Vieira havia levado a vida inteira remando contra a maré. Por fim conseguiu reunir algum dinheiro, não se sabe como, e abriu uma modestíssima loja de cigarros na Rua dos Ourives. Dava para viver, mas, como se sabe, não se precisa de muita coisa para viver. Morava com a mulher num quartinho ao lado da modesta loja, e Dona Maricota cozinhava, lavava e passava a roupa do marido e de alguns conhecidos, pois não tinham filhos.
Pensando na vida e esperando os clientes, Vieira estava certo dia encostado no balcão da loja enquanto a mulher preparava o almoço, como de costume, quando entrou apressadamente um velho, meio congestionado, quase sem poder falar. Sentou-se num banquinho que ali havia, queixando-se silenciosamente e apenas murmurando algumas palavras. O traje do recém-chegado indicava pessoa de boa posição social. Solícito, Vieira indagou:
— Que tem o senhor, cavalheiro? O que aconteceu?
O velho levantou os olhos e só conseguiu dizer, com voz apagada:
— Água!
Vieira foi imediatamente buscar um copo d’água, que o velho bebeu, reanimando-se um pouco. E perguntou de novo:
— O que aconteceu?
— Não sei... Uma coisa que me deu de repente... Mas felizmente não foi nada, como o Sr. pode ver. Bastou esse copo d’água para sentir-me bem.
— Não quer alguma outra coisa? Talvez um pouco de água com limão...
— Não, nada. Muito obrigado.
O velho permaneceu ainda ali uns vinte minutos, conversando amistosamente com Vieira, perguntando-lhe sobre seus negócios, sua família, sua vida. Quando saiu, apertou-lhe com vigor a mão, renovando seus agradecimentos.
Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.
Voltou no dia seguinte, e Vieira lhe apresentou Dona Maricota, com quem simpatizou bastante. Inteiraram-se então de que o assíduo visitante era o Comendador Matos, negociante aposentado, solteiro e sem filhos, que vivia de rendas, sem outra ocupação além da cobrança dos aluguéis e da renda dos altos negócios. Quando o Comendador saiu, Vieira disse à esposa:
— Parece que esse sujeito está disposto a vir aqui todos os dias, para entreter-se em conversa.
— É uma amizade que não devemos desprezar — respondeu a mulher, de espírito prático.
— Por quê?
— Que pergunta! Pode ser que encontremos nesse homem um protetor...
— Que protetor coisíssima nenhuma! Um passatempo aborrecidíssimo, é o que você deve dizer. Não percebeu que ele nem sequer fuma? Não comprou até agora nem uma caixa de fósforos...
Entretanto, quando o Comendador voltou no dia seguinte, encontrou uma cadeira, no lugar do banquinho. Precisamente nesse dia ficaram estabelecidas definitivamente as relações de amizade. A partir desse momento o velho foi infalível, sempre chegava na mesma hora. Não se passou muito tempo, e começou a ser-lhe oferecida durante a visita uma xícara de café, que se tornou um hábito durante os seguintes cinco anos.
Quando não aparecia na hora de costume, Dona Maricota se inquietava:
— O Comendador não veio. Estará doente? Por que não vais à casa dele? Pode ser que esteja doente, não acha?
Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher:
— Já está aqui o Comendador, Maricota. Traga já o cafezinho...
As relações chegaram a ser tão estreitas, que uma vez Vieira queixou-se da falta de freguesia. O velho lhe disse:
— É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo.
— Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos.
— Isso foi antigamente. Hoje em dia as lojas de cigarros têm que estar bem instaladas, com pelo menos duas portas, boas estantes, tudo bem ordenado e bem sortido.
— É bem verdade, mas tudo isso custa dinheiro, e não vejo como possa consegui-lo.
— Não se preocupe por questões de dinheiro. Procure uma casa melhor, em pleno centro, e deixe o resto por minha conta.
Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar.
O casal mudou-se para o segundo andar do mesmo imóvel, e o Comendador emprestou o dinheiro para a compra dos móveis. Quando foi assinar os papéis, Vieira perguntou se o Comendador tinha interesse em ser seu sócio.
— Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados.
Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva.
— Quero ser o padrinho! — indicou o Comendador quando foi informado.
O excelente homem já era considerado pessoa da casa, seguindo sempre o seu próprio ritmo, tomando o cafezinho sentado no mesmo local, já agora numa cadeira estofada, para mais comodidade.
A pontualidade com que foram pagas as quinze promissórias fez aumentar a amizade do velho, pois colocava acima de tudo a probidade comercial, a honra da firma. Quando o menino foi batizado, o padrinho deu-lhe um bonito enxoval e fez para ele um seguro de vida. Desde então era raro a criança não receber todos os dias um presente ou um agrado. De vez em quando, Vieira e Maricota também eram obsequiados.
— Comendador, por que tantos cuidados? O senhor não deve incomodar-se tanto conosco.
— Não me incomodo, absolutamente. Vocês são minha única família. Não tenho ninguém mais no mundo, a não ser vocês.
— Bendito aquele copo de água! — dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade.
— Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos.
Não sabendo como manifestar seu reconhecimento por tão inverossímil proteção, Vieira mandou pintar a óleo um retrato do Comendador, que colocou na sala de visitas.
Mas tudo se acaba. Um dia o comendador deixou de aparecer na loja, que tão assiduamente visitava durante tantos anos. Vieira correu imediatamente à casa onde morava, e o encontrou seriamente doente. Quis levá-lo para sua casa, onde seria tratado com desvelo familiar, mas o comendador resistiu. Era seu propósito recolher-se a um asilo para idosos, e foi necessário respeitá-lo. A doença se agravou. Embora não lhe faltasse nenhum dos recursos da medicina, morreu depois de quinze dias.
Vieira e Dona Maricota imaginavam — era natural — que ambos e o pimpolho seriam os únicos herdeiros, já que o velho não tinha família. Enganaram-se. O testamento, o único que apareceu entre os papéis do velho, e que foi divulgado depois do enterro, só contemplava no benefício o afilhado, com dez contos de réis. O resto era dividido entre hospitais e asilos. Nem o próprio Vieira tinha um único centavo no testamento.
— Estranho! — bramiu Dona Maricota. — Nunca imaginei que aquele homem não nos deixasse ricos. Por que nos dizia então que éramos os únicos membros de sua família? Que mal empregados os oitenta mil réis da coroa que lhe mandamos!
— Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria!
— Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!
— Tenho até vontade de destruir o retrato — disse indignado o marido.
— Não! Não vale a pena. Esse retrato pode ser comprado por alguma das instituições que herdarão o dinheiro desse velho tacanho.
Lançou um olhar severo sobre o retrato do Comendador, que sorria compassivamente, enquanto exclamava decepcionada:
— Este mundo está cheio de ingratos!...
(Artur Azevedo, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona)
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CONTOS BEM CONTADOS
Este blog contém uma seleção de contos literários da literatura universal. Leitura agradável e instrutiva, útil especialmente para estebelecimentos de ensino e para leitura domiciliar. Foram selecionados por LEON BEAUGESTE, autor do livro A VOLTA AO MUNDO DA NOBREZA, que pode ser apreciado e adquirido nos sites: http://www.fatoshistoricos.com.br/ e http://www.mundodanobreza.com.br/.
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SÓ QUANDO ESTIVEREM JUNTOS - Anônimo
Era uma vez três amigos que viajaram a um país estrangeiro. Chegando a uma cidade, entraram numa casa de banhos que pertencia a uma anciã. Queriam banhar-se, e disseram à mulher:
— Prepara-nos um banho com tudo o que for necessário.
Antes de entrar na sala de banhos, os três homens confiaram à anciã todo o seu dinheiro, mas fizeram expressamente a recomendação de que só lhes devolvesse o dinheiro quando os três estivessem juntos. Ela prometeu cumprir suas instruções, e eles entraram na sala de banhos.
Ocorre que a mulher havia preparado tudo, mas se esquecera do pente. Quando se deram conta dessa falta, decidiram que um deles saísse para buscá-lo. O escolhido saiu e dirigiu-se à mulher:
— Meus companheiros me encarregaram de pedir-te o nosso dinheiro.
— Só o entregarei quando os três estiverem reunidos, conforme vós mesmo me exigistes.
— São os meus próprios amigos que o desejam.
Então os dois se aproximaram da porta do quarto de banhos, ele entrou e disse aos companheiros:
— A velha está aí fora, e quer saber se pode entregá-lo a mim.
Lá de dentro eles disseram em voz alta:
— Senhora, pode entregar a ele.
A anciã foi então buscar o dinheiro e o entregou ao homem que fora buscar com ela o pente, e este em seguida fugiu.
Os outros dois esperaram em vão a volta do companheiro. Depois de muito tempo saíram, perguntaram por ele, e a anciã lhes disse:
— Ele veio buscar comigo o dinheiro, eu o entreguei de acordo com a ordem que vós me destes, e em seguida ele fugiu.
— Nós não lhe autorizamos a entrega do nosso dinheiro, mas apenas a do pente que nos faltava para o banho.
— O que ele me pediu foi o dinheiro, e não falou nada de pente.
Os dois homens decidiram levá-la ante o juiz, relataram o ocorrido, e concluíram:
— Senhor, nós havíamos ordenado a esta mulher que só entregasse o dinheiro quando nós três estivéssemos juntos, e ela o entregou ao nosso outro companheiro sozinho. Portanto, ela tem a obrigação de nos devolver o dinheiro.
O juiz concordou com eles, e ordenou:
— Tens a obrigação de entregar-lhes o dinheiro.
— Eu já o entreguei.
— Mas contrariaste a ordem deles e o entregaste quando não estavam todos reunidos. Portanto, eles têm o direito de receber de ti o dinheiro.
A anciã saiu dali aflita. Enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto, encontrou um menino, que lhe perguntou:
— Por que choras, senhora?
Ela contou ao menino a causa do seu pranto, e este lhe disse:
— Se eu a ajudar, a senhora me dará um dinheiro para comprar balas?
— Se conseguires um meio de me livrar dessa aflição, eu te darei quantas balas quiseres.
— Pois então a senhora vai voltar ante o juiz e falar com ele do seguinte modo — e expôs como ela devia argumentar com o juiz.
Satisfeita, a anciã apresentou-se ante o juiz e lhe disse:
— Senhor, como sabeis, estes homens me confiaram o dinheiro sob a condição de o devolver somente quando os três estivessem juntos. Acontece, no entanto, que só estão aqui dois deles. Eu só poderei devolver o dinheiro quando estiver também o amigo deles, de acordo com as instruções que eles me deram.
O juiz então sentenciou:
— Ide buscar o vosso amigo, e só então recebereis o dinheiro.
(R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
***
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— Prepara-nos um banho com tudo o que for necessário.
Antes de entrar na sala de banhos, os três homens confiaram à anciã todo o seu dinheiro, mas fizeram expressamente a recomendação de que só lhes devolvesse o dinheiro quando os três estivessem juntos. Ela prometeu cumprir suas instruções, e eles entraram na sala de banhos.
Ocorre que a mulher havia preparado tudo, mas se esquecera do pente. Quando se deram conta dessa falta, decidiram que um deles saísse para buscá-lo. O escolhido saiu e dirigiu-se à mulher:
— Meus companheiros me encarregaram de pedir-te o nosso dinheiro.
— Só o entregarei quando os três estiverem reunidos, conforme vós mesmo me exigistes.
— São os meus próprios amigos que o desejam.
Então os dois se aproximaram da porta do quarto de banhos, ele entrou e disse aos companheiros:
— A velha está aí fora, e quer saber se pode entregá-lo a mim.
Lá de dentro eles disseram em voz alta:
— Senhora, pode entregar a ele.
A anciã foi então buscar o dinheiro e o entregou ao homem que fora buscar com ela o pente, e este em seguida fugiu.
Os outros dois esperaram em vão a volta do companheiro. Depois de muito tempo saíram, perguntaram por ele, e a anciã lhes disse:
— Ele veio buscar comigo o dinheiro, eu o entreguei de acordo com a ordem que vós me destes, e em seguida ele fugiu.
— Nós não lhe autorizamos a entrega do nosso dinheiro, mas apenas a do pente que nos faltava para o banho.
— O que ele me pediu foi o dinheiro, e não falou nada de pente.
Os dois homens decidiram levá-la ante o juiz, relataram o ocorrido, e concluíram:
— Senhor, nós havíamos ordenado a esta mulher que só entregasse o dinheiro quando nós três estivéssemos juntos, e ela o entregou ao nosso outro companheiro sozinho. Portanto, ela tem a obrigação de nos devolver o dinheiro.
O juiz concordou com eles, e ordenou:
— Tens a obrigação de entregar-lhes o dinheiro.
— Eu já o entreguei.
— Mas contrariaste a ordem deles e o entregaste quando não estavam todos reunidos. Portanto, eles têm o direito de receber de ti o dinheiro.
A anciã saiu dali aflita. Enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto, encontrou um menino, que lhe perguntou:
— Por que choras, senhora?
Ela contou ao menino a causa do seu pranto, e este lhe disse:
— Se eu a ajudar, a senhora me dará um dinheiro para comprar balas?
— Se conseguires um meio de me livrar dessa aflição, eu te darei quantas balas quiseres.
— Pois então a senhora vai voltar ante o juiz e falar com ele do seguinte modo — e expôs como ela devia argumentar com o juiz.
Satisfeita, a anciã apresentou-se ante o juiz e lhe disse:
— Senhor, como sabeis, estes homens me confiaram o dinheiro sob a condição de o devolver somente quando os três estivessem juntos. Acontece, no entanto, que só estão aqui dois deles. Eu só poderei devolver o dinheiro quando estiver também o amigo deles, de acordo com as instruções que eles me deram.
O juiz então sentenciou:
— Ide buscar o vosso amigo, e só então recebereis o dinheiro.
(R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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QUEM CONTA UM CONTO... - Machado de Assis
Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé, dizem os tomistas, alivia o cérebro. A briga de galos é o Jóquei-Clube dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.
E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é um tipo comum, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer, as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.
Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é, tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.
O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.
* * *
Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
Era um modelo do gênero. Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira, como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.
Não, senhor.
Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o Ministério pedira demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.
Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e, se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
— Então, parece que os homens...
Os circunstantes perguntavam logo:
— Que é? Que há?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
— É o Ministério que pediu a demissão.
— Ah! Sim? Quando?
— Hoje.
— Sabe quem foi chamado?
— Foi chamado o Zezinho.
— Mas por que caiu o Ministério?
— Ora, estava podre.
Etc. etc.
Ou então:
— Morreram como vieram.
— Quem? Quem? Quem?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
— Os ministros.
Suponhamos agora que se tratasse de uma pessoa qualificada que devia vir no navio: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck. Luís da Costa puxava os punhos negligentemente, e em vez de dizer com simplicidade:
— Veio no navio de hoje o príncipe Bismarck.
Ou então:
— O Thiers chegou no navio.
Voltava-se para um dos circunstantes:
— Teria chegado o navio?
— Chegou — dizia o circunstante.
— O Thiers veio?
— Veio.
Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa — razão principal do seu ofício.
* * *
Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando muito, singular.
Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? — perguntava o poeta da “Jovem Cativa”. Eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro. Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu ofício.
Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado, como homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos e soltou secamente estas palavras:
— Então fugiu a sobrinha do Gouveia? — disse ele, rindo.
— Que Gouveia?
— O Major Gouveia — explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.
— O Major Gouveia da Cidade Nova? — perguntou o desconhecido ao noveleiro.
— Sim, senhor.
Novo e mais profundo silêncio.
Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de soltar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do Major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.
O silêncio era sepulcral.
O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão. Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
— E quando foi esse rapto?
— Hoje de manhã.
— O~h!
— Das oito para as nove horas.
— Conhece o Major Gouveia?
— De nome.
— Que idéia forma dele?
— Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita...
— Conhece-a?
— Ainda ontem a vi.
— Ah! A segunda circunstância...
— A segunda circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata, dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o Major impedi-lo?
— O Major tinha razões fortes — observou o desconhecido.
— Ah! Conhece-o?
— Sou eu.
Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois, sem saber o que iria sair dali. Deste modo correram cinco minutos.
* * *
No fim de cinco minutos, o Major Gouveia continuou:
— Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.
Luís da Costa ficou amarelo.
— Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...
Luís da Costa ostentou todas as cores do arco-íris.
— Então? — disse o Major, passados alguns instantes de silêncio.
— Sr. Major — disse com voz trêmula Luís da Costa — eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.
— É justamente o que eu desejo saber.
— Não me lembro...
— Veja se se lembra — disse o Major amigavelmente.
Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.
As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o Major, que não era homem de graça, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.
— Ah! agora me lembro — disse de repente Luís da Costa — foi o Pires.
— Que Pires?
— Um Pires que eu conheço muito superficialmente.
— Bem, vamos ter com o Pires.
— Mas, Sr. Major...
O Major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com um ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do Major, não sem tentar ainda um:
— Mas, Sr. Major...
— Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?
— Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.
— Vamos ao escritório.
Luís da Costa cumprimentou os outros e saiu ao lado do Major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O Major recusou o charuto, dobrou o passo, e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.
* * *
— O Sr. Pires?
— Foi à Secretaria da Justiça.
— Demora-se?
— Não sei.
Luís da Costa olhou para o Major, ao ouvir estas respostas do criado do Sr. Pires. O Major disse, fleumaticamente:
— Vamos à Secretaria da Justiça.
E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do Major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o Major o levasse até lá antes de jantar. Tudo estava perdido.
Chegaram enfim à Secretaria, bufando como dois touros. Os empregados vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhe que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.
— Voltemos à Rua dos Pescadores — disse pacificamente o Major.
— Mas, senhor...
A única resposta do Major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.
Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o Major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.
O Major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.
Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.
O Major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.
— Não há dúvida — disse ele — iremos à Praia Grande.
— Isso é impossível! — clamou Luís da Costa.
— Não é tal — respondeu tranqüilamente o Major — temos barca, e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.
— Mas, senhor, a esta hora...
— Que tem?
— São horas de jantar — suspirou o estômago de Luís da Costa.
— Pois jantaremos antes.
Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do Major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela. Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foram o começo da reconciliação. Quando veio o café e um charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.
O Major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.
No trajeto, o Major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o Major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como as soubesse.
* * *
O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em São Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
O Major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda, e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
— Vamos a São Domingos.
— Vamos a São Domingos — suspirou Luís da Costa.
A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.
Na casa do Dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir. Enfim vieram.
— Está cá o Sr. Pires?
— Está, sim senhor — disse o moleque.
Os dois respiraram. O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable. Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão de Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente o Major Gouveia.
— Queiram sentar-se.
— Perdão — disse o Major — mas não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.
O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou. O Major voltou-se então para Luís da Costa e disse:
— Fale.
Luís da Costa fez das tripas coração, e exprimiu-se nestes termos:
— Estando eu hoje na loja de Paula Brito, contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. Major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O Major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia, e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim encontramo-lo.
Durante o discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações de espanto e de medo. Um ator, um pintor ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.
— Espero as suas ordens — disse o Major, vendo que o homem não falava.
— Mas que quer o senhor? — balbuciou o Sr. Pires.
— Que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?
— Não disse tal — acudiu o Sr. Pires — o que eu disse foi que me constava ser bonita.
— Vê? — disse o Major, voltando-se para Luís da Costa.
Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto. O Major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:
— Mas vamos lá: de quem ouviu a notícia?
— Foi de um empregado do tesouro.
— Onde mora?
— Em Catumbi.
O Major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.
— Pode retirar-se — disse o Major.
Luís da Costa apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível Major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
* * *
Ficaram a sós o Major e o Sr. Pires.
— Agora — disse o primeiro — há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do tesouro... Como se chama?
— O bacharel Plácido.
— Estou às suas ordens. Tem passagem de carro paga.
O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:
— Mas eu não sei... se...
— Se?
— Não sei se me é possível nesta ocasião...
— Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.
— Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...
— O quê?
— Adiar?
— Impossível.
O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.
— Acredite, Sr. Major — disse ele, concluindo — que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.
O Major inclinou-se.
O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável Major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.
A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O Major parecia uma estátua; não falava, e raras vezes olhava para o seu companheiro. A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete fumando sete cigarros por hora.
Enfim chegaram a Catumbi. Desta vez foi o Major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.
O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido, verdadeiramente plácido.
O Sr. Pires explicou o objeto da visita.
— E é verdade que eu lhe falei de um rapto — disse o bacharel — mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do Major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto do rapto.
— E quem lhe disse isto, Sr. bacharel? — perguntou o Major.
— Foi o Capitão de Artilharia Soares.
— Onde mora?
— Ali em Mataporcos.
— Bem — disse o Major. E voltando-se para o Sr. Pires: — agradeço-lhe o incômodo; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.
O Sr. Pires não esperou novo discurso. Despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro, deu dois ou três socos em si mesmo, e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa:
— É bem feito! Quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado, e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!
* * *
O bacharel Plácido encarou o Major sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o Major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:
— Queira agora acompanhar-me à casa do Capitão Soares.
— Acompanhá-lo! — exclamou o bacharel surpreendido.
— Sim, senhor.
— Que pretende fazer?
— Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.
O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias, para ir a Mataporcos, era um absurdo. A nada atendia o Major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.
— Mas há de confessar que é longe — observou este.
— Não seja essa a dúvida — acudiu o outro — mande chamar um carro, que eu pago.
O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.
— Então? — disse o Major, ao cabo de algum tempo de silêncio.
— Refleti. É melhor irmos a pé. Eu jantei há pouco, e preciso digerir. Vamos a pé...
— Bem, estou às suas ordens.
O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o Major, com as mãos nas costas, passeava na sala, meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.
Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala quando o Major ia já tocar a campainha para chamar alguém.
— Pronto?
— Pronto.
— Vamos!
— Deus vá conosco.
Se uma pipa andasse, seria o bacharel Plácido. Já porque a gordura não lho consentia, já porque desejaria pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.
Com este era impossível o Major empregar o sistema de reboque, que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar, era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.
Tudo isto punha o Major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.
O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do Capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o Major batia palmas na escada.
— Quem é? — perguntou uma voz açucarada.
— O Sr. Capitão? — disse o Major Gouveia.
— Eu não sei se já saiu — respondeu a voz. — Vou ver.
Foi ver, enquanto o Major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:
— O Sr. quem é?
— Diga que o bacharel Plácido — acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.
A voz foi dar a resposta, e daí a dois minutos voltou e disse que o bacharel Plácido podia subir. Subiram os dois.
O Capitão estava na sala, e veio receber à porta o bacharel e o Major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.
— Queiram sentar-se.
Sentaram-se.
* * *
— Que mandam nesta casa? — perguntou o Capitão Soares.
O bacharel usou da palavra:
— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. Major Gouveia.
— Não me lembro. Que foi? — disse o Capitão, com uma cara tão alegre como a de um homem a que estivessem torcendo o pé.
— Disse-me você — continuou o bacharel Plácido — que o namoro da sobrinha do Sr. Major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...
— Perdão! — interrompeu o Capitão — agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.
— Não foi?
— Não.
— Então, que foi?
— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. Sa. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.
— Sim, há alguma diferença — concordou o bacharel.
— Há — disse o Major, deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
Seguiu-se um silêncio.
— Enfim, senhores — disse ele — ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. Capitão dizer-me de quem ouviu isso?
— Do desembargador Lucas.
— É meu amigo.
— Tanto melhor.
— Acho impossível que ele dissesse isso — disse o Major, levantando-se.
— Senhor! — exclamou o Capitão.
— Perdoe-me, Capitão — disse o Major, caindo em si — há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado, por culpa de um amigo...
— Nem ele disse por mal — observou o Capitão Soares — Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa.
— É verdade — concordou o Major —, o desembargador não seria capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso de alguém.
— É provável.
— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.
— Agora?!
— Indispensável.
— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
— Sei. Iremos de carro.
O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.
— Não podíamos adiar isso para depois? — perguntou o Capitão logo que o bacharel saiu.
— Não, senhor.
O Capitão estava em sua casa; mas o Major tinha tal império na voz ou no gesto, quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O Capitão não teve remédio senão ceder. Preparou-se, meteram-se num carro, e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.
O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.
Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que, em menos de uma hora, lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava — figuradamente falando — e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes:
— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.
— Vamos, tenha paciência — dizia-lhe o coadjutor — vá ver o que é, que eu o espero. Talvez esta interrupção corrija a sorte dos dados.
— Tem razão, é possível — concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.
* * *
Na sala, teve a surpresa de achar dois conhecidos.
O Capitão levantou-se, sorrindo, e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O Major levantou-se também, mas não sorria.
Feitos os cumprimentos, foi exposta a questão. O Capitão Soares apelou para a memória do desembargador, de quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do Major Gouveia.
— Recordo-me ter-lhe dito — respondeu o desembargador — que a sobrinha do meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...
O Major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia diminuindo à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.
— Muito bem — disse ele — a mim não basta esse dito; desejo saber de quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
— De quem o ouvi?
— Sim.
— Foi do senhor.
— De mim!
— Sim, senhor! Sábado passado.
— Não é possível.
— Não se lembra que me disse, na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...
— Ah! Mas não foi isso! O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.
— Nada mais? — perguntou o capitão.
— Nada mais.
— Realmente, é curioso.
O Major despediu-se do desembargador, levou o Capitão até Mataporcos e foi direito para casa, praguejando contra si e todo o mundo.
Ao entrar em casa, já estava mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama, ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:
— Quem conta um conto...
(Machado de Assis, in O. Pimentel, Antologia de contos – Livraria Cultural Ltda., Rio, 1961)
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E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é um tipo comum, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer, as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.
Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é, tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.
O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.
* * *
Há coisa de sete anos, vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
Era um modelo do gênero. Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira, como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.
Não, senhor.
Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o Ministério pedira demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.
Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e, se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
— Então, parece que os homens...
Os circunstantes perguntavam logo:
— Que é? Que há?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
— É o Ministério que pediu a demissão.
— Ah! Sim? Quando?
— Hoje.
— Sabe quem foi chamado?
— Foi chamado o Zezinho.
— Mas por que caiu o Ministério?
— Ora, estava podre.
Etc. etc.
Ou então:
— Morreram como vieram.
— Quem? Quem? Quem?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
— Os ministros.
Suponhamos agora que se tratasse de uma pessoa qualificada que devia vir no navio: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck. Luís da Costa puxava os punhos negligentemente, e em vez de dizer com simplicidade:
— Veio no navio de hoje o príncipe Bismarck.
Ou então:
— O Thiers chegou no navio.
Voltava-se para um dos circunstantes:
— Teria chegado o navio?
— Chegou — dizia o circunstante.
— O Thiers veio?
— Veio.
Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa — razão principal do seu ofício.
* * *
Não se pode negar que este prazer era inocente e, quando muito, singular.
Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? — perguntava o poeta da “Jovem Cativa”. Eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro. Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu ofício.
Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado, como homem que vem pejado de alguma notícia. Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos e soltou secamente estas palavras:
— Então fugiu a sobrinha do Gouveia? — disse ele, rindo.
— Que Gouveia?
— O Major Gouveia — explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.
— O Major Gouveia da Cidade Nova? — perguntou o desconhecido ao noveleiro.
— Sim, senhor.
Novo e mais profundo silêncio.
Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de soltar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do Major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.
O silêncio era sepulcral.
O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão. Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
— E quando foi esse rapto?
— Hoje de manhã.
— O~h!
— Das oito para as nove horas.
— Conhece o Major Gouveia?
— De nome.
— Que idéia forma dele?
— Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a moça é muito bonita...
— Conhece-a?
— Ainda ontem a vi.
— Ah! A segunda circunstância...
— A segunda circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata, dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o Major impedi-lo?
— O Major tinha razões fortes — observou o desconhecido.
— Ah! Conhece-o?
— Sou eu.
Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois, sem saber o que iria sair dali. Deste modo correram cinco minutos.
* * *
No fim de cinco minutos, o Major Gouveia continuou:
— Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.
Luís da Costa ficou amarelo.
— Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...
Luís da Costa ostentou todas as cores do arco-íris.
— Então? — disse o Major, passados alguns instantes de silêncio.
— Sr. Major — disse com voz trêmula Luís da Costa — eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.
— É justamente o que eu desejo saber.
— Não me lembro...
— Veja se se lembra — disse o Major amigavelmente.
Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.
As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o Major, que não era homem de graça, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.
— Ah! agora me lembro — disse de repente Luís da Costa — foi o Pires.
— Que Pires?
— Um Pires que eu conheço muito superficialmente.
— Bem, vamos ter com o Pires.
— Mas, Sr. Major...
O Major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com um ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do Major, não sem tentar ainda um:
— Mas, Sr. Major...
— Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?
— Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.
— Vamos ao escritório.
Luís da Costa cumprimentou os outros e saiu ao lado do Major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O Major recusou o charuto, dobrou o passo, e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.
* * *
— O Sr. Pires?
— Foi à Secretaria da Justiça.
— Demora-se?
— Não sei.
Luís da Costa olhou para o Major, ao ouvir estas respostas do criado do Sr. Pires. O Major disse, fleumaticamente:
— Vamos à Secretaria da Justiça.
E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do Major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o Major o levasse até lá antes de jantar. Tudo estava perdido.
Chegaram enfim à Secretaria, bufando como dois touros. Os empregados vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhe que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.
— Voltemos à Rua dos Pescadores — disse pacificamente o Major.
— Mas, senhor...
A única resposta do Major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.
Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o Major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.
O Major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.
Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.
O Major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.
— Não há dúvida — disse ele — iremos à Praia Grande.
— Isso é impossível! — clamou Luís da Costa.
— Não é tal — respondeu tranqüilamente o Major — temos barca, e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.
— Mas, senhor, a esta hora...
— Que tem?
— São horas de jantar — suspirou o estômago de Luís da Costa.
— Pois jantaremos antes.
Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do Major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela. Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foram o começo da reconciliação. Quando veio o café e um charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.
O Major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.
No trajeto, o Major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o Major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como as soubesse.
* * *
O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em São Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
O Major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda, e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
— Vamos a São Domingos.
— Vamos a São Domingos — suspirou Luís da Costa.
A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.
Na casa do Dr. Oliveira, passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir. Enfim vieram.
— Está cá o Sr. Pires?
— Está, sim senhor — disse o moleque.
