apuram o ouvido, porém só o vento sopra.
— Foi impressão tua.
Não tinha sido impressão dela: as mulheres ouvem mais longe. Quem suspirou, fugiu depressa. Aonde irá? Impelem-no palavras ouvidas várias vezes, ouvidas já nem ele sabe onde. Na escola? Na igreja? Palavras que dormitavam na parte sombria do seu cérebro, e que surgiram à luz há poucas horas; e que continuamente lhe zumbiam aos ouvidos. “Vinde a mim, vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos darei repouso”.
Estas palavras chamam-no da colina, onde se ergue a cruz do Calvário. Chegado ao pé dela, tira o cinto, abraça-a e chora, chora. Depois olha para cima e à sua volta. As estrelas tremulam; sopra um vento frio; nem sequer há gafanhotos, nem grilos. O frio matou-os.
Vai com Deus, Nicolauzinho, e que Ele te perdoe!
Uma semana depois, quando os vermes que o Nicolauzinho nunca tinha visto lhe tiverem comido os belos olhos, negros e curiosos, cada um já poderá falar e pensar dele o que estiver ao seu alcance.
O Sr. Epaminondas, digno descendente de Platão e Aristóteles, explicará ao senhorio ter lido nos jornais que nas suas terras se perdera um rapaz.
— Sim, sim, o filho de Andrei Gropescu. Era doido, coitadinho. Se o senhor está lembrado, um bonito rapaz. Até ganhou uma vez um prêmio pelo São Pedro. Falei justamente nisso com minha mulher: passar bruscamente dos feijões dos pais para tantos estudos... o rapaz ficou com o cérebro avariado.
O senhorio, depois de muito pensar, dirá:
— É verdade.
E Salomia vai enfastiar-se a olhar para o pátio, onde não mais encontrará aquele com quem passava o tempo até serem horas de se encontrar com Petrica.
O pai Andrei, olhando para os potes alinhados no palheiro, pensará, com angústia, que a porta não fora acabada, e que tem de levar de novo as ferramentas de Sando para o sótão.
A pobre mãe de Nicolauzinho baterá na cabeça com os punhos, no terraço da casa, lamentando-se: “Era bom e meigo, e nunca fez mal a ninguém; se lhe mandava matar uma galinha, dizia-me logo: ‘Mãe, vá dá-la ao pai Grigore, que eu não posso’. Oh! que mundo, que mundo miserável!”.
Mas, que chamasse miserável ao mundo ou a si mesma, ela não teria razão. Que culpa tinha ela? Quanto ao mundo, há dois mil anos que ele se está tornando melhor. Pois, hoje em dia, já ninguém comete a crueldade de nos crucificar por sermos diferentes dos outros. Mas se não nos tornarmos muito perigosos, induzem-nos a crucificarmo-nos sem grande perversidade, talvez até piedosamente.
Afinal de contas, sempre é um progresso!


(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 10, p. 303)

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