Os dois respiraram. O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable. Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão de Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente o Major Gouveia.
— Queiram sentar-se.
— Perdão — disse o Major — mas não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.
O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou. O Major voltou-se então para Luís da Costa e disse:
— Fale.
Luís da Costa fez das tripas coração, e exprimiu-se nestes termos:
— Estando eu hoje na loja de Paula Brito, contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. Major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O Major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia, e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim encontramo-lo.
Durante o discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações de espanto e de medo. Um ator, um pintor ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.
— Espero as suas ordens — disse o Major, vendo que o homem não falava.
— Mas que quer o senhor? — balbuciou o Sr. Pires.
— Que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?
— Não disse tal — acudiu o Sr. Pires — o que eu disse foi que me constava ser bonita.
— Vê? — disse o Major, voltando-se para Luís da Costa.
Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto. O Major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:
— Mas vamos lá: de quem ouviu a notícia?
— Foi de um empregado do tesouro.
— Onde mora?
— Em Catumbi.
O Major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.
— Pode retirar-se — disse o Major.
Luís da Costa apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível Major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
* * *
Ficaram a sós o Major e o Sr. Pires.
— Agora — disse o primeiro — há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do tesouro... Como se chama?
— O bacharel Plácido.
— Estou às suas ordens. Tem passagem de carro paga.
O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:
— Mas eu não sei... se...
— Se?
— Não sei se me é possível nesta ocasião...
— Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.
— Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...
— O quê?
— Adiar?
— Impossível.
O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.
— Acredite, Sr. Major — disse ele, concluindo — que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.
O Major inclinou-se.
O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável Major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.
A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O Major parecia uma estátua; não falava, e raras vezes olhava para o seu companheiro. A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete fumando sete cigarros por hora.
Enfim chegaram a Catumbi. Desta vez foi o Major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.
O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido, verdadeiramente plácido.
O Sr. Pires explicou o objeto da visita.
— E é verdade que eu lhe falei de um rapto — disse o bacharel — mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do Major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto do rapto.
— E quem lhe disse isto, Sr. bacharel? — perguntou o Major.
— Foi o Capitão de Artilharia Soares.
— Onde mora?
— Ali em Mataporcos.
— Bem — disse o Major. E voltando-se para o Sr. Pires: — agradeço-lhe o incômodo; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.
O Sr. Pires não esperou novo discurso. Despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro, deu dois ou três socos em si mesmo, e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa:
— É bem feito! Quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado, e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!
* * *
O bacharel Plácido encarou o Major sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o Major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:
— Queira agora acompanhar-me à casa do Capitão Soares.
— Acompanhá-lo! — exclamou o bacharel surpreendido.
— Sim, senhor.
— Que pretende fazer?
— Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.
O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias, para ir a Mataporcos, era um absurdo. A nada atendia o Major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.
— Mas há de confessar que é longe — observou este.
— Não seja essa a dúvida — acudiu o outro — mande chamar um carro, que eu pago.
O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.
— Então? — disse o Major, ao cabo de algum tempo de silêncio.
— Refleti. É melhor irmos a pé. Eu jantei há pouco, e preciso digerir. Vamos a pé...
— Bem, estou às suas ordens.
O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o Major, com as mãos nas costas, passeava na sala, meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.
Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala quando o Major ia já tocar a campainha para chamar alguém.
— Pronto?
— Pronto.
— Vamos!
— Deus vá conosco.
Se uma pipa andasse, seria o bacharel Plácido. Já porque a gordura não lho consentia, já porque desejaria pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.
Com este era impossível o Major empregar o sistema de reboque, que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar, era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.
Tudo isto punha o Major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.
O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do Capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o Major batia palmas na escada.
— Quem é? — perguntou uma voz açucarada.
— O Sr. Capitão? — disse o Major Gouveia.
— Eu não sei se já saiu — respondeu a voz. — Vou ver.
Foi ver, enquanto o Major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:
— O Sr. quem é?
— Diga que o bacharel Plácido — acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.
A voz foi dar a resposta, e daí a dois minutos voltou e disse que o bacharel Plácido podia subir. Subiram os dois.
O Capitão estava na sala, e veio receber à porta o bacharel e o Major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.
— Queiram sentar-se.
Sentaram-se.
* * *
— Que mandam nesta casa? — perguntou o Capitão Soares.
O bacharel usou da palavra:
— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. Major Gouveia.
— Não me lembro. Que foi? — disse o Capitão, com uma cara tão alegre como a de um homem a que estivessem torcendo o pé.
— Disse-me você — continuou o bacharel Plácido — que o namoro da sobrinha do Sr. Major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...
— Perdão! — interrompeu o Capitão — agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.
— Não foi?
— Não.
— Então, que foi?
— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. Sa. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.
— Sim, há alguma diferença — concordou o bacharel.
— Há — disse o Major, deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
Seguiu-se um silêncio.
— Enfim, senhores — disse ele — ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. Capitão dizer-me de quem ouviu isso?
— Do desembargador Lucas.
— É meu amigo.
— Tanto melhor.
— Acho impossível que ele dissesse isso — disse o Major, levantando-se.
— Senhor! — exclamou o Capitão.
— Perdoe-me, Capitão — disse o Major, caindo em si — há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado, por culpa de um amigo...
— Nem ele disse por mal — observou o Capitão Soares — Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa.
— É verdade — concordou o Major —, o desembargador não seria capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso de alguém.
— É provável.
— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.
— Agora?!
— Indispensável.
— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
— Sei. Iremos de carro.
O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.
— Não podíamos adiar isso para depois? — perguntou o Capitão logo que o bacharel saiu.
— Não, senhor.
O Capitão estava em sua casa; mas o Major tinha tal império na voz ou no gesto, quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O Capitão não teve remédio senão ceder. Preparou-se, meteram-se num carro, e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.
O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.
Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que, em menos de uma hora, lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava — figuradamente falando — e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes:
— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.
— Vamos, tenha paciência — dizia-lhe o coadjutor — vá ver o que é, que eu o espero. Talvez esta interrupção corrija a sorte dos dados.
— Tem razão, é possível — concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.
* * *
Na sala, teve a surpresa de achar dois conhecidos.
O Capitão levantou-se, sorrindo, e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O Major levantou-se também, mas não sorria.
Feitos os cumprimentos, foi exposta a questão. O Capitão Soares apelou para a memória do desembargador, de quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do Major Gouveia.
— Recordo-me ter-lhe dito — respondeu o desembargador — que a sobrinha do meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...
O Major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia diminuindo à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.
— Muito bem — disse ele — a mim não basta esse dito; desejo saber de quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
— De quem o ouvi?
— Sim.
— Foi do senhor.
— De mim!
— Sim, senhor! Sábado passado.
— Não é possível.
— Não se lembra que me disse, na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...
— Ah! Mas não foi isso! O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.
— Nada mais? — perguntou o capitão.
— Nada mais.
— Realmente, é curioso.
O Major despediu-se do desembargador, levou o Capitão até Mataporcos e foi direito para casa, praguejando contra si e todo o mundo.
Ao entrar em casa, já estava mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama, ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:
— Quem conta um conto...
(Machado de Assis, in O. Pimentel, Antologia de contos – Livraria Cultural Ltda., Rio, 1961)
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QUAL DOS NOVE? - Maurício Jokai
Havia nesta cidade de Budapest um pobre sapateiro, que nunca conseguiu enriquecer com o trabalho de suas mãos. Não se pense que todo mundo havia decidido deixar de usar botas, nem que os governantes da cidade o tivessem obrigado a vender os calçados pela metade do preço. O honrado sapateiro trabalhava tão bem, que seus clientes se queixavam de quase nunca conseguir gastar as botas que ele fazia. Choviam as encomendas, todos lhe pagavam pontualmente, e nunca ninguém pensou sequer em desaparecer sem pagar a conta.
Apesar disso o sapateiro João jamais conseguia levantar a cabeça. Ao contrário, esteve tentado muitas vezes a jogar-se ao rio para morrer afogado. Claro que isso era apenas uma forma de desabafo, porque João era bom cristão, e um cristão não se suicida, por mais que o destino o maltrate.
João não conseguia nunca viver com folga, porque Deus o havia abençoado de outro modo na família, e com grande abundância: todos os anos, com exata regularidade, sua mulher lhe dava ora um filho, ora uma filha, sempre pletóricos de força e saúde.
— Deus meu! — suspirava João toda vez que chegava um novo filho.
Suspirou com o sexto, com o sétimo e com o oitavo. Será que nunca chegaria ao ponto final?
Veio ao mundo o nono, morreu a mulher, e o ponto final chegou.
João se encontrou sozinho neste vasto mundo com seus nove filhos, o que já é bastante. Dois ou três iam à escola, outros aprendiam pouco a pouco a andar, mas ainda havia os menores, que ele tinha de carregar nos braços, dar de comer, preparar o mingau... Além de alimentar, vestir e lavar, tinha de os entreter. Reconheçamos que a carga era pesada, mas com um pouco de prática acaba tornando-se suportável.
Tudo tinha de ser multiplicado por nove. Nove pares de calçados, nove pedaços de pão, nove roupas; nove camas, a casa toda cheia delas; todas com cabeças humanas pequenas e grandes, ruivas ou morenas.
— Deus meu! Deus meu! — suspirava com freqüência o honrado artesão, às vezes depois da meia-noite, enquanto manejava infatigavelmente a sovela para alimentar os corpos de tantas almas, ou tratava de acalmar um ou outro de seus filhos que não queria dormir tranqüilo.
Eram nove, nem mais nem menos, mas não tinha do que queixar-se. Os nove se desenvolviam maravilhosamente: todos bonitos, decididos, educados, com as mãos e pernas bem formadas e estômago de ferro. Ele preferia os nove pedaços de pão a um frasco de remédios, nove camas encostadas umas às outras a um ataúde entre elas. Que Deus mantenha o ataúde longe de pais e mães sensíveis, mesmo que ao perder um filho fiquem ainda com oito. Também é verdade que os filhos do sapateiro João não tinham nenhuma intenção de morrer, e estavam predestinados a caminhar pela vida. Resistiam a tudo: chuva, neve, pão seco...
Um dia, véspera de Natal, João voltou para casa muito tarde, depois de intermináveis voltas pela cidade. Fora entregar encomendas em domicílio de clientes, recebendo por elas o suficiente para pagar as compras de matéria-prima e atender aos gastos caseiros. Quando se dirigia apressadamente para casa, viu que em todas as esquinas se haviam instalado quiosques cheios de artigos para presente, que os pais iam comprando para os filhos. Deteve-se em algum desses quiosques, pensando: “Devo comprar algum desses presentes?” Mas ao lembrar-se de que tinha nove filhos, duvidou. Comprar para todos, era acima das suas possibilidades. Comprar um só, suscitaria invejas e disputas. E resolveu fazer outra coisa. Decidiu fazer-lhes outro presente de Natal, algo bonito e magnífico, que não se quebrasse nem se gastasse, e que os alegraria a todos, sem que houvesse possibilidade de nenhum ficar privado do presente.
Quando se encontrou no meio daquelas nove cabeças, disse:
— Meus filhos... um, dois, três, quatro... vejo que estão todos aqui. Vocês sabem que hoje é véspera de Natal. É uma grande festa, uma festa magnífica! Hoje não vamos trabalhar mais, vamos festejar esta noite.
Os meninos ficaram tão contentes com a proposta, que parecia que a casa vinha a baixo.
— Esperem, fiquem quietos. Vou ensinar a vocês uma linda canção de Natal. Sei uma que é preciosa, e guardei-a para esta noite. É um presente que eu lhes dou.
O grupo de pequenos abraçou as pernas e o pescoço do pai, quase derrubando-o, por causa da canção de Natal.
— Prestem atenção! Todos alinhados! Assim: os maiores atrás e os menores na frente.
Alinharam-se como os tubos de um órgão, e os dois menores se sentaram, um no joelho e o outro no braço do pai.
— Agora, silêncio. Primeiro eu vou cantar sozinho, e depois vocês todos cantam comigo.
Com ar grave e recolhido, depois de tirar seu gorro verde, João se pôs a cantar a belíssima canção que começa assim:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Os meninos e meninas maiores aprenderam logo a melodia, mas os menores estropiavam a letra e o ritmo. Por fim todos acabaram aprendendo. E foi uma grande alegria quando os nove começaram a cantar, com suas frescas vozes, essa bela canção que um dia os próprios anjos cantaram, e que talvez cantem ainda hoje, depois que as vozes alegres e harmoniosas de nove almas inocentes pediu um eco celestial.
É certo que nas alturas houve regozijo com o canto dos meninos. Mas é certo também que no andar de cima o regozijo não era tão grande. Morava ali, sozinho em nove cômodos, um velho solteirão, que comia no primeiro, sentava-se no segundo, fumava no terceiro e dormia no quarto. Só Deus sabe o que poderia fazer nos demais cômodos o ricaço, sem mulher e sem filhos.
Naquela noite esse homem estava sentado no seu oitavo cômodo, e se perguntava por que sua comida não era saborosa, por que os dias e as noites não tinham nada interessante, por que aqueles amplos cômodos não eram suficientemente ventilados, por que não podia conciliar o sono no seu leito macio. Começou então a ouvir as vozes de João e seus filhos, cantando a canção que convidava todos a alegrar-se. A princípio não quis prestar atenção, pensando que acabariam logo. Mas quando começaram a cantá-la pela décima vez, perdeu a paciência. Jogou de lado o cigarro apagado e desceu à casa do sapateiro.
— O senhor é o sapateiro João?
— Às suas ordens, senhor. Está interessado em um par de botas, ou algum outro tipo de calçado?
— Não o procurei por este motivo. Pelo que vejo, não lhe faltam filhos.
— Grandes e pequenos, senhor. E são numerosos quando tenho de lhes dar alimentos.
— E mais numerosos ainda me parecem quando se põem a cantar. Olhe, Sr. João, quero que seja um homem feliz. Dê-me um dos seus filhos. Eu o adotarei, e será como meu filho. Darei a ele uma boa educação, e o levarei para viajar comigo por outros países. Será um homem rico e poderá ajudar os demais.
João arregalou os olhos ao ouvir as palavras do ricaço. Tratava-se de dar uma resposta importante. Que pai não se comove, ante a perspectiva de tornar rico um dos seus filhos?
— Então, Sr. João, concorda? É claro que concorda, pois é uma felicidade para o menino. Escolha-o depressa, que preciso voltar para casa.
João começou a escolher:
— Este aqui é o Alexandre. Não o dou, porque é bom estudante, e com o tempo vai ser um grande sábio. Esta é menina, e certamente o Sr. não quer uma menina. Este aqui já me ajuda no trabalho, e não posso prescindir dele. Zequinha é a cara da mãe, e tem de ficar comigo. Paulo? Não, pois era o preferido da mãe, e ela não descansaria tranqüila se o desse a um estranho. Estes dois são ainda menores, e o Sr. não teria o que fazer com eles.
Ao terminar a conta, ainda não se havia decidido. Voltou a começar pelos menores, e o resultado foi idêntico. Impossível escolher, impossível dar um deles, pois gostava muito de todos.
— Vamos, meninos, vocês mesmos têm que escolher. Quem quer sair desta casa para tornar-se pessoa importante? Quem quer ir-se agora?
Enquanto assim falava, o pobre sapateiro estava a ponto de desfazer-se em lágrimas. Mas os meninos, enquanto ele os incentivava, foram todos esconder-se atrás do pai. Um se agarrava na mão, outro nos joelhos, outro no avental de couro, para que o ricaço não os visse.
Por fim João não conseguiu dominar-se mais, inclinou-se para eles e os abraçou, chorando, e os meninos não demoraram a imitar o exemplo do pai.
— Impossível, senhor! Não posso. Sinto, mas não posso dar os meus filhos a ninguém, já que Deus os deu a mim.
O homem rico respondeu que não tinha intenção de impor sua vontade, e pediu a João que lhe fizesse ao menos um serviço insignificante: que não continuasse cantando com seus filhos, e em troca disso lhe deu uma nota de cem libras. João, que nunca tivera em mãos uma nota desse valor, estava maravilhado.
O vizinho voltou para sua casa, enquanto João, depois de muito admirar a nota, guardou-a timidamente na gaveta e se calou. A meninada se calou também, pois estava proibido cantar. Os maiores se sentaram nas cadeiras e tratavam, embora sem convicção, de tranqüilizar os menores: não se pode cantar, porque o homem rico do andar de cima nos ouviria.
O próprio sapateiro, silencioso, batia com o pé no chão. Acabou afastando bruscamente o mais novo, o preferido da sua mulher, que insistia em aprender a bela canção de Natal:
— Está proibido cantar.
Depois sentou-se no seu banco de trabalho e se pôs a cortar e recortar com tanta atenção, que de repente se deu conta de que estava cantando involuntariamente.
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Bateu com a mão na boca, e seu rosto ficou vermelho de cólera. Deu um murro na mesa, abriu a gaveta e retirou a nota. Em seguida correu à casa do vizinho do segundo andar.
— Senhor, que Deus o abençoe! Guarde este dinheiro, se quiser, pois eu não o quero. Prefiro cantar quando tiver vontade. Isso vale para mim muito mais do que cem libras.
Deixou a nota sobre a mesa e voltou correndo para junto dos filhos. Beijou-os um por um, recolocou-os na formação dos tubos de órgão, sentou-se no seu banco de sapateiro, e todos começaram a cantar:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Estavam todos contentes, tão contentes que se poderia dizer que a casa era deles.
(Maurício Jokai, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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Apesar disso o sapateiro João jamais conseguia levantar a cabeça. Ao contrário, esteve tentado muitas vezes a jogar-se ao rio para morrer afogado. Claro que isso era apenas uma forma de desabafo, porque João era bom cristão, e um cristão não se suicida, por mais que o destino o maltrate.
João não conseguia nunca viver com folga, porque Deus o havia abençoado de outro modo na família, e com grande abundância: todos os anos, com exata regularidade, sua mulher lhe dava ora um filho, ora uma filha, sempre pletóricos de força e saúde.
— Deus meu! — suspirava João toda vez que chegava um novo filho.
Suspirou com o sexto, com o sétimo e com o oitavo. Será que nunca chegaria ao ponto final?
Veio ao mundo o nono, morreu a mulher, e o ponto final chegou.
João se encontrou sozinho neste vasto mundo com seus nove filhos, o que já é bastante. Dois ou três iam à escola, outros aprendiam pouco a pouco a andar, mas ainda havia os menores, que ele tinha de carregar nos braços, dar de comer, preparar o mingau... Além de alimentar, vestir e lavar, tinha de os entreter. Reconheçamos que a carga era pesada, mas com um pouco de prática acaba tornando-se suportável.
Tudo tinha de ser multiplicado por nove. Nove pares de calçados, nove pedaços de pão, nove roupas; nove camas, a casa toda cheia delas; todas com cabeças humanas pequenas e grandes, ruivas ou morenas.
— Deus meu! Deus meu! — suspirava com freqüência o honrado artesão, às vezes depois da meia-noite, enquanto manejava infatigavelmente a sovela para alimentar os corpos de tantas almas, ou tratava de acalmar um ou outro de seus filhos que não queria dormir tranqüilo.
Eram nove, nem mais nem menos, mas não tinha do que queixar-se. Os nove se desenvolviam maravilhosamente: todos bonitos, decididos, educados, com as mãos e pernas bem formadas e estômago de ferro. Ele preferia os nove pedaços de pão a um frasco de remédios, nove camas encostadas umas às outras a um ataúde entre elas. Que Deus mantenha o ataúde longe de pais e mães sensíveis, mesmo que ao perder um filho fiquem ainda com oito. Também é verdade que os filhos do sapateiro João não tinham nenhuma intenção de morrer, e estavam predestinados a caminhar pela vida. Resistiam a tudo: chuva, neve, pão seco...
Um dia, véspera de Natal, João voltou para casa muito tarde, depois de intermináveis voltas pela cidade. Fora entregar encomendas em domicílio de clientes, recebendo por elas o suficiente para pagar as compras de matéria-prima e atender aos gastos caseiros. Quando se dirigia apressadamente para casa, viu que em todas as esquinas se haviam instalado quiosques cheios de artigos para presente, que os pais iam comprando para os filhos. Deteve-se em algum desses quiosques, pensando: “Devo comprar algum desses presentes?” Mas ao lembrar-se de que tinha nove filhos, duvidou. Comprar para todos, era acima das suas possibilidades. Comprar um só, suscitaria invejas e disputas. E resolveu fazer outra coisa. Decidiu fazer-lhes outro presente de Natal, algo bonito e magnífico, que não se quebrasse nem se gastasse, e que os alegraria a todos, sem que houvesse possibilidade de nenhum ficar privado do presente.
Quando se encontrou no meio daquelas nove cabeças, disse:
— Meus filhos... um, dois, três, quatro... vejo que estão todos aqui. Vocês sabem que hoje é véspera de Natal. É uma grande festa, uma festa magnífica! Hoje não vamos trabalhar mais, vamos festejar esta noite.
Os meninos ficaram tão contentes com a proposta, que parecia que a casa vinha a baixo.
— Esperem, fiquem quietos. Vou ensinar a vocês uma linda canção de Natal. Sei uma que é preciosa, e guardei-a para esta noite. É um presente que eu lhes dou.
O grupo de pequenos abraçou as pernas e o pescoço do pai, quase derrubando-o, por causa da canção de Natal.
— Prestem atenção! Todos alinhados! Assim: os maiores atrás e os menores na frente.
Alinharam-se como os tubos de um órgão, e os dois menores se sentaram, um no joelho e o outro no braço do pai.
— Agora, silêncio. Primeiro eu vou cantar sozinho, e depois vocês todos cantam comigo.
Com ar grave e recolhido, depois de tirar seu gorro verde, João se pôs a cantar a belíssima canção que começa assim:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Os meninos e meninas maiores aprenderam logo a melodia, mas os menores estropiavam a letra e o ritmo. Por fim todos acabaram aprendendo. E foi uma grande alegria quando os nove começaram a cantar, com suas frescas vozes, essa bela canção que um dia os próprios anjos cantaram, e que talvez cantem ainda hoje, depois que as vozes alegres e harmoniosas de nove almas inocentes pediu um eco celestial.
É certo que nas alturas houve regozijo com o canto dos meninos. Mas é certo também que no andar de cima o regozijo não era tão grande. Morava ali, sozinho em nove cômodos, um velho solteirão, que comia no primeiro, sentava-se no segundo, fumava no terceiro e dormia no quarto. Só Deus sabe o que poderia fazer nos demais cômodos o ricaço, sem mulher e sem filhos.
Naquela noite esse homem estava sentado no seu oitavo cômodo, e se perguntava por que sua comida não era saborosa, por que os dias e as noites não tinham nada interessante, por que aqueles amplos cômodos não eram suficientemente ventilados, por que não podia conciliar o sono no seu leito macio. Começou então a ouvir as vozes de João e seus filhos, cantando a canção que convidava todos a alegrar-se. A princípio não quis prestar atenção, pensando que acabariam logo. Mas quando começaram a cantá-la pela décima vez, perdeu a paciência. Jogou de lado o cigarro apagado e desceu à casa do sapateiro.
— O senhor é o sapateiro João?
— Às suas ordens, senhor. Está interessado em um par de botas, ou algum outro tipo de calçado?
— Não o procurei por este motivo. Pelo que vejo, não lhe faltam filhos.
— Grandes e pequenos, senhor. E são numerosos quando tenho de lhes dar alimentos.
— E mais numerosos ainda me parecem quando se põem a cantar. Olhe, Sr. João, quero que seja um homem feliz. Dê-me um dos seus filhos. Eu o adotarei, e será como meu filho. Darei a ele uma boa educação, e o levarei para viajar comigo por outros países. Será um homem rico e poderá ajudar os demais.
João arregalou os olhos ao ouvir as palavras do ricaço. Tratava-se de dar uma resposta importante. Que pai não se comove, ante a perspectiva de tornar rico um dos seus filhos?
— Então, Sr. João, concorda? É claro que concorda, pois é uma felicidade para o menino. Escolha-o depressa, que preciso voltar para casa.
João começou a escolher:
— Este aqui é o Alexandre. Não o dou, porque é bom estudante, e com o tempo vai ser um grande sábio. Esta é menina, e certamente o Sr. não quer uma menina. Este aqui já me ajuda no trabalho, e não posso prescindir dele. Zequinha é a cara da mãe, e tem de ficar comigo. Paulo? Não, pois era o preferido da mãe, e ela não descansaria tranqüila se o desse a um estranho. Estes dois são ainda menores, e o Sr. não teria o que fazer com eles.
Ao terminar a conta, ainda não se havia decidido. Voltou a começar pelos menores, e o resultado foi idêntico. Impossível escolher, impossível dar um deles, pois gostava muito de todos.
— Vamos, meninos, vocês mesmos têm que escolher. Quem quer sair desta casa para tornar-se pessoa importante? Quem quer ir-se agora?
Enquanto assim falava, o pobre sapateiro estava a ponto de desfazer-se em lágrimas. Mas os meninos, enquanto ele os incentivava, foram todos esconder-se atrás do pai. Um se agarrava na mão, outro nos joelhos, outro no avental de couro, para que o ricaço não os visse.
Por fim João não conseguiu dominar-se mais, inclinou-se para eles e os abraçou, chorando, e os meninos não demoraram a imitar o exemplo do pai.
— Impossível, senhor! Não posso. Sinto, mas não posso dar os meus filhos a ninguém, já que Deus os deu a mim.
O homem rico respondeu que não tinha intenção de impor sua vontade, e pediu a João que lhe fizesse ao menos um serviço insignificante: que não continuasse cantando com seus filhos, e em troca disso lhe deu uma nota de cem libras. João, que nunca tivera em mãos uma nota desse valor, estava maravilhado.
O vizinho voltou para sua casa, enquanto João, depois de muito admirar a nota, guardou-a timidamente na gaveta e se calou. A meninada se calou também, pois estava proibido cantar. Os maiores se sentaram nas cadeiras e tratavam, embora sem convicção, de tranqüilizar os menores: não se pode cantar, porque o homem rico do andar de cima nos ouviria.
O próprio sapateiro, silencioso, batia com o pé no chão. Acabou afastando bruscamente o mais novo, o preferido da sua mulher, que insistia em aprender a bela canção de Natal:
— Está proibido cantar.
Depois sentou-se no seu banco de trabalho e se pôs a cortar e recortar com tanta atenção, que de repente se deu conta de que estava cantando involuntariamente.
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Bateu com a mão na boca, e seu rosto ficou vermelho de cólera. Deu um murro na mesa, abriu a gaveta e retirou a nota. Em seguida correu à casa do vizinho do segundo andar.
— Senhor, que Deus o abençoe! Guarde este dinheiro, se quiser, pois eu não o quero. Prefiro cantar quando tiver vontade. Isso vale para mim muito mais do que cem libras.
Deixou a nota sobre a mesa e voltou correndo para junto dos filhos. Beijou-os um por um, recolocou-os na formação dos tubos de órgão, sentou-se no seu banco de sapateiro, e todos começaram a cantar:
Cantemos no nascimento
Do dulcíssimo Jesus...
Estavam todos contentes, tão contentes que se poderia dizer que a casa era deles.
(Maurício Jokai, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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POR UMA DÚZIA DE OVOS COZIDOS - Ernesto Montenegro
Era uma vez um homem, pobre a mais não poder, que resolveu ir às minas tentar a sorte, deixando o quase-nada que lhe restava em casa para o sustento da mulher e dos filhinhos. Andou, andou, e lá um belo dia chegou a um povoado, onde teve de fazer das tripas coração para não pedir alguma coisa com que não o deixassem cair de fome; mas, finalmente, bateu à última porta, onde estava uma mulher sozinha ao pé do braseiro, com o seu gato e as suas galinhas.
— A necessidade, patroazinha, me obriga a lhe pedir que me arranje pelo menos alguns ovinhos, que quando eu voltar das minas lhe pagarei bem pagos.
Naquele tempo os ovos eram tão baratos, que muitas vezes nem valia a pena ir buscá-los nos chocos; e como a dona da casa tinha o tacho fervendo para tomar o seu mate, tirou um punhado na canastra e os pôs a cozinhar, enquanto rezava três credos.
Foi-se o mineiro, muito agradecido com a sua dúzia de ovos, e graças a eles conseguiu chegar até à Descobridora, onde diziam que se estava juntando dinheiro que não era brinquedo.
Decorridos uns dez anos, o mineiro viu que já estava rico, e era tempo de voltar para a sua terra e socorrer a família. Porém não se esqueceu de passar no povoado, para cumprir a promessa feita à mulher das galinhas. Em frente à casa, parou a tropinha de burros que vinha tocando.
— Não me conhece mais, avozinha? Não se recorda do que lhe prometeu aquele pobre que passou por aqui nas casas, e a quem você deu uma dúzia de ovos? Pois bem: uma destas cargas de prata é para você; escolha a que mais lhe agradar.
E despejou umas tantas pratas no chão.
A velha já estava com a vista fraca, e muito dura de ouvido. Mas, como sucede a tantos outros, com a idade tinha ficado avarenta:
— Como é, moço? Tudo que esses burros levam é prata? E você foi ganhar toda essa prata depois que me pediu fiado os ovos? Hum...
A velha não se podia conformar que lhe dessem uma carga, somente uma, quando os burros eram tantos! Não tivesse ela bom coração, e boa minazinha ele teria encontrado!
— Quanto tempo faz que lhe vendi esses ovos?
— Dez anos, pelo menos. Foi antes do Grande Tremor de Terra.
Com uma cara muito azeda, ela voltou-se para o homem:
— Então, caro senhor, toda essa prata é minha! Homessa! Já se viu maior desfaçatez: querer contentar-me com uma carguinha... Se em vez de lhe dar ovos eu os tivesse posto a chocar, quantos milhares de dúzias de ovos e de pintos imagina que eu teria agora? Não, senhor, não me venha com espertezas. Então, porque vê a gente vestida de lã, pensa que está tratando com ovelha? Ajude-me a botar esses burros no curral, vamos!
E empurrão pra cá, bordoada pra lá, fez entrar os burros e trancou a porta.
O mineiro, que era uma pobre alma, não sabia que fazer com o diabo daquela velha. Deitar-lhe abaixo a porta, quando nem ao menos os cães o conheciam, talvez fosse pior — refletiu.
Voltando para o centro do povoado, a passos lentos e de cabeça baixa, ouviu alguém lhe perguntar:
— Então, amigo, que foi que perdeu?
Era um homenzinho de fraque cor de chumbo e nariz muito vermelho, que andava com o chapéu sobre os olhos e meio como se estivesse tocado.
Num instante o mineiro lhe contou o que se passava.
— Não se aborreça, amigo velho. Olhe, eu sou advogado diplomado, e lhe prometo que amanhã ganhamos a questão. Providencie para que mandem à velha uma citação, lá para as duas da tarde, e me espere no tribunal.
E tirou-lhe o último peso que lhe restava, “para completar o pileque”.
No outro dia, já a velha estava em presença do juiz, e do rábula nem sinal.
— Que faz o seu advogado que não vem? — disse, de muito má cara, o juiz ao pobre mineiro. — Fique sabendo que, se ele não chegar a tempo, eu o condeno, inclusive nas custas.
Estão batendo as duas horas, quando entra o rábula, muito vermelho, com o nariz que nem um pimentão.
— V. Sa. me perdoe o atraso — disse ele ao juiz —, mas com a pressa que tinha em cozinhar uma cevada para semeá-la...
— Vá contar essa história 1a sua avó! — gritou-lhe o juiz, dando na mesa uma pancada, que por pouco não a partiu. — Além de se fazer esperar, o cavalheirinho, ainda por cima, vem rir nas bochechas da gente! Onde já se viu alguém pôr a cozer a semente antes de semeá-la?
— Estranho que V. Sa. se aborreça comigo porque lhe digo que estava cozinhando uma cevada para semeá-la, e deixe que esta mulher venha contar-lhe que podia ter tirado milhares de ovos e pintos de uma dúzia de ovos cozidos que deu, há dez anos, a este bom homem.
— Como? Estavam cozidos os ovos, senhora? jure dizer a verdade! — gritou-lhe o juiz.
— Tal como diz Vossemecê. Melhor ainda: cozidinhos.
— Então, moço, pague seu real e meio a esta velha desavergonhada, e leve a sua prata, que muito lhe custou a ganhar — disse o juiz ao mineiro.
O mineiro deu uma carga de prata ao rábula, por lhe haver defendido tão bem a questão, e foi com os seus burrinhos para casa, muito contente da vida.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 8, p. 318)
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— A necessidade, patroazinha, me obriga a lhe pedir que me arranje pelo menos alguns ovinhos, que quando eu voltar das minas lhe pagarei bem pagos.
Naquele tempo os ovos eram tão baratos, que muitas vezes nem valia a pena ir buscá-los nos chocos; e como a dona da casa tinha o tacho fervendo para tomar o seu mate, tirou um punhado na canastra e os pôs a cozinhar, enquanto rezava três credos.
Foi-se o mineiro, muito agradecido com a sua dúzia de ovos, e graças a eles conseguiu chegar até à Descobridora, onde diziam que se estava juntando dinheiro que não era brinquedo.
Decorridos uns dez anos, o mineiro viu que já estava rico, e era tempo de voltar para a sua terra e socorrer a família. Porém não se esqueceu de passar no povoado, para cumprir a promessa feita à mulher das galinhas. Em frente à casa, parou a tropinha de burros que vinha tocando.
— Não me conhece mais, avozinha? Não se recorda do que lhe prometeu aquele pobre que passou por aqui nas casas, e a quem você deu uma dúzia de ovos? Pois bem: uma destas cargas de prata é para você; escolha a que mais lhe agradar.
E despejou umas tantas pratas no chão.
A velha já estava com a vista fraca, e muito dura de ouvido. Mas, como sucede a tantos outros, com a idade tinha ficado avarenta:
— Como é, moço? Tudo que esses burros levam é prata? E você foi ganhar toda essa prata depois que me pediu fiado os ovos? Hum...
A velha não se podia conformar que lhe dessem uma carga, somente uma, quando os burros eram tantos! Não tivesse ela bom coração, e boa minazinha ele teria encontrado!
— Quanto tempo faz que lhe vendi esses ovos?
— Dez anos, pelo menos. Foi antes do Grande Tremor de Terra.
Com uma cara muito azeda, ela voltou-se para o homem:
— Então, caro senhor, toda essa prata é minha! Homessa! Já se viu maior desfaçatez: querer contentar-me com uma carguinha... Se em vez de lhe dar ovos eu os tivesse posto a chocar, quantos milhares de dúzias de ovos e de pintos imagina que eu teria agora? Não, senhor, não me venha com espertezas. Então, porque vê a gente vestida de lã, pensa que está tratando com ovelha? Ajude-me a botar esses burros no curral, vamos!
E empurrão pra cá, bordoada pra lá, fez entrar os burros e trancou a porta.
O mineiro, que era uma pobre alma, não sabia que fazer com o diabo daquela velha. Deitar-lhe abaixo a porta, quando nem ao menos os cães o conheciam, talvez fosse pior — refletiu.
Voltando para o centro do povoado, a passos lentos e de cabeça baixa, ouviu alguém lhe perguntar:
— Então, amigo, que foi que perdeu?
Era um homenzinho de fraque cor de chumbo e nariz muito vermelho, que andava com o chapéu sobre os olhos e meio como se estivesse tocado.
Num instante o mineiro lhe contou o que se passava.
— Não se aborreça, amigo velho. Olhe, eu sou advogado diplomado, e lhe prometo que amanhã ganhamos a questão. Providencie para que mandem à velha uma citação, lá para as duas da tarde, e me espere no tribunal.
E tirou-lhe o último peso que lhe restava, “para completar o pileque”.
No outro dia, já a velha estava em presença do juiz, e do rábula nem sinal.
— Que faz o seu advogado que não vem? — disse, de muito má cara, o juiz ao pobre mineiro. — Fique sabendo que, se ele não chegar a tempo, eu o condeno, inclusive nas custas.
Estão batendo as duas horas, quando entra o rábula, muito vermelho, com o nariz que nem um pimentão.
— V. Sa. me perdoe o atraso — disse ele ao juiz —, mas com a pressa que tinha em cozinhar uma cevada para semeá-la...
— Vá contar essa história 1a sua avó! — gritou-lhe o juiz, dando na mesa uma pancada, que por pouco não a partiu. — Além de se fazer esperar, o cavalheirinho, ainda por cima, vem rir nas bochechas da gente! Onde já se viu alguém pôr a cozer a semente antes de semeá-la?
— Estranho que V. Sa. se aborreça comigo porque lhe digo que estava cozinhando uma cevada para semeá-la, e deixe que esta mulher venha contar-lhe que podia ter tirado milhares de ovos e pintos de uma dúzia de ovos cozidos que deu, há dez anos, a este bom homem.
— Como? Estavam cozidos os ovos, senhora? jure dizer a verdade! — gritou-lhe o juiz.
— Tal como diz Vossemecê. Melhor ainda: cozidinhos.
— Então, moço, pague seu real e meio a esta velha desavergonhada, e leve a sua prata, que muito lhe custou a ganhar — disse o juiz ao mineiro.
O mineiro deu uma carga de prata ao rábula, por lhe haver defendido tão bem a questão, e foi com os seus burrinhos para casa, muito contente da vida.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 8, p. 318)
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terça-feira
PLEBISCITO - Artur Azevedo
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O Senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho”.
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua, num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 6, p. 204)
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A família está toda reunida na sala de jantar.
O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário-belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente, para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O Senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário, acudiu o Senhor Rodrigues, é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: “Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho”.
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado do papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa Dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio; — é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua, num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados, a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 6, p. 204)
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OS TRINTA E CINCO CAMELOS - Malba Tahan
Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.
Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:
— Não pode ser!
— Isto é um roubo!
— Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
— Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
— É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na questão:
— Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?
— Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
— Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
— Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
— E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
— E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
— Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
— Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.
E continuamos a nossa jornada para Bagdá.
(Malba Tahan, Seleções - Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963)
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Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:
— Não pode ser!
— Isto é um roubo!
— Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
— Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
— É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na questão:
— Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?
— Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
— Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
— Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
— E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
— E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
— Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
— Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e eqüidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
— Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.
E continuamos a nossa jornada para Bagdá.
(Malba Tahan, Seleções - Os melhores contos – Conquista, Rio, 1963)
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O XEQUE BOU-AKAS - Alexandre Dumas
No Ferdj-Ouah existe um xeque chamado Bou-Akas-Ben-Acour. Trata-se de um dos nomes mais antigos do país, que aparece na história das dinastias bérberes e árabes de Ibn Khaldoun.
Bou-Akas (o homem de maça), também conhecido como Bou-d’Jenoui (o homem do punhal), é um tipo admirável de beduíno do Leste. Seus ancestrais conquistaram Ferdj-Ouah, e Bou-Akas, após ter consolidado a conquista, reina agora sobre o “belo país”.
O xeque El-Islam-Mohamed-Ben-Fagoune, que fora guindado ao poder pelo marechal Valée, convenceu Bou-Akas a reconhecer o poderio francês. Em sinal de vassalagem, enviou este um cavalo de Gada ao governador, mas recusou-se a ir pessoalmente. Temia ser feito prisioneiro dos franceses.
O xeque tem quarenta e nove anos de idade e veste-se à maneira cabila: um manto de lã com cinturão de couro e um capuz debruado de corda fina. Traz à bandoleira um par de pistolas e um “flissa” cabila ao lado esquerdo; do pescoço pende-lhe um pequeno punhal negro. À sua frente caminha um negro, levando-lhe o fuzil, e ao seu lado cabriola um grande galgo.
Quando alguma tribo vizinha às doze tribos por ele comandadas lhe causa qualquer dano, Bou-Akas desdenha de marchar contra os ofensores e contenta-se com enviar seu negro à vila. Este exibe ali o fuzil do xeque, e o dano fica reparado.
Bou-Akas tem a seu serviço duzentos ou trezentos Tolbas, que lêem o Corão ao povo. Todo peregrino que, em viagem a Meca, atravesse o país, recebe subsídios de três francos e permissão para demorar-se no Ferdj-Ouah, como hóspede do xeque, pelo tempo que deseje. Todavia, quando chega ao conhecimento de Bou-Akas qualquer denúncia de ser o peregrino algum impostor, ele envia seus guardas à procura do culpado. Uma vez localizado este, os guardas o deitam de bruços e aplicam-lhe cinqüenta bastonadas à planta dos pés.
Há ocasiões em que o xeque tem trezentos convidados ao jantar. Ao invés de compartilhar das iguarias, fica a caminhar em meio aos convidados, apoiado a um bordão, supervisando o serviço dos criados. Mais tarde, caso tenha sobrado alguma coisa, come também, mas sempre por último.
Seu domínio se estende de Mali a Raboue, da ponta sul da Babour até duas milhas aquém de Gigelli. Quando o governador de Constantinopla — o único homem de quem reconhece o poder — encaminha-lhe algum viajante, sendo este pessoa de prol ou portador de boas recomendações, Bou-Akas entrega-lhe seu fuzil, seu cão ou seu punhal. Se recebe o fuzil, o viajante o pendura a tiracolo; se recebe o cão, prende-o por uma correia; se recebe o punhal, ata-o ao pescoço. De posse de qualquer desses talismãs, todos investidos de determinado grau de honra, pode atravessar incólume as doze tribos. Onde quer que se encontre, recebe hospedagem, já que é um protegido de Bou-Akas.
Ao deixar o Ferdj-Ouah, pode o viajante entregar o punhal, o fuzil ou o cão a qualquer árabe que encontre. Este, se estiver caçando, abandonará a caça; se estiver lavrando, largará a charrua; se estiver entre seus familiares, deixá-los-á, para ir entregar ao xeque seus pertences.
O pequeno punhal de cabo negro é tão conhecido, que emprestou seu nome a Bou-Akas, também conhecido por Bou-d’Jenoui, o homem do punhal. Com ele Bou-Akas apressa o curso da justiça, quando degola algum culpado.
Ao assumir o governo, Bou-Akas encontrou o país infestado de ladrões, mas logo descobriu um meio de liquidá-los. Vestiu-se de mercador e deixou cair uma moeda de ouro na rua, tendo o cuidado de não perdê-la de vista. Uma moeda de ouro não permanece muito tempo assim abandonada. Quando alguém a apanhava e a colocava no bolso, Bou-Akas fazia um sinal ao seu “chaousse”, também disfarçado de mercador, e este, sabedor das intenções do amo, encarregava-se de agarrar o culpado e de decapitá-lo na mesma hora.
Hoje os beduínos costumam dizer que uma criança de doze anos pode atravessar o Ferdj-Ouah com uma coroa de ouro à cabeça, sem que ninguém estenda a mão para roubá-la.
O pequeno punhal do xeque goza de muita reputação entre os pastores das montanhas cabilas. Estes, ao se queixarem de alguma cabra muito vadia, costumam gritar-lhe:
— La guela ou Djinoni Bou-Akasli oulli fi gabta — que quer dizer: Que a morte te leve, e que seja a navalha de Bou-Akas aquela a ser embainhada.
Bou-Akas tem grande respeito pelas mulheres. Assim, estabeleceu no Ferdj-Ouah um costume: quando as mulheres estão enchendo na fonte os seus cantis de pele de bode, os homens devem desviar-se, para não encontrá-las.
Certo dia Bou-Akas — que depois do que relatamos poderia bem ser chamado “o pai da justiça” — ouviu falar de um cádi de uma de suas doze tribos que pronunciava sentenças dignas do rei Salomão. Como um novo Harum-al-Raschid, quis ajuizar pessoalmente da verdade do que lhe contavam. Trajou-se, pois, como simples cavaleiro, sem levar nenhum dos atributos ou armas que o distinguiam, e sem qualquer comitiva pôs-se a caminho, montando um cavalo de raça que, não obstante, nada trazia que pudesse denunciá-lo como o de tão grande chefe.
Aconteceu que no dia em que chegou à povoação onde o cádi fazia justiça era dia de feira, e em conseqüência dia de julgamento. Aconteceu ainda (em tudo protege Maomé seu servo!) que, à entrada da cidade, encontrou Bou-Akas um aleijado, e este, agarrando-se ao seu albornoz como o pedinte ao manto de São Martinho, rogou-lhe uma esmola.
Bom muçulmano que era, Bou-Akas deu-lha, mas o aleijado continuou agarrado ao seu manto.
— Que queres mais? — perguntou o xeque. — Já te dei a esmola que pediste.
— Sim — retrucou o aleijado — mas a lei não diz apenas “darás esmola a teu irmão”. Diz também: “Farás por ele tudo quanto lhe pedir”.
— Pois bem. Que mais posso fazer por ti?
— Poderás evitar que eu, pobre réptil, seja pisoteado pelos homens e pelos animais, coisa que não deixará de acontecer se eu for rastejando até a vila.
— E como poderei impedir isso?
— Levando-me à garupa de teu cavalo até a praça do mercado, onde tenho meu ponto.
— Pois seja — concordou Bou-Akas. E erguendo o aleijado, ajudou-o a montar.
Apesar de algumas dificuldades, a operação foi coroada de êxito. Os dois cavaleiros atravessaram a povoação, não sem excitar a curiosidade geral, e chegaram finalmente à praça.
— É aqui que querias vir? — perguntou Bou-Akas ao mendigo.
— Sim.
— Então desce.
— Desce tu.
— Se é para te ajudar a desmontar, descerei.
— Não, é para deixar-me o cavalo.
— Como, deixar-te meu cavalo?
— Porque o cavalo me pertence.
— Pois sim! É o que veremos.
— Escuta e reflete — disse o aleijado.
— Escutarei e refletirei depois.
— Estamos na povoação do cádi justiceiro.
— Eu sei.
— Vais apresentar queixa contra mim ao cádi?
— É possível que o faça.
— Acreditas então que ele, ao ver-nos — tu com as pernas sãs que Deus te deu, eu com estas pobres pernas aleijadas — não decidirá que o cavalo pertence àquele que mais necessita dele?
— Se proferir tal sentença, não poderá ser chamado de justiceiro, pois ter-se-á enganado no seu julgamento.
— Chamam-no de cádi justiceiro, mas não o chamam de cádi infalível.
— Por minha fé — disse o xeque consigo mesmo. — Eis uma excelente oportunidade de pôr o juiz à prova. Vamos à presença do cádi.
E Bou-Akas, levando o cavalo pela brida, a cuja garupa estava agarrado o mendigo como um macaco, abriu caminho por entre a turba até onde o cádi, à moda do Oriente, fazia justiça publicamente.
Duas causas estavam em litígio, e iriam ser julgadas antes. Bou-Akas tomou lugar entre a assistência. A primeira das causas era entre um “taleb” e um camponês — entre um sábio e um trabalhador. Tratava-se da mulher do sábio, que o camponês roubara e jurava ser sua. A mulher, por sua vez, não reconhecia nem a um nem a outro como seu marido, ou melhor, reconhecia ambos, o que tornava a situação extremamente embaraçosa.
O juiz ouviu as duas partes, refletiu por um instante e disse:
— Deixai-me a mulher e voltai amanhã.
Após saudarem o juiz, ambos os litigantes se retiraram.
Chegou a vez da segunda causa. Esta envolvia um açougueiro e um vendedor de azeite. O primeiro tinha as vestes todas manchadas de sangue, e o segundo tinha-as enodoadas de óleo. Declarou o açougueiro:
— Fui comprar uma jarra de azeite a este homem. Para pagá-lo, tirei da bolsa um punhado de moedas. As moedas o tentaram, e ele agarrou-me o pulso. Chamei-o de ladrão, mas ele não quis soltar-me. Viemos juntos ao tribunal, eu com as moedas fechadas na mão, ele agarrado ao meu pulso. Juro por Maomé que este homem mente quando diz que o dinheiro lhe pertence: estas moedas são minhas, muito minhas.
Disse o mercador de azeite:
— Este homem veio comprar azeite na minha loja. Depois de encher a jarra, perguntou-me: “Tens troco para uma peça de ouro”? Enfiei a mão no bolso e tirei-a cheia de moedas, que coloquei sobre a soleira da porta. Ele então se apoderou do dinheiro e já ia fugir, quando comecei a gritar “pega ladrão!” e agarrei-o pelo pulso. Apesar dos meus gritos, não quis devolver-me o dinheiro. Por isso trouxe-o até aqui, para que o julgues. Juro por Maomé que este homem mente quando me acusa de roubo: estas moedas são minhas, muito minhas.
O juiz meditou por uns instantes.
— Deixai o dinheiro — disse o juiz — e voltai amanhã.
O açougueiro depositou as moedas numa dobra do manto do cádi. Feito isto, ambos os queixosos, depois de terem saudado o juiz, se retiraram.
Chegou a vez de Bou-Akas e o aleijado.
— Senhor cádi — declarou o xeque — vim de uma vila distante, com o propósito de comprar mercadorias neste mercado. À porta da povoação, encontrei este aleijado que me pediu esmola e rogou-me em seguida que o levasse à garupa do meu cavalo até o mercado. Alegou que, se se arriscasse às ruas, pobre réptil que é, corria o risco de ser pisoteado por passantes ou animais. Dei-lhe a esmola que pedira e ajudei-o a montar. Quando chegamos à praça, recusou-se a descer, mentindo que o cavalo lhe pertencia. Ameacei-o com a justiça, mas ele respondeu-me: “Bah! O cádi é homem sensato demais para não compreender que o cavalo pertence àquele que não pode andar a pé”. Eis o caso em toda a sua verdade, senhor juiz. Juro por Maomé!
Depois disso, o mendigo declarou:
— Senhor cádi, eu vinha ao mercado desta cidade para tratar de negócios, montado em meu cavalo, quando vi este homem sentado à beira da estrada. Parecia semi-agonizante. Aproximei-me dele e perguntei-lhe se lhe ocorrera algum acidente. “Nada me aconteceu — respondeu. — Estou apenas exausto, e se o senhor é caritativo, poderia bem levar-me até a vila, onde tenho negócios a tratar. Quando chegarmos à praça do mercado, desmontarei e rogarei a Maomé que dê, a quem me prestou socorro, tudo quanto possa desejar”. Assenti ao seu pedido, e grande foi o meu espanto quando, chegados à praça, ele ordenou-me que desmontasse, dizendo que o cavalo lhe pertencia. Diante disso, resolvi trazê-lo ao tribunal, para que julgues o caso. Eis toda a verdade. Juro por Maomé!
O cádi fez ambos repetirem seus depoimentos. Depois de refletir por alguns instantes, ordenou:
— Deixem-me o cavalo e voltem amanhã.
O cavalo foi entregue ao cádi, e ambos os litigantes, após terem reverenciado o juiz, se retiraram.
Na manhã seguinte, não apenas os interessados, como grande número de curiosos, compareceram ao tribunal. A importância e a dificuldade das causas em litígio explicam tamanha afluência de espectadores. O cádi, seguindo a mesma ordem da véspera, chamou em primeiro lugar o “taleb” e o camponês, e disse ao “taleb”:
— Eis tua mulher. Podes levá-la, ela te pertence.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Aplicai cinqüenta bastonadas à planta dos pés desse homem — acrescentou, indicando o camponês.
O “taleb” levou consigo a mulher, enquanto os guardas cumpriam as ordens do cádi.
Logo em seguida foi julgada a segunda causa. O mercador do azeite e o açougueiro aproximaram-se, e o cádi disse ao açougueiro:
— Eis teu dinheiro. Tu o tiraste realmente da tua bolsa; jamais pertenceu a esse homem — finalizou, apontando para o mercador de azeite.
O açougueiro levou suas moedas, e os guardas aplicaram cinqüenta bastonadas à planta dos pés do mercador.
Foi convocada a terceira causa. Bou-Akas e o aleijado se aproximaram.
— Ah! sois vós — disse o cádi.
— Sim, senhor juiz — responderam ambos, a uma só voz.
— Reconhecerias teu cavalo em meio a vinte outros? — perguntou o cádi a Bou-Akas.
— Certamente — respondeu este.
— E tu?
— Sem dúvida alguma — retorquiu o aleijado.
— Vem então comigo — ordenou o cádi, dirigindo-se ao xeque.
Saíram juntos em direção à cavalariça. Bou-Akas reconheceu seu cavalo entre vinte outros.
— Muito bem — disse o cádi. — Vai esperar-me no tribunal e manda-me teu adversário.
Bou-Akas voltou ao tribunal, e tendo cumprido o mandado do juiz, sentou-se à espera.
O mendigo chegou à cavalariça tão depressa quanto lhe permitiam as pernas aleijadas. Mas seus olhos eram sãos, e ele apontou sem hesitação para o cavalo certo.
— Muito bem — disse o cádi, mais uma vez. — Vem encontrar-me no tribunal.
O cádi tomou lugar à esteira, e todos, impacientes, ficaram à espera do aleijado. Este chegou, ofegante, ao cabo de cinco minutos.
— O cavalo é teu — disse o juiz, dirigindo-se a Bou-Akas. — Podes ir buscá-lo na cavalariça.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Apliquem cinqüenta bastonadas no traseiro desse homem — ordenou, indicando o aleijado.
Homem justo que era, levara em consideração as condições físicas do réu e mudara o local de aplicação do castigo.
Bou-Akas foi buscar seu cavalo, enquanto os guardas aplicavam as cinqüenta bastonadas no aleijado. Depois voltou à presença do cádi.
— Não estás satisfeito? — perguntou-lhe este.
— Pelo contrário — replicou o xeque. — Mas queria ver-te para saber por que inspiração divina praticas justiça. Pois não duvido que os dois outros julgamentos tenham sido tão justos quanto o meu. Não sou nenhum mercador, sou Bou-Akas, xeque do Ferdj-Ouah. Ouvi falar de ti e quis conhecer-te pessoalmente.
O cádi inclinou-se para beijar a mão de Bou-Akas, mas este o deteve.
— Vamos, estou impaciente por saber como descobriste que a mulher era do sábio, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.
— Foi muito simples, senhor — replicou o cádi. — Viste que retive comigo, durante uma noite, a mulher, o dinheiro e o cavalo. À meia-noite, ordenei que a mulher fosse despertada e trazida à minha presença. Mandei-a então limpar o meu tinteiro. Dando provas de que estava habituada a fazer tal serviço, ela o apanhou, tirou-lhe o algodão, lavou-o corretamente, colocou-o de novo no estojo e encheu-o de tinta. Disse comigo mesmo: “Se fosse mulher de camponês, não saberia como limpar um tinteiro”.
— Seja — admitiu Bou-Akas. — Isso quanto à mulher. E quanto ao dinheiro?
— Com o dinheiro foi diferente. Notaste como o mercador estava sujo de óleo, e sobretudo como tinha as mãos engorduradas?
— Sim, notei.
— Pois bem. Coloquei o dinheiro numa jarra cheia d’água, e hoje de manhã examinei-a. Nenhuma gota de óleo subira à superfície da água. Convenci-me, pois, de que as moedas pertenciam ao açougueiro. Se fossem do mercador, estariam engorduradas, e nesse caso haveria gota de óleo à superfície.
— Muito bem! — concordou Bou-Akas, inclinando a cabeça. — Isso quanto ao dinheiro. E quanto ao meu cavalo?
— Ah! Foi mais difícil. Até esta manhã estava ainda embaraçado para decidir.
— Quer dizer que o aleijado não reconheceu a montaria?
— Ele a reconheceu, e de modo tão positivo quanto o senhor.
— E então?
— Quando levei cada um de vós à estrebaria, não pretendia saber se reconheceríeis o cavalo, e sim se o cavalo os reconheceria. Quando te aproximaste do cavalo, ele relinchou. Quando foi a vez do aleijado, o cavalo escoiceou. Refleti então: o cavalo pertence àquele que tem boas pernas, e não ao aleijado.
Bou-Akas meditou por longo tempo. Por fim, disse:
— O Senhor está contigo. Deverias ocupar o meu lugar, e eu o teu. Contudo, embora eu esteja certo de que és digno de ser xeque, não estou muito certo de ser eu capaz de desempenhar satisfatoriamente o cargo de cádi.
(Alexandre Dumas, Histórias fabulosas – Cultrix, SP)
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Bou-Akas (o homem de maça), também conhecido como Bou-d’Jenoui (o homem do punhal), é um tipo admirável de beduíno do Leste. Seus ancestrais conquistaram Ferdj-Ouah, e Bou-Akas, após ter consolidado a conquista, reina agora sobre o “belo país”.
O xeque El-Islam-Mohamed-Ben-Fagoune, que fora guindado ao poder pelo marechal Valée, convenceu Bou-Akas a reconhecer o poderio francês. Em sinal de vassalagem, enviou este um cavalo de Gada ao governador, mas recusou-se a ir pessoalmente. Temia ser feito prisioneiro dos franceses.
O xeque tem quarenta e nove anos de idade e veste-se à maneira cabila: um manto de lã com cinturão de couro e um capuz debruado de corda fina. Traz à bandoleira um par de pistolas e um “flissa” cabila ao lado esquerdo; do pescoço pende-lhe um pequeno punhal negro. À sua frente caminha um negro, levando-lhe o fuzil, e ao seu lado cabriola um grande galgo.
Quando alguma tribo vizinha às doze tribos por ele comandadas lhe causa qualquer dano, Bou-Akas desdenha de marchar contra os ofensores e contenta-se com enviar seu negro à vila. Este exibe ali o fuzil do xeque, e o dano fica reparado.
Bou-Akas tem a seu serviço duzentos ou trezentos Tolbas, que lêem o Corão ao povo. Todo peregrino que, em viagem a Meca, atravesse o país, recebe subsídios de três francos e permissão para demorar-se no Ferdj-Ouah, como hóspede do xeque, pelo tempo que deseje. Todavia, quando chega ao conhecimento de Bou-Akas qualquer denúncia de ser o peregrino algum impostor, ele envia seus guardas à procura do culpado. Uma vez localizado este, os guardas o deitam de bruços e aplicam-lhe cinqüenta bastonadas à planta dos pés.
Há ocasiões em que o xeque tem trezentos convidados ao jantar. Ao invés de compartilhar das iguarias, fica a caminhar em meio aos convidados, apoiado a um bordão, supervisando o serviço dos criados. Mais tarde, caso tenha sobrado alguma coisa, come também, mas sempre por último.
Seu domínio se estende de Mali a Raboue, da ponta sul da Babour até duas milhas aquém de Gigelli. Quando o governador de Constantinopla — o único homem de quem reconhece o poder — encaminha-lhe algum viajante, sendo este pessoa de prol ou portador de boas recomendações, Bou-Akas entrega-lhe seu fuzil, seu cão ou seu punhal. Se recebe o fuzil, o viajante o pendura a tiracolo; se recebe o cão, prende-o por uma correia; se recebe o punhal, ata-o ao pescoço. De posse de qualquer desses talismãs, todos investidos de determinado grau de honra, pode atravessar incólume as doze tribos. Onde quer que se encontre, recebe hospedagem, já que é um protegido de Bou-Akas.
Ao deixar o Ferdj-Ouah, pode o viajante entregar o punhal, o fuzil ou o cão a qualquer árabe que encontre. Este, se estiver caçando, abandonará a caça; se estiver lavrando, largará a charrua; se estiver entre seus familiares, deixá-los-á, para ir entregar ao xeque seus pertences.
O pequeno punhal de cabo negro é tão conhecido, que emprestou seu nome a Bou-Akas, também conhecido por Bou-d’Jenoui, o homem do punhal. Com ele Bou-Akas apressa o curso da justiça, quando degola algum culpado.
Ao assumir o governo, Bou-Akas encontrou o país infestado de ladrões, mas logo descobriu um meio de liquidá-los. Vestiu-se de mercador e deixou cair uma moeda de ouro na rua, tendo o cuidado de não perdê-la de vista. Uma moeda de ouro não permanece muito tempo assim abandonada. Quando alguém a apanhava e a colocava no bolso, Bou-Akas fazia um sinal ao seu “chaousse”, também disfarçado de mercador, e este, sabedor das intenções do amo, encarregava-se de agarrar o culpado e de decapitá-lo na mesma hora.
Hoje os beduínos costumam dizer que uma criança de doze anos pode atravessar o Ferdj-Ouah com uma coroa de ouro à cabeça, sem que ninguém estenda a mão para roubá-la.
O pequeno punhal do xeque goza de muita reputação entre os pastores das montanhas cabilas. Estes, ao se queixarem de alguma cabra muito vadia, costumam gritar-lhe:
— La guela ou Djinoni Bou-Akasli oulli fi gabta — que quer dizer: Que a morte te leve, e que seja a navalha de Bou-Akas aquela a ser embainhada.
Bou-Akas tem grande respeito pelas mulheres. Assim, estabeleceu no Ferdj-Ouah um costume: quando as mulheres estão enchendo na fonte os seus cantis de pele de bode, os homens devem desviar-se, para não encontrá-las.
Certo dia Bou-Akas — que depois do que relatamos poderia bem ser chamado “o pai da justiça” — ouviu falar de um cádi de uma de suas doze tribos que pronunciava sentenças dignas do rei Salomão. Como um novo Harum-al-Raschid, quis ajuizar pessoalmente da verdade do que lhe contavam. Trajou-se, pois, como simples cavaleiro, sem levar nenhum dos atributos ou armas que o distinguiam, e sem qualquer comitiva pôs-se a caminho, montando um cavalo de raça que, não obstante, nada trazia que pudesse denunciá-lo como o de tão grande chefe.
Aconteceu que no dia em que chegou à povoação onde o cádi fazia justiça era dia de feira, e em conseqüência dia de julgamento. Aconteceu ainda (em tudo protege Maomé seu servo!) que, à entrada da cidade, encontrou Bou-Akas um aleijado, e este, agarrando-se ao seu albornoz como o pedinte ao manto de São Martinho, rogou-lhe uma esmola.
Bom muçulmano que era, Bou-Akas deu-lha, mas o aleijado continuou agarrado ao seu manto.
— Que queres mais? — perguntou o xeque. — Já te dei a esmola que pediste.
— Sim — retrucou o aleijado — mas a lei não diz apenas “darás esmola a teu irmão”. Diz também: “Farás por ele tudo quanto lhe pedir”.
— Pois bem. Que mais posso fazer por ti?
— Poderás evitar que eu, pobre réptil, seja pisoteado pelos homens e pelos animais, coisa que não deixará de acontecer se eu for rastejando até a vila.
— E como poderei impedir isso?
— Levando-me à garupa de teu cavalo até a praça do mercado, onde tenho meu ponto.
— Pois seja — concordou Bou-Akas. E erguendo o aleijado, ajudou-o a montar.
Apesar de algumas dificuldades, a operação foi coroada de êxito. Os dois cavaleiros atravessaram a povoação, não sem excitar a curiosidade geral, e chegaram finalmente à praça.
— É aqui que querias vir? — perguntou Bou-Akas ao mendigo.
— Sim.
— Então desce.
— Desce tu.
— Se é para te ajudar a desmontar, descerei.
— Não, é para deixar-me o cavalo.
— Como, deixar-te meu cavalo?
— Porque o cavalo me pertence.
— Pois sim! É o que veremos.
— Escuta e reflete — disse o aleijado.
— Escutarei e refletirei depois.
— Estamos na povoação do cádi justiceiro.
— Eu sei.
— Vais apresentar queixa contra mim ao cádi?
— É possível que o faça.
— Acreditas então que ele, ao ver-nos — tu com as pernas sãs que Deus te deu, eu com estas pobres pernas aleijadas — não decidirá que o cavalo pertence àquele que mais necessita dele?
— Se proferir tal sentença, não poderá ser chamado de justiceiro, pois ter-se-á enganado no seu julgamento.
— Chamam-no de cádi justiceiro, mas não o chamam de cádi infalível.
— Por minha fé — disse o xeque consigo mesmo. — Eis uma excelente oportunidade de pôr o juiz à prova. Vamos à presença do cádi.
E Bou-Akas, levando o cavalo pela brida, a cuja garupa estava agarrado o mendigo como um macaco, abriu caminho por entre a turba até onde o cádi, à moda do Oriente, fazia justiça publicamente.
Duas causas estavam em litígio, e iriam ser julgadas antes. Bou-Akas tomou lugar entre a assistência. A primeira das causas era entre um “taleb” e um camponês — entre um sábio e um trabalhador. Tratava-se da mulher do sábio, que o camponês roubara e jurava ser sua. A mulher, por sua vez, não reconhecia nem a um nem a outro como seu marido, ou melhor, reconhecia ambos, o que tornava a situação extremamente embaraçosa.
O juiz ouviu as duas partes, refletiu por um instante e disse:
— Deixai-me a mulher e voltai amanhã.
Após saudarem o juiz, ambos os litigantes se retiraram.
Chegou a vez da segunda causa. Esta envolvia um açougueiro e um vendedor de azeite. O primeiro tinha as vestes todas manchadas de sangue, e o segundo tinha-as enodoadas de óleo. Declarou o açougueiro:
— Fui comprar uma jarra de azeite a este homem. Para pagá-lo, tirei da bolsa um punhado de moedas. As moedas o tentaram, e ele agarrou-me o pulso. Chamei-o de ladrão, mas ele não quis soltar-me. Viemos juntos ao tribunal, eu com as moedas fechadas na mão, ele agarrado ao meu pulso. Juro por Maomé que este homem mente quando diz que o dinheiro lhe pertence: estas moedas são minhas, muito minhas.
Disse o mercador de azeite:
— Este homem veio comprar azeite na minha loja. Depois de encher a jarra, perguntou-me: “Tens troco para uma peça de ouro”? Enfiei a mão no bolso e tirei-a cheia de moedas, que coloquei sobre a soleira da porta. Ele então se apoderou do dinheiro e já ia fugir, quando comecei a gritar “pega ladrão!” e agarrei-o pelo pulso. Apesar dos meus gritos, não quis devolver-me o dinheiro. Por isso trouxe-o até aqui, para que o julgues. Juro por Maomé que este homem mente quando me acusa de roubo: estas moedas são minhas, muito minhas.
O juiz meditou por uns instantes.
— Deixai o dinheiro — disse o juiz — e voltai amanhã.
O açougueiro depositou as moedas numa dobra do manto do cádi. Feito isto, ambos os queixosos, depois de terem saudado o juiz, se retiraram.
Chegou a vez de Bou-Akas e o aleijado.
— Senhor cádi — declarou o xeque — vim de uma vila distante, com o propósito de comprar mercadorias neste mercado. À porta da povoação, encontrei este aleijado que me pediu esmola e rogou-me em seguida que o levasse à garupa do meu cavalo até o mercado. Alegou que, se se arriscasse às ruas, pobre réptil que é, corria o risco de ser pisoteado por passantes ou animais. Dei-lhe a esmola que pedira e ajudei-o a montar. Quando chegamos à praça, recusou-se a descer, mentindo que o cavalo lhe pertencia. Ameacei-o com a justiça, mas ele respondeu-me: “Bah! O cádi é homem sensato demais para não compreender que o cavalo pertence àquele que não pode andar a pé”. Eis o caso em toda a sua verdade, senhor juiz. Juro por Maomé!
Depois disso, o mendigo declarou:
— Senhor cádi, eu vinha ao mercado desta cidade para tratar de negócios, montado em meu cavalo, quando vi este homem sentado à beira da estrada. Parecia semi-agonizante. Aproximei-me dele e perguntei-lhe se lhe ocorrera algum acidente. “Nada me aconteceu — respondeu. — Estou apenas exausto, e se o senhor é caritativo, poderia bem levar-me até a vila, onde tenho negócios a tratar. Quando chegarmos à praça do mercado, desmontarei e rogarei a Maomé que dê, a quem me prestou socorro, tudo quanto possa desejar”. Assenti ao seu pedido, e grande foi o meu espanto quando, chegados à praça, ele ordenou-me que desmontasse, dizendo que o cavalo lhe pertencia. Diante disso, resolvi trazê-lo ao tribunal, para que julgues o caso. Eis toda a verdade. Juro por Maomé!
O cádi fez ambos repetirem seus depoimentos. Depois de refletir por alguns instantes, ordenou:
— Deixem-me o cavalo e voltem amanhã.
O cavalo foi entregue ao cádi, e ambos os litigantes, após terem reverenciado o juiz, se retiraram.
Na manhã seguinte, não apenas os interessados, como grande número de curiosos, compareceram ao tribunal. A importância e a dificuldade das causas em litígio explicam tamanha afluência de espectadores. O cádi, seguindo a mesma ordem da véspera, chamou em primeiro lugar o “taleb” e o camponês, e disse ao “taleb”:
— Eis tua mulher. Podes levá-la, ela te pertence.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Aplicai cinqüenta bastonadas à planta dos pés desse homem — acrescentou, indicando o camponês.
O “taleb” levou consigo a mulher, enquanto os guardas cumpriam as ordens do cádi.
Logo em seguida foi julgada a segunda causa. O mercador do azeite e o açougueiro aproximaram-se, e o cádi disse ao açougueiro:
— Eis teu dinheiro. Tu o tiraste realmente da tua bolsa; jamais pertenceu a esse homem — finalizou, apontando para o mercador de azeite.
O açougueiro levou suas moedas, e os guardas aplicaram cinqüenta bastonadas à planta dos pés do mercador.
Foi convocada a terceira causa. Bou-Akas e o aleijado se aproximaram.
— Ah! sois vós — disse o cádi.
— Sim, senhor juiz — responderam ambos, a uma só voz.
— Reconhecerias teu cavalo em meio a vinte outros? — perguntou o cádi a Bou-Akas.
— Certamente — respondeu este.
— E tu?
— Sem dúvida alguma — retorquiu o aleijado.
— Vem então comigo — ordenou o cádi, dirigindo-se ao xeque.
Saíram juntos em direção à cavalariça. Bou-Akas reconheceu seu cavalo entre vinte outros.
— Muito bem — disse o cádi. — Vai esperar-me no tribunal e manda-me teu adversário.
Bou-Akas voltou ao tribunal, e tendo cumprido o mandado do juiz, sentou-se à espera.
O mendigo chegou à cavalariça tão depressa quanto lhe permitiam as pernas aleijadas. Mas seus olhos eram sãos, e ele apontou sem hesitação para o cavalo certo.
— Muito bem — disse o cádi, mais uma vez. — Vem encontrar-me no tribunal.
O cádi tomou lugar à esteira, e todos, impacientes, ficaram à espera do aleijado. Este chegou, ofegante, ao cabo de cinco minutos.
— O cavalo é teu — disse o juiz, dirigindo-se a Bou-Akas. — Podes ir buscá-lo na cavalariça.
Depois, voltando-se para os guardas:
— Apliquem cinqüenta bastonadas no traseiro desse homem — ordenou, indicando o aleijado.
Homem justo que era, levara em consideração as condições físicas do réu e mudara o local de aplicação do castigo.
Bou-Akas foi buscar seu cavalo, enquanto os guardas aplicavam as cinqüenta bastonadas no aleijado. Depois voltou à presença do cádi.
— Não estás satisfeito? — perguntou-lhe este.
— Pelo contrário — replicou o xeque. — Mas queria ver-te para saber por que inspiração divina praticas justiça. Pois não duvido que os dois outros julgamentos tenham sido tão justos quanto o meu. Não sou nenhum mercador, sou Bou-Akas, xeque do Ferdj-Ouah. Ouvi falar de ti e quis conhecer-te pessoalmente.
O cádi inclinou-se para beijar a mão de Bou-Akas, mas este o deteve.
— Vamos, estou impaciente por saber como descobriste que a mulher era do sábio, o dinheiro do açougueiro e o cavalo meu.
— Foi muito simples, senhor — replicou o cádi. — Viste que retive comigo, durante uma noite, a mulher, o dinheiro e o cavalo. À meia-noite, ordenei que a mulher fosse despertada e trazida à minha presença. Mandei-a então limpar o meu tinteiro. Dando provas de que estava habituada a fazer tal serviço, ela o apanhou, tirou-lhe o algodão, lavou-o corretamente, colocou-o de novo no estojo e encheu-o de tinta. Disse comigo mesmo: “Se fosse mulher de camponês, não saberia como limpar um tinteiro”.
— Seja — admitiu Bou-Akas. — Isso quanto à mulher. E quanto ao dinheiro?
— Com o dinheiro foi diferente. Notaste como o mercador estava sujo de óleo, e sobretudo como tinha as mãos engorduradas?
— Sim, notei.
— Pois bem. Coloquei o dinheiro numa jarra cheia d’água, e hoje de manhã examinei-a. Nenhuma gota de óleo subira à superfície da água. Convenci-me, pois, de que as moedas pertenciam ao açougueiro. Se fossem do mercador, estariam engorduradas, e nesse caso haveria gota de óleo à superfície.
— Muito bem! — concordou Bou-Akas, inclinando a cabeça. — Isso quanto ao dinheiro. E quanto ao meu cavalo?
— Ah! Foi mais difícil. Até esta manhã estava ainda embaraçado para decidir.
— Quer dizer que o aleijado não reconheceu a montaria?
— Ele a reconheceu, e de modo tão positivo quanto o senhor.
— E então?
— Quando levei cada um de vós à estrebaria, não pretendia saber se reconheceríeis o cavalo, e sim se o cavalo os reconheceria. Quando te aproximaste do cavalo, ele relinchou. Quando foi a vez do aleijado, o cavalo escoiceou. Refleti então: o cavalo pertence àquele que tem boas pernas, e não ao aleijado.
Bou-Akas meditou por longo tempo. Por fim, disse:
— O Senhor está contigo. Deverias ocupar o meu lugar, e eu o teu. Contudo, embora eu esteja certo de que és digno de ser xeque, não estou muito certo de ser eu capaz de desempenhar satisfatoriamente o cargo de cádi.
(Alexandre Dumas, Histórias fabulosas – Cultrix, SP)
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O VINHO DERRAMADO - Jakes de Basin
Havia na Normandia um fidalgo bastante pobre, que só podia dispor de umas poucas moedas para comprar diariamente seu alimento. Uma certa manhã, verificou que só tinha em casa um pão, e decidiu comprar um pouco de vinho com algumas moedas de pouco valor. Foi à taberna próxima e pediu vinho. O taberneiro, que era um homem grosseiro e desagradável, serviu-lhe de má vontade um copo de vinho. Colocou-o na mesa tão bruscamente, que derramou quase a metade. Em vez de desculpar-se, disse com insolência:
— O senhor está com sorte. O vinho derramado significa alegria e riquezas.
O fidalgo não quis protestar contra aquele mal educado, pois seria trabalho perdido. Mas achou que de algum modo deveria ajustar essas contas, e pediu que o taberneiro lhe trouxesse um pedaço de queijo. O homem apanhou a moeda bruscamente e foi ao andar de cima buscar o queijo. Enquanto isso o fidalgo levantou-se, abriu a torneira do tonel de vinho e deixou que ele escoasse livremente, formando uma lagoa vermelha no meio da taberna.
Quando o taberneiro voltou e viu o que acontecera, avançou furiosamente sobre o fidalgo. Este se defendeu e conseguiu lançá-lo de encontro ao tonel, que caiu ao chão junto com seu dono, entornando o que restava do vinho. Acudiram vizinhos e soldados, separaram os contendores e os levaram junto ao rei.
O taberneiro falou primeiro e pediu uma indenização. Antes de dar a sentença, o rei quis ouvir também o fidalgo, que narrou o sucedido com toda a veracidade, e acrescentou:
— Senhor, este homem me disse, quando entornou a metade do vinho que me vendera, que isso era sorte minha, pois vinho derramado significa alegria, e que eu me tornaria rico. Pensei então que, se eu me tornaria rico por ter derramado só meio copo de vinho, o bom taberneiro se tornaria muito mais rico e feliz se derramasse meio tonel. Cheio de reconhecimento e gratidão, resolvi então abrir a torneira do tonel, e o resto já conheceis.
O rei e toda a corte se divertiram com a engenhosa justificativa, e o fidalgo foi dispensado sem pagar a pretendida indenização.
(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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— O senhor está com sorte. O vinho derramado significa alegria e riquezas.
O fidalgo não quis protestar contra aquele mal educado, pois seria trabalho perdido. Mas achou que de algum modo deveria ajustar essas contas, e pediu que o taberneiro lhe trouxesse um pedaço de queijo. O homem apanhou a moeda bruscamente e foi ao andar de cima buscar o queijo. Enquanto isso o fidalgo levantou-se, abriu a torneira do tonel de vinho e deixou que ele escoasse livremente, formando uma lagoa vermelha no meio da taberna.
Quando o taberneiro voltou e viu o que acontecera, avançou furiosamente sobre o fidalgo. Este se defendeu e conseguiu lançá-lo de encontro ao tonel, que caiu ao chão junto com seu dono, entornando o que restava do vinho. Acudiram vizinhos e soldados, separaram os contendores e os levaram junto ao rei.
O taberneiro falou primeiro e pediu uma indenização. Antes de dar a sentença, o rei quis ouvir também o fidalgo, que narrou o sucedido com toda a veracidade, e acrescentou:
— Senhor, este homem me disse, quando entornou a metade do vinho que me vendera, que isso era sorte minha, pois vinho derramado significa alegria, e que eu me tornaria rico. Pensei então que, se eu me tornaria rico por ter derramado só meio copo de vinho, o bom taberneiro se tornaria muito mais rico e feliz se derramasse meio tonel. Cheio de reconhecimento e gratidão, resolvi então abrir a torneira do tonel, e o resto já conheceis.
O rei e toda a corte se divertiram com a engenhosa justificativa, e o fidalgo foi dispensado sem pagar a pretendida indenização.
(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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O VILÃO QUE CONQUISTOU O PARAÍSO - Jakes de Basin
Um vilão morreu, e com ele aconteceu o que nunca havia acontecido antes e seguramente jamais voltará a acontecer: ninguém ficou sabendo da sua morte, nem no Céu nem no inferno. Como pôde acontecer isso, não sei. O que sei com segurança é que, no momento em que a alma dele se separou do corpo, não havia por ali nem anjos nem diabos para recolhê-la, e com isso o pobre homem ficou sem guia. E também não havia ninguém com atenção posta nele, para proibi-lo de fazer o que bem entendesse com a sua alma, de modo que resolveu por sua própria conta e risco tomar o caminho do paraíso. Não conhecia o caminho, mas viu de longe o arcanjo São Miguel conduzindo uma alma, e o seguiu despistadamente, como quem não quer nada.
Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado. Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:
— Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilães. Portanto, suma-se!
— Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar? Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!
São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder. Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.
— Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.
Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:
— Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?
— Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro? Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito. E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?
São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou. Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:
— É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.
Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões. O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:
— Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania. Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro. Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.
Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros. Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus. Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça. Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.
— Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.
Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:
— Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.
— Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso. Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida. Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer. Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles. Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu. Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.
— Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter freqüentado boa escola.
(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado. Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:
— Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilães. Portanto, suma-se!
— Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar? Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!
São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder. Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.
— Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.
Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:
— Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?
— Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro? Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito. E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?
São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou. Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:
— É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.
Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões. O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:
— Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania. Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro. Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.
Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros. Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus. Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça. Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.
— Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.
Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:
— Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.
— Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso. Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida. Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer. Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles. Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu. Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.
— Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter freqüentado boa escola.
(Jakes de Basin, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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segunda-feira
O VAPOR DAS PANELAS E O TINIR DAS MOEDAS - Novellino
Existem em Alexandria umas ruas chamadas “dos sarracenos”, que gozam de especial renome porque os árabes que mantêm ali suas tendas são os melhores cozinheiros, e os pratos que eles preparam deliciam os gastrônomos mais exigentes. Os sibaritas, gente verdadeiramente refinada em assuntos de mesa, freqüentam aquelas ruas da mesma forma que, nas cidades elegantes, as pessoas freqüentam as ruas onde há comércio de quadros.
Encontrava-se na sua cozinha um daqueles famosos cozinheiros, chamado Fabrac, quando se apresentou ali, com uma empada na mão, um mendigo sarraceno, que nem de longe tinha dinheiro para pagar o preço de um daqueles pratos famosos. O mendigo segurou a empada sobre a panela em que estava sendo preparado um guisado, e ela foi sendo impregnada pelo cheiroso vapor que dela se desprendia. Depois que a sentiu bem no ponto, retirou-a e se deliciou com o resultado do seu expediente culinário.
Fabrac não gostou daquilo. Não achava correto o procedimento do mendigo, e o intimou:
— Agora você tem de me pagar o que pegou da minha cozinha.
— Da sua cozinha eu não peguei nada. Só usei um pouco do seu vapor.
— Que seja! Você tem de me pagar então o vapor que pegou.
Tanto discutiram, tanto se encresparam, e tal escândalo moveram por causa da estranha reclamação, que a coisa chegou aos ouvidos do sultão. Como o assunto era muito original, o sultão não quis resolvê-lo antes de conhecer a opinião dos dois contendores. Chamou-os à sua presença, e a questão foi planteada pelo cozinheiro nos termos mais enérgicos.
Os sábios da corte do sultão começaram a discutir, argumentar, distinguir e sutilizar, como só os orientais o sabem fazer. Um dizia que o vapor não era do cozinheiro, pois se tratava de coisa que o demandante não podia reter, e se dissipava na atmosfera, além de carecer de substância corpórea e não deter propriedades úteis. Portanto, o mendigo não estava obrigado a pagar.
Outros, pelo contrário, sustentavam que o vapor era uma propriedade inerente ao que estava sendo cozinhado, algo consubstancial com ele, produzido por ele e só atribuível a ele; e como o prato saboroso era um resultado da perícia do cozinheiro e do seu trabalho, sendo do seu trabalho que cada homem deve viver, era lógico que o demandante recebesse um pagamento pelo uso daquele resultado do seu trabalho.
Muitos foram os argumentos, as razões, as argúcias e até os sofismas que se esgrimiram na contenda. Mas nada superou a engenhosa solução dada pelo sultão.
— Senhores, quando o cozinheiro vende a alguém o prato que preparou, é justo que esse resultado material e tangível do seu trabalho seja pago com algo também material e tangível, que são as moedas. Tendo em vista que o vapor é a parte sutil e não tangível do prato que o cozinheiro preparou, deve também ser paga com algo imaterial e intangível.
Dirigindo-se então ao mendigo, perguntou:
— Tens aí algumas moedas?
— Sim, senhor, pois as pessoas me ajudam geralmente com moedas, ainda que de pouco valor.
— Então tome-as dentro de um saquinho, e agite-as bem.
Feito isso, o sultão despediu o demandante, dizendo-lhe:
— Considere-se pago, e muito adequadamente, pois o tinir das moedas é a parte imaterial e intangível delas.
(Novellino, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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Encontrava-se na sua cozinha um daqueles famosos cozinheiros, chamado Fabrac, quando se apresentou ali, com uma empada na mão, um mendigo sarraceno, que nem de longe tinha dinheiro para pagar o preço de um daqueles pratos famosos. O mendigo segurou a empada sobre a panela em que estava sendo preparado um guisado, e ela foi sendo impregnada pelo cheiroso vapor que dela se desprendia. Depois que a sentiu bem no ponto, retirou-a e se deliciou com o resultado do seu expediente culinário.
Fabrac não gostou daquilo. Não achava correto o procedimento do mendigo, e o intimou:
— Agora você tem de me pagar o que pegou da minha cozinha.
— Da sua cozinha eu não peguei nada. Só usei um pouco do seu vapor.
— Que seja! Você tem de me pagar então o vapor que pegou.
Tanto discutiram, tanto se encresparam, e tal escândalo moveram por causa da estranha reclamação, que a coisa chegou aos ouvidos do sultão. Como o assunto era muito original, o sultão não quis resolvê-lo antes de conhecer a opinião dos dois contendores. Chamou-os à sua presença, e a questão foi planteada pelo cozinheiro nos termos mais enérgicos.
Os sábios da corte do sultão começaram a discutir, argumentar, distinguir e sutilizar, como só os orientais o sabem fazer. Um dizia que o vapor não era do cozinheiro, pois se tratava de coisa que o demandante não podia reter, e se dissipava na atmosfera, além de carecer de substância corpórea e não deter propriedades úteis. Portanto, o mendigo não estava obrigado a pagar.
Outros, pelo contrário, sustentavam que o vapor era uma propriedade inerente ao que estava sendo cozinhado, algo consubstancial com ele, produzido por ele e só atribuível a ele; e como o prato saboroso era um resultado da perícia do cozinheiro e do seu trabalho, sendo do seu trabalho que cada homem deve viver, era lógico que o demandante recebesse um pagamento pelo uso daquele resultado do seu trabalho.
Muitos foram os argumentos, as razões, as argúcias e até os sofismas que se esgrimiram na contenda. Mas nada superou a engenhosa solução dada pelo sultão.
— Senhores, quando o cozinheiro vende a alguém o prato que preparou, é justo que esse resultado material e tangível do seu trabalho seja pago com algo também material e tangível, que são as moedas. Tendo em vista que o vapor é a parte sutil e não tangível do prato que o cozinheiro preparou, deve também ser paga com algo imaterial e intangível.
Dirigindo-se então ao mendigo, perguntou:
— Tens aí algumas moedas?
— Sim, senhor, pois as pessoas me ajudam geralmente com moedas, ainda que de pouco valor.
— Então tome-as dentro de um saquinho, e agite-as bem.
Feito isso, o sultão despediu o demandante, dizendo-lhe:
— Considere-se pago, e muito adequadamente, pois o tinir das moedas é a parte imaterial e intangível delas.
(Novellino, in R. Menéndez Pidal, Antología de cuentos – Labor, Barcelona, 1953)
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O TIRO - Alexandre Puchkin
I
Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.
Um único civil freqüentava o nosso grupo. Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.
Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste.
Freqüentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.
Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à mesa cinqüenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:
— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isto haja acontecido em minha casa.
Não tínhamos a menor dúvida acerca das conseqüências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu, dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.
No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão. Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.
Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente vêem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a adquirir sua influência anterior.
Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite infeliz, a idéia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade não fora lavada, essa idéia não me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais voltaram.
Os habitantes da capital, viciados pelas distrações, não fazem idéia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.
— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também — acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.
Com estas palavras saiu, apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para seu lado.
Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em que eu ia sair.
— Preciso falar com você — disse-me.
Fiquei.
Os outros foram-se embora, e nós dois permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio. Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Talvez nunca mais nos tornemos a ver — disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.
Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.
— Achou estranho — continuou — que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria perdoado.
Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:
— É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.
Espicaçou-me a curiosidade.
— Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?
— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso duelo.
Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.
— Você sabe que eu servi no regimento de hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranqüilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria. Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram, porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.
Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”. Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou a minha hora.
Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã, e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto) informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga jovem e bonita.
— Você já suspeita — continuou — quem é a “pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.
Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.
Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.
II
Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Era preferível a solidão.
A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.
A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.
Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.
— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao Conde.
— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?
— Regularmente — repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.
— É verdade? — perguntou a condessa com visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos de distância?
— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego numa pistola.
— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa. já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.
O conde e a condessa pareciam contentes de me ouvir.
— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.
— Quando ele via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada contra a parede!
— É incrível! — disse o conde. — Como se chamava ele?
— Sílvio, Excelência.
— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?
— Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa. também o conhecia?
— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?
— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?
— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?
— Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Exa.?
— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.
— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.
— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de mim.
Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:
— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde, fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito — disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”. A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus, errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. — “Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada”. Macha, porém, continuava intranqüila. “Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero — respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.
O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na Batalha de Skuliani.2
NOTAS:
1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na Rússia. Depois desta frase, na tradução de Mérimée (em Alexandre Pouchkine, Le Maître de Poste, La Dame de Pique et autres contes, Paris, Librairie Gründ, 1942, p. 145), figura o trecho seguinte, que não se encontra no texto russo de que nos utilizamos: “Enfim tomei a resolução de me deitar o mais cedo possível e jantar o mais tarde possível, de sorte que resolvi o problema de encurtar as noites e prolongar os dias, e vi que isto era bom”.
2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti, descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo, tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p. 90)
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Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.
Um único civil freqüentava o nosso grupo. Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.
Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste.
Freqüentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.
Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à mesa cinqüenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:
— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isto haja acontecido em minha casa.
Não tínhamos a menor dúvida acerca das conseqüências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu, dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.
No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão. Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.
Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente vêem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a adquirir sua influência anterior.
Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite infeliz, a idéia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade não fora lavada, essa idéia não me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais voltaram.
Os habitantes da capital, viciados pelas distrações, não fazem idéia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.
— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também — acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.
Com estas palavras saiu, apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para seu lado.
Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em que eu ia sair.
— Preciso falar com você — disse-me.
Fiquei.
Os outros foram-se embora, e nós dois permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio. Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Talvez nunca mais nos tornemos a ver — disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.
Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.
— Achou estranho — continuou — que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria perdoado.
Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:
— É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.
Espicaçou-me a curiosidade.
— Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?
— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso duelo.
Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.
— Você sabe que eu servi no regimento de hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranqüilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria. Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram, porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.
Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”. Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou a minha hora.
Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã, e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto) informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga jovem e bonita.
— Você já suspeita — continuou — quem é a “pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.
Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.
Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.
II
Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Era preferível a solidão.
A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.
A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.
Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.
— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao Conde.
— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?
— Regularmente — repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.
— É verdade? — perguntou a condessa com visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos de distância?
— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego numa pistola.
— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa. já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.
O conde e a condessa pareciam contentes de me ouvir.
— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.
— Quando ele via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada contra a parede!
— É incrível! — disse o conde. — Como se chamava ele?
— Sílvio, Excelência.
— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?
— Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa. também o conhecia?
— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?
— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?
— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?
— Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Exa.?
— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.
— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.
— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de mim.
Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:
— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde, fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito — disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”. A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus, errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. — “Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada”. Macha, porém, continuava intranqüila. “Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero — respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.
O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na Batalha de Skuliani.2
NOTAS:
1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na Rússia. Depois desta frase, na tradução de Mérimée (em Alexandre Pouchkine, Le Maître de Poste, La Dame de Pique et autres contes, Paris, Librairie Gründ, 1942, p. 145), figura o trecho seguinte, que não se encontra no texto russo de que nos utilizamos: “Enfim tomei a resolução de me deitar o mais cedo possível e jantar o mais tarde possível, de sorte que resolvi o problema de encurtar as noites e prolongar os dias, e vi que isto era bom”.
2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti, descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo, tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p. 90)
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